cultura


Movimentos em múltiplas dimensões

Em espetáculos inovadores, a dança contemporânea combina arte,
trabalho coletivo e compartilhamento em rede.
Patrícia Benvenuti


ARede nº 81 – junho de 2012

COMO É EXATO minuto que antecede a morte? Será que parece um sonho, em que os momentos mais importantes da vida passam rapidamente pela cabeça, como em um filme de ação?

Essas perguntas filosóficas e inquietantes acabaram virando um espetáculo de dança. O criador da performance foi o bailarino pernambucano Jorge Garcia, um dos grandes expoentes brasileiros de dança contemporânea. A montagem Cabeça de Orfeu, inspirada no mito de Orfeu e desenvolvida em 2007 no departamento de dança-teatro da escola de artes Amsterdam Theaterschool, na Holanda, inovou no tema, na linguagem e, especialmente, ao expandir os limites do palco tradicional. Porque a tecnologia entrou em cena, em um show de videodança.

Em vez de simplesmente gravar a coreografia em vídeo tradicional, Garcia optou por utilizar recursos tecnológicos avançados. Segundo ele, foi fácil usar a câmera durante a apresentação de Cabeça de Orfeu: as imagens do espetáculo, realizado nas dunas de Cabo Frio (RJ), foram captadas por uma filmadora 7D.
O resultado dá vida ao registro. “É muito mais do que só o movimento do corpo ou o movimento da câmera em relação ao corpo. São várias possibilidades”, diz Garcia. A edição foi feita pelo software Final Cult e lançada em DVD. 

A videodança, gênero que pode ser entendido como uma produção coreográfica para a tela, é apenas um dos frutos do casamento da tecnologia com a arte. Quando se trata de dança, câmeras, computadores, robôs, projetores, sensores e outros equipamentos passam a fazer parte da concepção ou da própria apresentação da obra.

No Brasil, os primeiros passos da dança aliada à tecnologia foram dados nos anos 1970. Um marco foi a obra M3X3, da bailarina e arquiteta Analívia Cordeiro. Era uma computer dance feita especialmente para televisão, em uma época em que os videocassetes ainda não tinham chegado ao país. O trabalho trazia bailarinos coreografados por movimentos criados por computador, que imitavam o trabalho de máquinas e criticavam a automatização da sociedade moderna.

A obra M3X3 foi apresentada pela primeira vez em 1973, no Festival Internacional de Edinburgo, na Alemanha. Além da exibição, Analívia escreveu um trabalho teórico, em que antecipava a função do computador como um poderoso instrumento para os pesquisadores de dança. Para provar sua tese, nos três anos seguintes ela produziu os vídeos 0=45, Cambiantes e Gestos, uma abordagem que segundo ela estreitou a relação entre arte e ciências e influenciou produtos atuais da indústria de games.Em quase 40 anos de experiências multilinguagem, os artistas que atuam com videodança inovam cada vez mais. Aos 39 anos, Jorge Garcia ingressou na carreira movido pelo ritmo do forró e da lambada. Diretor e coreógrafo da Cia J. Garcia, ele defende que a tecnologia hoje é uma possibilidade a mais nos espetáculos: “Mapear o espaço, usar câmeras e sons que podem sair de vários lugares, coisas que podem transformar o espaço, isso é muito rico para a dança e para a arte em geral”.
Os resultados são tão variados que até dificultam a conceituação das obras. “Nesse terreno, bastante experimental e aberto, poucas são as práticas que justificam um nome específico”, explica a coreógrafa, performer e artista multimídia Lali Krotoszynski. Nem mesmo uma das principais referências do país nesse campo se arrisca a definir seu trabalho. O grupo Cena 11, de Florianópolis (SC), dirigido pelo coreógrafo Alejandro Ahmed, promove experimentos com dança e tecnologia desde 1994, quando exibiu o espetáculo Respostas sobre Dor. No palco, bailarinos interagiam com recursos como histórias em quadrinhos, poesia, músicos em cena, vídeos, próteses e máquinas.

À DISTÂNCIA
Outro estilo que ganha impulso é a dança telemática. À distância, bailarinos em diferentes cidades ou países interagem a partir de redes avançadas de telecomunicação, que transmitem informações como imagens e áudios de um local para outro.
A primeira experiência desse tipo foi feita nos anos 1970, ainda por satélite, por Kit Galloway e Sherrie Rabinowitz. No Brasil a técnica chegou pelas mãos da professora Ivani Santana, coordenadora do Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas: Corpoaudiovisual (GP Poética), da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em 2006, o pioneiro espetáculo Versus ocorreu simultaneamente entre Salvador (BA) e Brasília (DF).

Na dança telemática, em vez de interagir entre si, os bailarinos relacionam-se por meio das imagens exibidas em telão. Para Ivani, o uso da tecnologia altera as noções sobre o corpo, a dança e o próprio público. “Surgem novas demandas perceptivas para os dançarinos, uma vez que eles não dialogam diretamente um com o outro, mas através de uma câmera de vídeo, de um sensor ou algum dispositivo ligado às redes”, explica.

Em uma das passagens de Versus, um bailarino inicia seu movimento a partir do contato de uma mão gigante. Mas a proximidade física não existe, pois o toque foi dado por um artista localizado em outro ponto da rede. A experimentação é possível graças ao Arthron, ferramenta de suporte à realização de eventos midiáticos distribuídos, desenvolvido entre 2009 e 2010 pelo Laboratório de Vídeo Digital (Lavid) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), ligado à Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP).

O software, que é livre, combina um conjunto de serviços digitais em uma rede de telecomunicações. No caso da dança com mediação tecnológica, o sistema permite captura, transmissão e intercâmbio de fluxos de vídeos simultâneos durante a realização do espetáculo. As informações podem ser enviadas, em alta, média e baixa definição, tanto para decodificadores específicos na rede quanto para a internet.

INTERDISCIPLINARIDADE
Em um espetáculo de dança que também envolve tecnologia, a execução da obra vai muito além da tradicional relação coreógrafo-bailarino. Entram em cena músicos, cineastas e produtores de vídeo, programadores, engenheiros de rede, artistas visuais, atores e criadores diversos. O nível de interação depende do tipo de trabalho. No caso da videodança, o artista pouco se relaciona com as equipes de som, filmagem e edição. Por outro lado, a dança telemática exige mais sintonia entre os profissionais.

Para Jacson Espírito Santo, bailarino e pesquisador de práticas tecnológicas, também da GP Poética da UFBA, é a interdisciplinaridade que permite os resultados mais interessantes: “O papel de outras pessoas, de outras áreas, compartilhando as suas experiências, faz um diferencial na obra. E é melhor do que ficar fechado entre um coreógrafo e as pessoas que executam somente aquilo”.

Não é necessária formação específica em dança mediada por tecnologia. Mas o profissional deve se preparar. Deve se dedicar nos ensaios e redobrar a atenção em relação aos múltiplos agentes que compõem a cena. “A pessoa está lidando com vários tipos de estética ao mesmo tempo, não pode ficar somente imersa no seu processo de dança e esquecer que está sendo filmada, que tem que ter uma relação de afeto ou não com a pessoa que está no outro ponto remoto. E há também um público local”, salienta Espírito Santo.

Descobrir e lidar com o aparato tecnológico também é importante para o artista, mas há dificuldades em captar conhecimentos tão específicos. Nesse sentido, ressalta Lali Krotoszynski, ganha quem dialoga. “Acredito que para criar incorporando tecnologias, quaisquer que sejam, é importante explorar seus limites. Ao mesmo tempo, é impossível dominar todo o conhecimento envolvido nas produções mais complexas, então é sempre um trabalho de caráter colaborativo”, afirma.
Os custos dos espetáculos que utilizam tecnologia ainda são altos. Entretanto, a popularização de equipamentos contribui para novas experiências. Além disso, o professor Guto Nóbrega, do Núcleo de Arte e Novos Organismos (Nano) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destaca a importância de conectar as produções. Para ele, mais importante do que criar é aprender a reutilizar as estruturas tecnológicas existentes. “O novo parte, muitas vezes, de uma reapropriação, de uma reinvenção das coisas que podem ser conectadas de outra forma”, diz Nóbrega, que defende o compartilhamento de conhecimentos na rede. Como exemplo, cita o Hiperorganismo Antropofágico, nome dado a uma instalação robótica criada pelo Nano para o espetáculo de dança telemática Frágil, de 2011. Sua principal função, na apresentação, era captar e projetar as imagens, além de interagir com artistas distribuídos entre Rio de Janeiro, Salvador e Fortaleza.

Todo o processo de construção do robô e os resultados das pesquisas para seu aperfeiçoamento estão disponíveis no site do Nano. O objetivo, segundo Nóbrega, é que mais pessoas tenham acesso ao trabalho e possam contribuir para seu desenvolvimento. “Há uma nova ecologia em curso. Não só para a dança telemática, mas em geral somos a favor do software livre como condição para a equiparação digital entre as sociedades e indivíduos, a democracia do conhecimento e o desenvolvimento compartilhado”, complementa Ivani Santana.

Na difusão das obras, a internet também cumpre um papel primordial. Transmitidas em tempo real ou gravadas e postadas em canais como o Youtube, as apresentações, antes restritas a espaços físicos determinados, podem hoje alcançar um número inimaginável de espectadores.

Apesar do êxito e do crescente número de experiências no Brasil, há desafios a serem superados. Além da complexidade das obras e da limitação de recursos, Jorge Garcia lembra a necessidade de avançar no diálogo entre dança e tecnologia. “Temos que pensar não o corpo sobre a tecnologia ou a tecnologia sobre o corpo, mas uma relação que seja interessante”, complementa Guto Nóbrega.

www.dancaemfoco.com.br
www.itaucultural.org.br
http://festivalnovadanca.blogspot.com.br
http://dancarecife.blogspot.com.br

CIRCUITO DE FESTIVAIS
Um dos festivais mais importantes de dança do país chega à décima edição totalmente dedicado à videodança. O Dança em Foco está programado para acontecer em agosto e setembro, no Rio de Janeiro. Como nas edições anteriores, deve seguir depois para Belo Horizonte (MG), Porto Alegre (RS), Campo Grande (MS), Goiânia (GO) e São Paulo (SP), em datas a serem confirmadas.

Uma das características do Dança em Foco é a exploração das múltiplas linguagens entre imagem e corpo. Em 2011, o festival exibiu 188 obras de videodança, de 31 países diferentes. Além da mostra internacional, o evento oferece oficinas, debates, vídeo projeções, videoinstalações e performances multimídia. As sessões sempre
são gratuitas e abertas ao público.

Também é possível assistir a espetáculos de dança e tecnologia em eventos como o Programa Rumos do Itaú Cultural, que circula pelo país apresentando novos projetos na área da dança. Há ainda o Festival Internacional da Nova Dança, em Brasília (DF), realizado desde 1996 no período do verão; e o Festival Internacional de Dança do Recife (PE), promovido pela prefeitura do município em outubro.

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