O livro “Da Diáspora –
Identidades e mediações culturais“ reúne textos de Stuart Hall,
jamaicano radicado na Inglaterra, teórico das identidades culturais na
modernidade tardia, com foco especial na dispersão e mistura do negro
em outras culturas. Traz uma entrevista em que o pensador relata sua
própria experiência e o que significou “para um caribenho negro como
qualquer outro” conseguir escrever “sobre e a partir desta posição”.
Cristina Chacel
“De onde vocês tiraram esse bebê coolie?”.
A reação de espanto da menina, ao olhar, pela primeira vez, o irmão
recém-nascido acomodado no berço, traduzia a dimensão do estrago que a
condição colonial produzira na identidade essencial de seu povo.
Estavam no ano de 1932, na Jamaica, então colônia britânica. Coolie era
o nome depreciativo usado na pequena ilha do Caribe para designar o
indiano pobre, o mais humilde dos humildes. No berço estava um bebê
negro. Seu nome, Stuart Hall.
Um dos ideólogos da chamada Nova Esquerda, surgida na esteira da
invasão da Hungria pela União Soviética, em 1956, que logrou derrotar o
movimento antiestalinista, Stuart Hall é um dos mais importantes
intelectuais de seu tempo, conhecido como um dos pais dos chamados
Estudos Culturais. Parte de sua história e alguns de seus melhores
textos podem ser lidos, em português, no livro “Da Diáspora,
Identidades e Mediações Culturais”, edição organizada pela professora
Liv Sovik, publicada pela Universidade Federal de Minas Gerais, em
conjunto com a Unesco, em 2003.
A passagem protagonizada pela irmã que acusou sua condição de coolie,
por ser o mais negro da família, está nas páginas finais do livro, em
“A formação de um intelectual diaspórico”, entrevista concedida a
Kuan-Hsing Chen. Ali vamos entender por que a diáspora, termo
originalmente usado para designar o movimento migratório dos judeus
pelo mundo, mas hoje também associado à dispersão da cultura negra e
sua hibridização com outras culturas, é tema central de Stuart Hall. Ao
definir-se como “intelectual diaspórico”, avisa Liv Sovic, na
apresentação do livro, “Hall escolhe o lugar que o discurso
eurocêntrico destina a ele – um lugar de negro”.
Caçula de três irmãos, filho de uma família de classe média fortemente
identificada com o colonizador inglês, Hall recebeu uma educação
colonial. A mãe dominadora se reconhecia inglesa e branca, embora não
fosse nem uma coisa, nem outra. O pai freqüentava os clubes ingleses e
levava o pequeno Stuart junto. Não conseguia perceber o quanto não se
encaixava naquele mundo. “Os ingleses apenas o toleravam. Eu percebia
como eles o tratavam com um respeito que marcava sua inferioridade. Eu
odiava aquilo mais que tudo”, diz.
Essa identificação acabaria por destruir a irmã de Hall. Certa feita,
ela se apaixonou por um estudante de Medicina que viera de Barbados
para a Jamaica. Era um rapaz de classe média. Porém negro. E a moça
enfrentou brutal oposição familiar, de tal sorte que recuou e entrou em
crise. Nunca mais se recuperou. Não mais saiu de casa. Cuidou do pai e
da mãe até morrerem, depois transferiu os cuidados para o irmão mais
velho, doente e cego, também até ele morrer.
“De repente, me conscientizei da contradição da cultura colonial, de
como a gente sobrevive à experiência da dependência colonial, de classe
e de cor e de como isso pode destruir você, subjetivamente”, comenta
Hall na entrevista.
Estudar na Inglaterra fazia parte do roteiro familiar. Mas, quando Hall
deixou a Jamaica, em 1951, para estudar Literatura em Oxford – “Minha
decisão de emigrar era para me salvar” -, não imaginava que jamais
voltaria a viver e a trabalhar em seu país. “Aos poucos, vim a
reconhecer que era um caribenho negro como qualquer outro. Eu conseguia
me identificar com isso. Conseguia escrever sobre e a partir desta
posição”.
Esta é, sem dúvida, a força de sua obra. Stuart Hall estuda e pensa o
mundo a partir do conflito entre o local e o colonial, mas o faz com o
reconhecimento da multiplicidade que só um olhar generoso permite. No
artigo “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”, ele mostra a
complexidade das condições e pressões culturais. Diz que as etnicidades
dominantes são sustentadas por uma “economia sexual específica”, uma
“figura de masculinidade específica”, “uma identidade específica de
classe”.
Por isso, Hall afirma que a política de identidade essencialista é uma
luta importante, mas não necessariamente leva à libertação da
dominação. Para ele, esta se constrói em várias frentes, em um
território cultural amplificado, que inclui a vida cotidiana, a cultura
popular e a cultura de massa. Sobre esta última, não lhe nega o poder
de sedução: “O meio mercantilizado e esterotipado da cultura de massa
se constitui de representações e figuras de um grande drama mítico, com
o qual as audiências se identificam, é mais uma experiência de fantasia
do que de auto-reconhecimento”, escreveu ele.
A teoria como forma de luta
Stuart Hall é o que o italiano Antonio Gramsci conceituou de
intelectual orgânico, aquele que emana da sua própria experiência,
engajado ao seu meio, à sua comunidade. Hall, aliás, dialogou de perto
com Gramsci, no entendimento. Sua organicidade, porém, incorporou amplo
leque de influências. Pensadores como Marx e Bakthin, Althusser, Hogart
e Foucault, Barthes, Durkheim e Hegel.
O intelectual orgânico, diz Hall, “deve saber mais que o intelectual
tradicional, estar na vanguarda do trabalho teórico intelectual e, ao
mesmo tempo, repassar seu saber para intelectuais fora da academia”. Um
dos fundadores do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos da
Universidade de Birminghan, não por acaso Stuart Hall foi seu diretor
nos quatro anos considerados mais férteis, até partir para a Open
University, atraído pela experiência de implantar um projeto de
formação universitária para adultos a distância com ciclos de
seminários intensivos.
Hall é um democrata que articula cultura e política. Para ele, o
sentido da teoria está no compromisso em formular “estratégias
culturais que fazem diferença e deslocam as disposições de poder”, numa
permanente “guerra de posições”. “Na Diáspora…” nos oferece um
panorama robusto desta reflexão, que converge para a afirmação da
multiculturalidade no debate político da globalização.
![](https://www.acervo.arede.inf.br/wp-content/uploads/2007/09/cultura2.png)
Stuart Hall – Organização Liv Sovik
Editora UFMG, Belo Horizonte, e Representação da UNESCO no Brasil, Brasília; 2003.
434 páginas
Preço: R$ 51,00 (www.livrariacultura.com.br) ou R$ 40,00 (www.bancadodaniel.com.br, site assinado por Daniel Krasucki, Banca de livros da ECA-USP).
www.eco.ufrj.br/livsovic – Site da professora doutora Liv Sovik (UFRJ).
www.portalliteral.com.br
– Portal Literal. No menu, escolha Diálogos -conversas com Heloísa
Buarque de Hollanda; depois, procure “O pensador das diásporas”, no
arquivo da seção, para ler uma entrevista com Stuart Hall.