A ONG Papel Jornal promove, há
sete anos, oficinas de texto, foto e design no Jardim Ângela e região.
A iniciativa resulta em mídia de qualidade, atuante e cidadã.
João Luiz Marcondes
A seleção dos jovens é feita nas escolas da região.
Bem além das marginais, que circundam a São Paulo rica e de classe
média, ficam os jardins de asfalto. Ali, proliferam barracos, botecos,
lojas populares, muros grafitados, crianças queimadas de sol,
barrigudinhas. Estamos no Jardim Rainere, extensão de outro bairro da
periferia da zona sul, o Jardim Ângela, muito conhecido por ter
recebido, da ONU, o nada honroso título de “capital da violência”– em
2000, foram 96 mortes por 100 mil habitantes.
É nessa área, de becos e vielas, que circula com Rogério Pixote, 23
anos. Todo sábado ele vai para a redação do Papel Jornal, uma
organização não-governamental, trabalho de voluntários jornalistas e
outros profissionais liberais. O Papel Jornal foi idéia da
fotojornalista Marlene Bérgamo. No final dos anos 90, quando buscava,
ali na região, um personagem sobre violência para uma reportagem da Folha de S.Paulo
(onde trabalha até hoje), foi surpreendida por jovens ávidos por
informação. “Me ensina a fotografar”, pediu um garoto. “Ensino”,
respondeu Marlene.
Em 1999, foi fundada a Papel Jornal, num espaço provisório. Com 20
meninos e meninas de diferentes idades. “Havia, na demanda deles, uma
crítica subjacente aos veículos da grande imprensa (rádio, TV e
jornais): retratar a periferia de um ponto de vista estrangeiro, distante, antropológico, verticalizado – ricos falando sobre pobres, brancos falando sobre negros, escolados sobre iletrados”, diz um relatório do projeto.
A garotada começou a ter oficinas de texto, reportagem, fotografia, design
gráfico e criatividade. A partir daí, nasceu o meio de expressão local,
o jornal Becos e Vielas Z/S (Zona Sul). Até 2004, era uma edição por
ano, com tiragem média de 5 mil exemplares. Em 2005, foram três
edições, com tiragem média de 7 mil. O processo de seleção dos
participantes do projeto é feito, a cada ano, nos colégios da região, a
partir de uma redação. Os que escrevem são convidados a conhecer a OnG.
“Dos que vem pela primeira vez, uns continuam freqüentando, outros
desistem. Acaba sendo quase uma seleção natural”, descreve Joana
Brasileiro, designer e uma das coordenadoras da agitada redação. Muitos garotos que entraram no projeto no início continuam lá. Quem quiser, fica.
Como qualquer redação de jornal que se preze, existe um estado caótico
no Becos e Vielas. Todo mundo tem voz, as opiniões quase sempre não
coincidem, há gritaria e falas atropeladas. Com a vantagem de não haver
chefão autoritário que dá a palavra final. “Priorizamos o processo em
vez do produto”, explica Joana. A instituição contou, no início, com
ajuda do Instituto Ayrton Senna, que doou R$ 60 mil, em duas parcelas,
que garantiram aluguel, 15 computadores e outros itens de
infra-estrutura. Outras parcerias foram firmadas com Petrobras e
Ministério da Justiça.
Os patrocínios são bem-vindos, porque o Papel Jornal está sempre
correndo atrás de novas formas de sustentabilidade. A Máquina da
Notícia (empresa de assessoria de imprensa) deu bolsas de R$ 50,00 para
os alunos durante um tempo, dinheiro que deveria ser usado em
atividades culturais. Um cursinho doou bolsas de estudo. As iniciativas
às vezes funcionam, outras não. Freqüentemente, não duram muito tempo.
Sem imparcialidade
A redação do Becose Vielas:
matérias opinativas.
Hoje, a instituição pode se orgulhar do Becos e Vielas. O jornal é de primeiríssima qualidade e dá banho em muita reportagem imparcial
da grande imprensa. Ali, nada é imparcial. Os textos são irônicos,
opinativos, mas sempre dentro das regras do bom jornalismo. As fotos
são sensíveis e a diagramação, criativa. O jornal conta, ainda, com o
humor de Rodolfo Ferreira (O Grego) e Cláudio Sacramento (o Ganu), na
melhor tradição artística do grafite suburbano da cidade.
“Eu faço grafite, mas minha mãe diz que é falta do que fazer”, comenta
Ganu, relatando que, quando chegou ao Papel Jornal, estava meio
decadente e prejudicado pela vida nas ruas. Érica Sousa, 21 anos, conta
que não sabia nem ligar o computador antes de freqüentar as reuniões de
pauta do Becos e Vielas. Sofria com a gagueira e timidez. “Tinha
dificuldade de me expressar, freqüentei fonoaudióloga”, diz a jovem,
hoje capaz de participar ativamente de discussões acaloradas sobre
cidadania e outros assuntos caros à população do Jardim Ângela.
Os amigos de goró Anderson Rodrigues, 20, e Tiago do Nascimento,
mesma idade, gostavam de escrever. Por isso, foram parar no Becos e
Vielas. Junto com outros amigos, eles formaram um cineclube e estão
sempre atrás de opções às pragas hollywoodianas. Já exibiram “Tiros em
Columbine” e “Ônibus 174”.
Um dos problemas verificados pelos colaboradores da OnG é a
auto-exclusão. Ou seja, gente da periferia muitas vezes não tem idéia
do potencial que pode desenvolver. Rogério Pixote concorda: “Temos, na
região, problema de auto-estima baixa. O Becos vai mudando um pouco
isso. Tanto para nós, quanto para comunidade.”
As reportagens vão de perfis de personalidades da região, como uma
senhora que tem um time de futebol, uma mãe interna da Febem, a grandes
temas de capa, como eleições, consumismo. Além de programação cultural
e matérias de serviço. Este ano, a turma está produzindo cartilhas
sobre violência que serão distribuídas à população.
O Papel Jornal não quer parar por aí. “Nossa vontade é espalhar essa
atividade por toda a periferia. Não só com jornal, mas também com rádio
e televisão”, relata Joana Brasileiro. Seria muito bom. Hoje, o nível
de criminalidade do Jardim Ângela diminuiu muito em relação a 2000. Mas
ainda é elevado – 36 assassinatos por 100 mil habitantes. “As pessoas
não tem que comemorar, ainda é uma estatística absurda”, observa Joana.
Ela tem razão. Em outro jardim, não de asfalto mas de árvores
frondosas, o Jardim Europa, a quilômetros dali, o índice de violência é
de 1,8 morte por 100 mil habitantes.