cultura
O poder das mulheres
Unidas pelas raízes africanas e pela condição de líderes femininas, elas aprendem juntas a usar tecnologia para preservar suas comunidades, suas crenças e suas lutas.
texto Áurea Lopes | fotos Renato de Aguiar
ARede nº 98 – maio/junho de 2014
Ìyàlóòde é um título ioruba concedido a mulheres que se destacam por sua liderança. Por isso foi escolhido, em democrática votação, para batizar o núcleo brasileiro do Women-gov – estudo apoiado pelo International Development Research Centre (IDRC). Essa instituição canadense capacita mulheres marginalizadas a usar as tecnologias de informação e comunicação (TICs) para atuar em ações de cidadania, construir redes de participação política e interagir com governos locais. No Brasil, o projeto reuniu líderes de regiões de baixa renda, na cidade do Rio de Janeiro (RJ).
Religiosas, ativistas, donas de casa, elas compartilharam suas experiências e suas necessidades durante as oficinas em que aprenderam não apenas a usar dispositivos digitais, mas, principalmente, a explorar o potencial da tecnologia para ampliar e qualificar suas atividades.
O projeto Ìyàlóòde foi realizado pelo Núcleo de Pesquisas, Estudos e Formação (Nupef), em parceria com a organização não-governamental Criola, do Rio de Janeiro, sede do Ponto de Cultura Mulheres Negras na História. A iniciativa-mãe, o projeto Women-gov, aconteceu também na África do Sul, na Universidade da Cidade do Cabo, histórica instituição de ensino de negros; e, na Índia, junto com a organização IT for Change. Em dois anos, de 2012 a 2014, foram investidos cerca de US$ 458 mil, nos três países.
As brasileiras já faziam parte da Criola, organização fundada e conduzida por mulheres negras desde1992. A ONG tem como missão “instrumentalizar mulheres, adolescentes e meninas negras para o enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia (discriminação contra lésbicas) e para o desenvolvimento de ações voltadas à melhoria das condições de vida da população negra”. O grupo chegou a ter 30 pessoas. Na última fase, ficaram dez. As capacitações e oficinas aconteceram na sede da ONG, uma vez por mês. O projeto pagou a equipe (uma coordenadora e uma assistente), o link de 10 Mbps, o material didático e as despesas de transporte e alimentação das participantes.
A Criola entrou com o espaço e quatro as máquinas. Mas as mulheres se entusiasmaram tanto que também pediram equipamentos emprestado, compraram seus próprios notebooks. “Havia quem nunca tivesse mexido em um computador. E elas fizeram até um blog. Porque a absorção da tecnologia só se dá assim… quando faz sentido para a pessoa aprender. É esse significado que gera a vontade de saber”, diz Silvana Lemos, pesquisadora do Nupef e coordenadora do projeto.
O trabalho focou em temas ligados a saúde, violência contra a mulher e religiosidade. As mulheres participaram, em 2013, da Oficina de Inclusão Digital (OID), em Brasília. Também fizeram, por meio de uma parceria com a Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o curso de extensão em Violência, Mulher e Mídia, junto com 19 estudantes da faculdade. O aprendizado foi além do domínio da técnica de comunicação e do uso de ferramentas digitais: “Agora eles [os governantes] têm medo da gente”, resume a Iyalorixá mãe Lúcia, que faz parte do Conselho Municipal de Políticas Públicas para Mulher de São João do Miriti.
“Comecei a estudar aos 22 anos. Já tenho 25 diplomas e certificados! Faço tudo que é curso… drogas, sexualidade, pastoral da criança, escola de governo… Sou comerciária aposentada, mas ainda trabalho em casa, cozinhando. Já tinha computador de mesa e ganhei um notebook no bingo da paróquia onde atuo como líder comunitária. Também sou do diretório do PT em Belford Roxo. Uso a internet para reivindicar, conversar com autoridades. Em 2.000, participei do Programa Nova Baixada, acompanhando as obras. Celular? Aprendi a usar no projeto. Tiro fotos, gravo, passo pro computador. Fiz uma denúncia no Facebook porque estavam deixando as pessoas sem água para encher quatro piscinas. Eu sabia quem era. Aí a água voltou.”
Conceição
Maria Conceição Ferreira Santana, 69 anos, nascida em Vitória (ES), mãe de uma filha.
“Faço artesanato com materiais reciclados. Pego muitas ideias na internet. Sou evangélica há 17 anos e me tornei pastora capelã. Vou a hospitais orar por enfermos, levar conforto espiritual. Fiz cursos sobre políticas públicas, violência contra a mulher, saneamento básico… Participei do projeto Mulheres da Paz, participo do projeto Casa de Paz, sou voluntária na Defesa Civil de Caxias do Sul. Foi aí que aprendi a usar computador, pois precisava fazer o cadastro das ocorrências online. Hoje coordeno um projeto do Instituto Formiga Karioca. Uso a rede pra divulgar nosso Forum. Queremos trazer pro Rio a Casa de Parto, que faz parto humanizado, em casa.”
Pastora Bina
Maria Benedita Macedo, 55 anos, nascida em Pinheiro (MA), mãe de dois filhos.
“Meu trabalho é voltado a ajudar as mulheres em situações de violência, opressão. Eu uso a iternet para falar com as minhas filhas do terreiro. Se elas não podem ir lá, a gente conversa pelo Facebook, pelo nosso grupo virtual. Antes do projeto, eu só sabia usar celular. Um tempo atrás a casa ganhou um computador, mas faltava tempo, faltava conexão… Quando comecei a aprender, há dois anos, comprei um notebook. Além das orientações religiosas, também uso para fazer pesquisas e estudar. Eu tinha parado de estudar aos 17 anos. Agora terminei o ensino Médio e estou no primeiro ano da faculdade de sociologia. Estou escrevendo um livro sobre reforma religiosa afrodescendente no Brasil.”
Iyalorixá Mãe Angélica
Maria Angélica da Silva dos Santos,
48 anos, nascida em Nova Iguaçu (RJ), mãe de três filhos.
“Comecei a trabalhar aos 15 anos, costurando pra fora. Aos 21, era merendeira de escola. Acabei a 8ª série aos 40 anos – mesmo ano em que meu filho mais velho se formou no 2º grau e o mais novo, no 1º grau. Tentei o Médio, não passei. Um dia uma professora me disse que analfabeto devia limpar chão. Voltei a estudar. Aos 50, terminei a formação de professores e fui trabalhar na secretaria da escola onde servi merenda. Também me tornei agente de saúde da escola. Coordenei o grupo de Combate ao Racismo da Igreja Metodista. Em 2001, ganhei o Prêmio Nacional de Direitos Humanos. Hoje presido o Conselho de Igualdade Social de São João do Miriti. Antes do projeto, meus colegas digitavam os trabalhos da faculdade pra mim. Estou no 4º período de Teologia. Com bolsa integral.”
Fezinha
Maria da Fé da Silva Viana, 68 anos, nascida em Carangola (MG), mãe de dois filhos.
“Sou técnica em estruturas navais. Trabalhei na Marinha. Fazia reparos em navios de guerra, até acontecer um acidente com a minha perna, cinco anos atrás. Aí me aposentei e procurei um curso de artesanato. Foi então que conheci o Yepondá, grupo de combate à violência contra mulheres. Comecei a participar. Vou às casas das pessoas, oriento, ajudo… mas é difícil convencer as mulheres a denunciar os companheiros. O marido da minha vizinha deu uma martelada na cabeça dela, e também enfiou uma chave de fenda no umbigo dela. Aqui no projeto uso tudo, computador, internet. E estou fazendo curso de montagem de computadores. Mas o que me encantou mesmo foi a fotografia. Até fiz outro curso e comprei uma máquina semi-profissional.”
Glória
Glória Duarte, 50 anos, nascida
em São João do Miriti (RJ).
“Sou maquiadora, cabeleireira e mestre em terapia Reiki. Faço cursos que ajudem a elevar a autoestima das mulheres. Não basta ensinar a fazer fuxico, crochê. A mulher tem que se sentir bem, bonita. Coordeno o grupo Yepondá, de combate à violência doméstica. Acho que esse meu cuidar das mulheres começou aos 20 e poucos anos, quando minha filha foi sequestrada pelo pai. Chegando aqui no Rio, assumi minha religiosidade e resolvi lutar pelas mulheres. Sou integrante do Conselho Municipal de Políticas Públicas para a Mulher, da Rede Nacional de Religiões Afrobrasileiras e Saúde. Ainda tenho resistência ao computador. Prefiro lidar com pessoas. Mas no projeto aprendi a fotografar, fazer vídeos, entrevistas. Isso fortalece a minha militância”.
Iyalorixá Lúcia de Oxum
Ana Lúcia Ferreira, 49 anos, nascida
em Belém (PA), mãe de uma filha.
“Não tenho computador em casa, mas estou querendo um. Minha filha está me ensinando. Até meu neto de dez anos está me ensinando. Já aprendi a colocar o meu nome, mas como muita letra, troco letra… Ah, eu sei fazer o jogo das bolinhas, dos bonequinhos. No ano passado, minha irmã me deu um celular. É mais fácil, até tiro foto. Mensagem só às vezes eu consigo mandar. Desde que meu marido morreu, há 9 anos, fiquei em depressão. Aí vim para a ONG Criola. Todo mundo me aceitou. Fiquei com vontade de estudar mais, aprender outras coisas. Quando a gente começa, dá vontade de continuar…”
Natividade
Maria Natividade Oliveira Cruz, 65 anos, nascida em Belford Roxo (RJ), mãe de três filhos.
www.criola.org.br | www.idrc.ca | nupef.org.br