jovens envolvidos com o tráfico no Brasil e propõe uma reflexão
para encontrar saídas para a violência. Patrícia Cornils
No livro “Cabeça de Porco”, de MV Bill, Celso Athayde e Luiz
Eduardo Soares, há um pai que lia uma história para o filho dormir.
Chapeuzinho Vermelho. Acabada a leitura, com o lobo morto pelo lenhador
e Chapeuzinho e a vovó salvas, o pai estica a coberta, apaga a luz e
sai. Mal fechada a porta, ouve o filho pedir, chorando, para ele
voltar. Trêmulo de medo, o menino pede para o pai ler novamente o final
da história. Depois de reler várias vezes o desfecho, apagar a luz e
ser obrigado a voltar, ele assegura ao filho que pode dormir, o lobo
mau está morto, a vovó e chapeuzinho estão bem, todos estão felizes,
foram felizes para sempre. “Dorme tranquilo”, diz. Então o filho
esclarece o problema: “Papai, eu sou o lobo.”
Athayde, MV Bill e Luiz Eduardo.
O tem que isso a ver com as favelas do Brasil por onde andaram, por
nove anos, Celso e MV Bill, em sua pesquisa para o documentário
“Falcão”, sobre meninos que trabalham no tráfico? Ou com a experiência
de Luiz Eduardo como subsecretário de Segurança Pública do Rio de
Janeiro e secretário nacional de Segurança Pública? Essas são as
experiências que levaram os três autores a escrever o livro. Mas e o
lobo? Talvez uma frase de Celso, em uma entrevista para o lançamento do
livro, seja a resposta. “Aqui não tem herói, vivemos na terra dos
vilões”, diz ele ao site Hip Hop BR, explicando, também, que não é a
intenção do livro ser porta-voz para os bandidos, mas mostrar que nessa
história cada um tem um pouco de lobo mau: os criminosos, os policiais,
a sociedade.
“Cabeça de Porco” também não pretende ser um livro sensacionalista nem
de denúncia. Foi feito para revelar, com detalhe, a realidade desses
jovens e a constatação de que está se criando, no Brasil, uma
subcultura ligada ao mundo da violência. O que os três autores querem é
refletir por que, embora a cada ano sejam mortos centenas de jovens que
trabalham no tráfico, aparecem outras centenas dispostos a se engajar.
“Existe uma fôrma, que a cada dia fabrica mais e mais jovens, essa
fôrma é nada menos do que suas famílias, que estão despedaçadas. Quero
dizer que é preciso fechar essa fábrica de monstros, e parte da solução
é dar uma vida digna aos pais deles”, diz Celso. Existe uma sociedade
que não enxerga essas pessoas e talvez elas entrem no crime “porque não
se trate, no fundo, para elas, daquilo que nós denominamos ‘crime’.
Talvez porque se trate de uma forma de clamar por reconhecimento e
valorização, escapando à dor da invisibilidade social”, continua Luiz
Eduardo, na mesma entrevista.
O nome Cabeça de Porco foi escolhido porque “é uma forma de dizer que a
saída existe, mas é muito complicada e que os caminhos existem, mas são
de difícil acesso”, diz MV Bill, rapper e ativista social da Cidade de
Deus, ao Hip Hop Brasil. Cabeça de Porco também é sinônimo de cortiço,
porque era o nome de um dos maiores pardieiros do Centro do Rio de
Janeiro, onde viviam quatro mil pessoas. Foi derrubado, assim como
todas as moradias baratas e sujas do Centro, no fim do século 19, em
uma mega-operação limpeza. Sem casa, os moradores dos cabeças-de-porco
subiram os morros e criaram as favelas. “Cabeça de Porco” vendeu 18 mil
exemplares desde seu lançamento, em abril. É muito, se considerarmos
que a tiragem média de um livro, no país, é de 3 mil exemplares. Tanto
interesse é um sinal de que deve haver, sim, saídas. Os heróis são os
que procuram.
Os clientes vêm de tudo que é parte: tem daqui, tem de fora, tem da
favela, tem cliente que vem da Zona Sul, tem cliente que vem de todos
os cantos. E eles falam assim: “Tô sabendo, lá em Vilar dos Teles, que
a maconha aqui está boa”.
Vem mulher, vem nego com mais idade, vem gente jovem, a maioria é
jovem. Tem nego que vem… eles não falam diretamente que são
ricos, mas pela aparência dá pra gente ver.
Já chegou uma vez na minha mão um cara para comprar, sabe quanto?
Trezentos reais só de pó. Já chegou nego querendo empenhar carro, aqui.
Tem gente que fala assim: “Segura esse celular pra mim, amanhã eu te
pago por tanto. Eu só quero dois pó de dez.” Aí chega nego que vende
tudo, que está alucinado para cheirar. Eu pergunto: “Aí, tu mora onde?”
“Moro na Zona Sul.” “Tu é playboy, cara” Alguns vendem cordão, essas
coisas todas. E tem nego duro.
Vem mulher de tudo quanto é tipo: velha, gorda, garota nova, estudante.
Tem umas que compram maconha, outras que compram pó. Fico olhando,
assim. Não dá para ter idéia, quando a gente vê na rua, que a pessoa
cheira, fuma…
A gente olha assim, pensa que é uma pessoa que vive uma vida tranquila;
não dá nada por ela. Tem gente bem de vida que vem aí direto, nego que
é repórter e o caramba. Tu olha, assim, e o repórter cheira e não sei o
quê, e faz várias reportagens sobre as drogas, essas coisas todas – mas
cheira…
Eu fico pensando, fico pensando nessa luta, querendo arrumar um
dinheiro, querendo ganhar um dinheiro rápido para construir uma parada
melhor, enquanto nego tá bem de vida e tá gastando o dinheiro todo com
drogas. Eu fico olhando…
Às vezes dá a maior raiva.
Negociando a liberdade*
No dia da minha prisão eu estava traficando de noite, por volta das
sete horas da noite, e veio uma freguesa, assim, com jeito de viciada.
Pediu dez papéis e pagou com R$ 100,00. Nesse instante, os homens
chegaram…
Eu estava na rua, eu e mais um amigo, com duas pistolas. Tentamos
dar tiro neles mas não demos porque tinha muita criança na rua. Como as
crianças estavam brincando, o pessoal gritava: “Entrem, entrem, entrem
crianças.” Aí eu falei: “Não, compadre, não dá tiro não, pra não pegar
em nenhuma criança, não gosto de facilitar”, e fomos correndo. Meu
amigo correu também sem dar nenhum tiro. Correu, sendo que ele correu
direto. Eu corri e me entoquei numa casa, mas os homens pularam várias
casas e me pegaram.
Aí o polícia me pegou nessa casa. Ele disse: “Então, eu quero R$ 3 mil,
tô sabendo que você é gerente, então quero.” Falei pra ele: “Não sou
gerente, estou aqui nessa vida pra sobrevivência, procurei emprego em
vários locais e não consegui, entende?” Ele respondeu: “Eu não quero
saber, eu quero R$ 3 mil, R$ 3 mil até dez horas.” Eu mandei para ele:
“Tenho uns R$ 1,5 mil em casa, guardados, meus mesmo.” Ele falou: “R$
1,5 mil não vai dar, só vai dar para você ficar comprando sucata lá
dentro da prisão” — sucata são os alimentos básicos que o familiar
leva para o preso ou que ele tem que comprar.
Deu dez horas, o amigo que tava com o dinheiro da boca estava no hotel
e desligou o telefone. O patrão não estava na favela. Não tinha como
avisar a ele e eu só podia tirar o dinheiro com a permissão dele, né?
Fiquei preso com eles, rodando, eles indo pro Bob’s, comendo, e eu
preso na caçapa, rodando, não me levaram para o DP, só para ver se eu
tinha dinheiro ou não. Até que eles viram que eu não tinha dinheiro.
Bateram um rádio pra delegacia, comunicando que tinha um indivíduo…
Não puderam tirar o dinheiro de mim e fui de dura. E fiquei cumprindo
minha cadeia.
A polícia me levou tudo. Disseram que era roubado e levaram tudo:
geladeira, fogão, televisão, som, perdi tudo. Eu tinha tudo e quando
saí da cadeia, não tinha nada.
* Trechos do livro Cabeça de Porco, Editora Objetiva
http://www.virgula.com.br/hiphop/?CAT=MA&ID=289 – Entrevistas de Celso Athayde, MV Bill e Luiz Eduardo Soares sobre o livro.