
O livro “Francisco Félix de Souza,
Mercador de Escravos” conta a história do chachá, um baiano que fez
fama e fortuna ao se aliar ao rei do Daomé na conquista do trono,
ganhando privilégios no comércio de negros no Brasil colonial. Patrícia Cornils
Trono sagrado, do Daomé,
exilado para o Brasil.
No Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, há um
tamborete africano esculpido em madeira. Está ali pelo menos
desde 1823, quando Maria Grahan, preceptora das princesas imperiais,
registrou, em seu diário de viagem ao Brasil, que era um belo trono e
que pertencia a um príncipe africano. Seu dono era o soberano do Daomé,
um reinado situado na Costa dos Escravos, na África, onde hoje
fica a República do Benin. Não é um assento qualquer: pode ser o trono
daomeano mais antigo que existe, de acordo com Alberto da Costa e
Silva, poeta, embaixador, estudioso da história da África e autor de
“Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos”, livro lançado
em 2004 pela editora Nova Fronteira, um retrato surpreendente das
relações da cultura africana com o Brasil colonial.
A raridade guardada no Museu Nacional é um símbolo da proximidade do
Brasil com a África, desde a época da escravidão. Ao mesmo tempo, é um
dos poucos exemplares de arte africana antiga existentes no país – o
que mostra nossa falta de informação sobre a história da África e
revela o desinteresse sobre nós mesmos. O Brasil é o segundo maior país
negro do mundo. Aqui vivem, de acordo com o IBGE, 80 milhões de negros
ou pardos. Como os escravos não nasceram nos navios negreiros,
precisamos conhecer a África para entender o Brasil, diz Costa e
Silva.
O continente africano era habitado por nações estruturadas, com as
quais a Europa comerciou muito tempo antes da colonização. “O
colonizador chegava num lugar onde havia o sultão de Caarta, o
sultão de Socotô, o emir de Kano, o emir de Katsina, o maí de Bornu, o
rei de Bamum, com cortes bem organizadas, nas quais se aplicava a xariá
ou a lei islâmica. Com estruturas políticas requintadas, como os reinos
de Axante, do Daomé e do Benim, e com uma tradição de Estado tão
completa quanto a de qualquer reino saído da Idade Média européia”, diz
Costa e Silva, em uma entrevista para o site Historiador
Eletrônico.
Apaixonado desde adolescente pela África, Costa e Silva escreveu dois
dos livros mais importantes sobre a história do continente feitos no
Brasil. “A Enxada e a Lança” descreve as nações africanas, antes da
chegada dos portugueses. “A Ma-nilha e o Libambo”, por sua vez, fala da
escravidão, entre 1500 e 1700. A escravidão fazia parte da vida
africana, antes da chegada dos europeus. Era o que garantia a expansão
das riquezas de nações que viviam em territórios imensos e
possuíam instrumentos de trabalho rudimentares, explica Adelton
Gonçalves, no site NetHistória.
No ano passado, Costa e Silva lançou o livro sobre Francisco Félix de
Souza, um brasileiro, natural de Salvador, que foi um dos
O trono está no
Museu Nacional
do Rio de Janeiro.
maiores
mercadores de escravos da história e vice-rei do Daomé. Uma das
epopéias descritas no livro é a de um soberano que ficou sem seu trono.
Aqui voltamos ao tamborete sagrado que fez uma longa viagem entre a
cidade de Abomé e o Rio de Janeiro.
O tamborete do Museu Nacional pode ter sido mandado de presente a
D. João VI, em uma das embaixadas enviadas pelos reis daomeanos para
tratar do comércio de escravos. Outra hipótese é que o trono tenha
pertencido ao rei Adandozan, deposto por um parente, Guezo, em
1818. Decidir o que fazer com ele, depois do golpe, não foi uma questão
trivial. O trono é sagrado, porque nele está a essência do poder.
Assim, não pode ser queimado, jogado fora, vendido. Mais seguro
era enviá-lo para longe, e foi isso o que os daomeanos fizeram.
“Exilaram o trono. Mandaram para o Brasil”, explica Costa e Silva.
Lá sou amigo do rei
O rei Guezo é um dos principais personagens do livro de Costa e Silva.
A amizade entre ele e Francisco Félix levou o rei ao poder e
colocou o mercador em uma posição comercial privilegiada. Guezo
derrubou Adandozan não somente com armas de fogo, mas também com
tecidos finos, tabaco, cachaça e outros bens distribuídos para
conquistar apoio – todos fornecidos pelo mercador.
Francisco Félix se tornou aliado de Guezo por conta de uma desavença
comercial. Durante um período, o rei Adandozan deixou de enviar
escravos, pagos adiantados, ao mercador, que foi cobrar a dívida.
O rei, irritado, mandou prendê-lo e ordenou que ele fosse mergulhado
periodicamente em um tonel de índigo, para lhe escurecer a pele,
já que o mercador havia se valido da condição de branco para
afrontá-lo.
Guezo libertou Francisco Félix, com a condição de que o branco o
ajudasse a tomar o trono. Vitorioso, deu a ele o título de chachá
– fez dele o “melhor” ou “primeiro amigo” do rei. Também o nomeou seu
agente comercial, ao qual cabia a preferência na venda de escravos no
porto de Ajudá. A cidade era a segunda mais importante do reino
do Daomé e foi o maior posto de comércio transatlântico de escravos
entre os séculos 17 e 19.
Um pacto de sangue, realizado na prisão, uniu os dois até a morte do
mercador, em 8 de maio de 1849. “Mal soube da morte do amigo,
Guezo mandou dois de seus filhos, Dako Dubo e Armuwanu,
acompanhados de 80 amazonas, para os ritos funerários. E sete pessoas
para serem sacrificadas. E 51 peças de tecidos do país: uma para
cada um dos filhos vivos do chachá”, escreve Costa e Silva.
"Francisco Félix de Souza,
Mercador de Escravos",
publicado pela Nova
Fronteira e pela Editora
da UERJ.Francisco Félix dedicou-se a um comércio cruel, mas não foi um
degenerado ou um sádico, diz Costa e Silva. “Era um comerciante de seu
tempo, impiedoso, sem dúvida, mas comandado por seus interesses
mercantis.” Naquela época, Ajudá era um porto cosmopolita,
considerado pelos reis uma cidade impura. A recíproca era verdadeira.
Seus habitantes, fossem huedás ali nascidos ou minas, crus,
hulas, iorubás, hauçás, guns, agudás, franceses, ingleses e espanhóis
“olhavam para os de Abomé com o pavor que se tem de um dominador
bárbaro, useiro nos sacrifícios humanos e com a reputação de
antropófago”, escreve Costa e Silva. Francisco Félix serviu de
intermediário entre o Daomé e o mundo exterior, ao conectar as
cidades de Abomé e Ajudá. Durante três séculos, por conta dessa
conexão, o Oceano Atlântico foi um rio. Na margem de cá, estavam
as Américas; na margem de lá, a África.
www.nethistoria.com
Sites sobre História. Em ambos há ferramentas de busca e informações
sobre Francisco Félix. No Historiador Eletrônico, há também dicas de
livros sobre a relação do Brasil com a África.