Um negócio bem afinado
ARede nº 80 – maio de 2012
EM 2003, quando decidiu gravar seu disco de estreia, a mineira Raquel Coutinho se isolou em uma fazenda para fazer pesquisas e experimentações. Em meio ao paraíso das montanhas da Serra do Cipó, em Minas Gerais, não tinha acesso a televisão e telefone, muito menos a internet. Em 2007, quando o álbum Olho d’água
ficou pronto, o mundo fonográfico era outro. O pouco poder que ainda restava às gravadoras parecia ter se esvaído completamente, levado pela popularização da banda larga e pelo download de músicas. Cento e quarenta caracteres bem escritos conseguiam fazer mais barulho que uma campanha publicitária milionária.
Artista com repertório de vastas influências musicais, Raquel não estava preparada para o novo cenário. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se abriram portas surpreendentes: um amigo sugeriu que participasse do Estrombo, projeto do Sebrae-RJ que visa capacitar agentes culturais musicais a atuar com novos modelos de negócios e novos canais de distribuição baseados na internet e nas novas tecnologias. Com essa aproximação, Raquel teve a oportunidade de expôr seu trabalho em duas feiras internacionais, na Dinamarca e na França.
Criado em 2010, o Estrombo é inédito no mundo. Foi a primeira iniciativa de economia criativa – como são chamadas as atividades diretamente vinculadas a inovação, tecnologia e criatividade – a ser apoiada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), por meio do Fundo Multilateral de Investimentos. O
investimento total é de US$ 2,1 milhões, sendo US$ 710 mil do BID, para um objetivo central: capacitar compositores, instrumentistas, cantores e produtores a aproveitar as tecnologias digitais para administrar seus próprios negócios.
O projeto tem tudo a ver com a palavra “estrombo”, que designa uma espécie grande de caramujo marinho. “A concha do estrombo funciona como uma caixa de ressonância, que concentra e amplifica os sons. A reverberação, que gera barulhos parecidos com o do mar, é a soma dos vários ecos produzidos”, compara Marília Faria, coordenadora do projeto. Ela refere-se a uma corrente em que a venda de discos e DVDs é apenas um elo, hoje talvez um dos mais frágeis. Comércio online de fonogramas digitais, shows, ringtones, trilhas para filmes e games, direitos autorais, venda por download são alguns elementos da nova música.
Essa ressonância empreendedora já envolveu Raquel e outras 2.400 pessoas, que receberam apoio para aprender a lidar com a nova realidade, em que a proatividade dos interessados é fundamental. Aos poucos, eles percebem que é possível gerar negócios formais a partir de financiamentos, investimentos, contratações, editais etc. A ideia por trás disso é: quem quer viver de música precisa tirar as ideias da cabeça e transformá-las em projetos e, dessa forma,
passar a administrar sua arte como uma “empresa” onde se trabalha para si próprio. E de forma articulada e coletiva. “As pessoas ficam se olhando, esperando. Agora o modelo pede que os novos talentos ajam”, analisa Marília.
VENDA E CIRCULAÇÃO
O produtor Daniel Domingues, frequentemente convidado a dar palestras nas oficinas do Estrombo, concorda com Marília. Ele recorda que em passado recente o músico via-se obrigado a pagar para as rádios tocarem a chamada música de trabalho, uma prática apelidada de jabaculê, ou apenas jabá. As gravadoras tinham
investimento seguro: para cada R$ 1 investido em marketing, o retorno era de R$ 10. “Com a internet, a coisa começou a mudar. O artista é obrigado a pensar em um projeto de circulação antes de sair um disco”, diz.
A queda do modelo de venda de discos afeta artistas de todos os portes. Um exemplo é Madonna, cujo álbum MDNA, lançado em março deste ano, vendeu apenas 46 mil cópias na segunda semana de circulação. Os números são bem diferentes daqueles de 1984, quando a cantora registrou venda de 1,2 milhão de discos na segunda semana do LP Like a Virgin, estabelecendo um padrão de venda de pelo menos 475 mil unidades no mesmo período.
A atual lógica de distribuição e comercialização é uma faca de dois gumes. Para Marília, a questão do direito autoral ainda não está bem resolvida. Por outro lado, lembra que “até um adolescente sozinho em casa pode compor, gravar e vender a própria música”. E a produção pode chegar além-mar e em novos formatos. O artista carioca Oswaldo G. Pereira, de 44 anos, é um caso típico: negocia sua música até mesmo para ringtones de celular. Nada mal para um músico que depois do primeiro CD, Olha Zé, de 1998, chegou a cogitar trocar as rodas de pagode pelas papeladas dos fóruns. “O caminho da música estava muito difícil”, recorda.
Na formatura do curso de Direito, Pereira fez uma apresentação de samba para os colegas. Depois, gravou outros dois álbuns e se uniu ao Estrombo. Conseguiu mostrar sua arte em feiras internacionais, apresenta-se na Europa e negocia com gravadoras internacionais, enfrentando o desafio dos contratos que parecem
escritos em chinês. Bem, um deles é literalmente em chinês. Aí a solução é pedir ajuda à assessoria de tradutores e juristas do próprio Estrombo, que tem uma equipe para isso.
Além do Sebrae e do BID, o Estrombo fez uma parceria com o Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas (FGV), cujos professores ajudam na capacitação dos profissionais de música. Da união com o projeto Open Business, também da FGV, nasceu o programa Farol Digital, de capacitação para empreendedores de lan houses. A experiência está registrada no webdocumentário Farol Digital: a lan house como centro de inclusão social e cultural, dirigido por Lao de Andrade e que trata da importância desses espaços na inclusão digital, seja por meio de jogos, da educação ou da prestação de serviços de governo eletrônico.
O Estrombo não é um mero exportador de cultura. Alguns projetos apoiados pelo Sebrae têm como proposta agitar o interior do Rio de Janeiro com festivais e apresentações. A trupe de cinco produtores do coletivo Ponte Plural atravessa as fronteiras da região metropolitana em busca de agentes culturais dispostos a promover eventos gratuitos ou a preços populares. Mais de 600 cidades já foram mapeadas pelo Zonte Plural, segundo Luiza Boitencourt, 29 anos, uma das coordenadoras da organização. “O foco é a música, mas nos festivais tentamos integrar outras artes, como poesia, arte individual, fotografias, quadros, dança e circo. A gente sempre procura agregar, para estimular todas as áreas”, revela. Um exemplo é a Banda Tereza, que faz parceria com a Ponte Plural em
projetos como a festa “Nunca fui a Barretos”, em 2010, em Niterói.
Além de trazer artistas locais, a Ponte Plural estimula o intercâmbio. Quando o projeto chegou à região serrana do Rio de Janeiro, era distante a relação entre agentes culturais de Nova Friburgo e Petrópolis, separadas 120 quilômetros. Entre as duas cidades está Teresópolis. O jeito foi articular os coletivos dos três municípios, que passaram a receber edições dos festivais Grito do Rock e Fora do Eixo, além de diversas oficinas.
A certeza de que esse tipo de iniciativa é firme fez Luiza largar a carreira de advogada e, a partir deste ano, se dedicar exclusivamente à Ponte Plural. Confirmando uma das características da economia criativa no Brasil, de atração de pessoas das mais diversas áreas do conhecimento, o coletivo é integrado por outro advogado, um jornalista, um cineasta e uma estudante de estudos de mídia, todos dispostos a enveredar de vez para a área da cultura e em busca dos recursos obtidos por editais e leis de incentivo.
Outra pessoa que mudou radicalmente a área de atuação para trabalhar com música é a empreendedora Lizete Fregonesi. Bióloga com doutorado em fisiologia, acabou trabalhando em grandes empresas da área de finanças e com seguros. Em 2008, entrou em contato com o Sebrae para dar nova guinada profissional: criou a FRG Cultural, empresa que agencia e produz artistas do Rio de Janeiro.
Quem estiver interessado em dar uma guinada na carreira em direção à música com ajuda do Estrombo pode se cadastrar no site oficial ou participar dos eventos.
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