e Árido Movie dá o mapa para uma viagem sem preconceitos por grandes
filmes brasileiros.
Hilton Lacerda*
Helena Ignês como a pistoleira
Janete Jane, em "O Bandido da
Luz Vermelha".Para aprender a ver o cinema nacional devemos fazer um trato com
Santa Luzia: deixar os olhos sobre sua bandeja e se dispor a ver aquilo
a que eles não foram educados ou obrigados a perceber. Educar, que é
forma de libertar, também pode ser a chave do domínio. Quando a palavra
educar perde o sentido geral e se qualifica como estratégia de
dominação, podemos, não raro, perder o sentido mais agudo da capacidade
crítica. Então, encarar o cinema nacional é um exercício de deseducação
do olhar.
Por exemplo: por que achamos que o filme brasileiro é cheio de
palavrão, se é o cinema americano quem mais xinga no mundo? Por que
acusamos nosso cinema de pornográfico? A resposta é fácil: somos
constrangidos por nós mesmos. Uma abominável vergonha daquilo que somos
e fazemos. Somos educados para não gostarmos daquilo que representamos.
Partimos do princípio que o cinema do outro é melhor realizado. É como
achar que filme brasileiro bom é aquele que parece estrangeiro. Isso é
um misto de imposição e ignorância. Por isso, vamos despir os
preconceitos para submergir na tela que fala a nossa língua. Vamos
perder a vergonha daquilo que somos. Vamos perder a vergonha até para
não gostar. Para poder ver e refletir. Sem reflexão, não há opinião. Há
obediência. Deseducados, podemos subverter a ordem de compreensão e
elaboração deste cinema, para que ele se revele. A idéia é nos
tornarmos livres para refletir sobre aquilo que somos capazes de
realizar.
Na lista abaixo, tentei (não sem remorso) condensar aquilo que acho
interessante para uma possível apreciação do cinema brasileiro, abrindo
janelas para quem quiser mergulhar nesta aventura.
Rio 40 Graus (1955) – Nelson Pereira dos Santos (1928)
O primeiro filme de Nelson Pereira abriu caminho para toda uma geração
na forma de ver e narrar o Brasil – filmando na rua, dentro da favela,
com gente que falava como gente de verdade, atores não profissionais,
protagonistas negros e pobres, então uma novidade extraordinária.
Espécie de pai do Cinema Novo, deste cineasta nada se dispensa: Rio 40
graus, Vidas Secas, O Boca de Ouro, Memórias do Cárcere… Tudo!
À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1963) – José Mojica Marins (1936)
Horror dos horrores! É neste filme fantástico que Mojica lança seu
personagem Zé do Caixão, criatura que sai dos sonhos, ganha a tela e se
torna palpável pelas mãos do mais criativo e sincero realizador de
nosso cinema. Cinema invenção.
O Padre e a Moça (1965) – Joaquim Pedro de Andrade (1932/1988)
Aqui, Joaquim Pedro nos concede um dos momentos mais bonitos e
brilhantes do cinema nacional, baseado num poema de Carlos Drummond de
Andrade. E depois teve Macunaíma (1969), Os Inconfidentes (1972), etc.
A Falecida (1966) – Leon Hirszman (1938/1987)
É uma jóia. Seja pela a adaptação do texto do escritor Nelson
Rodrigues, seja a interpretação dos atores. Impressionante a construção
da fantasia suburbana brasileira. O encontro dele com a literatura
ainda rendeu São Bernardo (1971) e Eles Não Usam Black-Tie (1981).
Sujeito político. Passou Leon, corra pra ver.
Terra Em Transe (1969) – Glauber Rocha (1938/1981)
Glauber já havia detonado no Cinema Novo com Deus e o Diabo na Terra do
Sol (1964). Neste filme, com uma linguagem caótica, faz uma alegoria do
poder e da poesia, num país chamado Eldorado que se debate entre o
agrário e o urbano, o velho e o novo, a realidade e a utopia. Glauber é
de rara beleza. Lucidez não tem juízo.
O Bandido da Luz Vermelha (1969) – Rogério Sganzerla (1946/2004)
Impressionante thriller experimento do cinema brasileiro, livremente
baseado numa história real. Sganzerla é a proa do barco com seu cinema
inconformado, poético, descabelado. Disse um sonoro não ao Cinema Novo.
Matou a Família e Foi ao Cinema (1967) – Júlio Bressane (1946)
Cinema é subversão. E assim, com estruturas fora da ordem, ele cresce.
Quem quer ver onde esse cinema vai dar basta seguir o fio deixado por
esse cineasta pelos labirintos. Filme de Amor (2003) é um bom resultado
deste incrível manipulador de pensamentos.
Toda Nudez Será Castigada (1973) – Arnaldo Jabor (1940)
Este é um dos momentos mágicos do cinema brasileiro. Neste filme, o
universo suburbano do imaginário de Nelson Rodrigues é tratado com
minúcias narrativas incríveis. É melhor ver esse Arnaldo de ontem, que
assistir o Jabor de hoje.
A Lira do Delírio (1978) – Walter Lima Jr. (1938)
Filmada em períodos diferentes, foi em 1978 que a obra ficou pronta,
coroando um dos cineastas mais instigantes do Cinema Novo. O seu Menino
de Engenho (1965) já revelava o artista maduro e alucinado desta Lira.
A gentileza em pessoa, em tudo o que faz.
Amor, Palavra Prostituta (1982) – Carlos Reichenbach (1945)
Esse gaúcho é filho dileto do cinema paulista. Um cinema feito às
avessas daquilo que se praticava naquela época. Também fez Filme
Demência (1987) e Os Anjos do Arrabalde (1986), um retrato da vida na
periferia de São Paulo, por meio de um olhar agudo sobre os desejos de
seus personagens. E tem mais. Quem procura acha.
Cabra Marcado Para Morrer (1984) – Eduardo Coutinho (1933)
Dá uma panorâmica do Brasil em vinte anos de história. É mais do que um
dos melhores documentários brasileiros, é um dos melhores cinemas
brasileiros. Como o diretor produz em abundância, é melhor nunca perder
o que ele mostra, mesmo que você discorde.
Cena de "Um Céu de Estrelas"Um Céu de Estrelas (1997) – Tata Amaral (1961)
Escolhido pelo que representa em determinado período do cinema
nacional. Nasceu com uma geração que começou a repensar as estruturas
narrativas do cinema. Filme nervoso. Fazem parte dessa trupe Carlota
Joaquina (Carla Camurati, 1995), Os Matadores (Beto Brant, 1997) e
Baile Perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1998). Momento de
brilho no Brasil. Ver tudo.
Amarelo Manga (2003) – Cláudio Assis (1958)
Boa referência para o cinema atual. Visceral e mal-educado, é bom
contraponto em relação ao cinema mais bem-comportado (tecnicamente e
narrativamente falando).
Estes filmes estão disponíveis no Itaú
Cultural (www.itaucultural.org.br), gratuitamente, em vídeo, ou
para aluguel nas locadoras da 2001 Video, em São Paulo, com exceção de
“O Padre e a Moça” e de “Amor, Palavra Prostituta” — ambos com
lançamento comercial previsto.
*Roteirista (“Amarelo Manga”, “Baile Perfumado”, “Árido Movie”) e
diretor (com Lírio Ferreira), de “Cartola”, com lançamento previsto
para 2006.