Cultura

O fim da festa no Ecad

O escritório que faz arrecadações de direitos autorias sofre investigações e cresce pressão por controle estatal  

Lúcia Berbert

Edição  nº 70  junho de 2011 – Tanto no meio artístico quanto na opinião pública, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) nunca esteve com a imagem tão abalada. Instituição privada de gestão coletiva, que reúne associações de profissionais como autores, produtores e intérpretes, o Ecad vem enfrentando sucessivas denúncias de irregularidades, especialmente no que se refere à distribuição dos valores devidos aos músicos.

As reclamações são antigas, conhecido canto entoado por artistas de mais de uma geração, desde que o escritório foi criado, em 1973. Mas parece que está chegando a hora de acender as luzes e acabar com a festa. Para apurar tantas denúncias, foi realizada, no final de maio, uma audiência pública na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados, em Brasília. Também no mês passado, foi aprovada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), no Senado Federal. A proposta foi do deputado federal Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), que ainda conseguiu marcar uma audiência pública na Comissão de Educação dessa Casa, com o mesmo objetivo. Outra CPI para investigar o funcionamento do Ecad foi instalada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, proposta pelo deputado estadual André Lazaroni (PMDB).

E mais: foi reaberto um processo na Secretaria de Direito Econômico (SDE), do Ministério da Justiça, que visa apurar a forma como as associações de artistas e o Escritório estipulam os valores a ser pagos pelos direitos autorais.
O processo foi iniciado em julho de 2010, a partir de uma queixa das empresas de TV por assinatura, que pagam ao Ecad 2,55% de sua receita bruta, ou mais de R$ 250 milhões por ano. Para o Escritório, a TV Globo é a responsável por essa “campanha difamatória” porque tem uma ação contra o Ecad no Superior Tribunal Justiça. A Globo tenta manter o valor mensal pago à entidade de R$ 3,8 milhões, em vez dos
R$ 10,4 milhões reivindicados pelo escritório. Em um ano, seria o equivalente a 27% do total recebido pelo escritório em 2010 (R$ 433 milhões).

Pode ser. Porém, deputados e senadores acreditam que as desconfianças sobre irregularidades no Ecad não seriam tão grandes se o órgão fosse mais transparente e aceitasse a criação de uma instância de supervisão ligada ao Ministério da Cultura (MinC). Esse tipo de controle do Estado fazia parte da proposta de revisão da Lei de Direitos Autorais (LDA – 9.610/98), elaborada pelo ex-ministro Juca Ferreira, após intensas discussões e consultas públicas.

Só que a nova ministra da pasta, Ana de Hollanda, que decidiu reabrir o debate sobre a lei, se mostrou inclinada a tirar da proposta essa fiscalização governamental. Agora, diante das manifestações contrárias, inclusive de músicos, dá indícios de que pode recuar. Segundo o coordenador de Regulação em Direitos Autorias do MinC, Cristiano Lopes, a ministra vai estabelecer uma supervisão ao Ecad. Mas “com muito cuidado, para que essa ação não se transforme em intervenção”. Ele reconhece que a atuação do órgão é constantemente criticada: “De um lado, nós temos os usuários insatisfeitos com a arrecadação, porque acham que estão pagando muito; e, de outro, temos os autores, que acham que recebem pouco, especialmente aqueles que têm menor expressão”, disse.

Na proposta anterior de reforma da LDA, a supervisão estatal se daria por meio do registro. O Ecad deveria se cadastrar no MinC e cumprir vários requisitos, como apresentar todos os documentos que o ministério julgasse necessário para autorizar a gestão coletiva dos direitos autorais. Qualquer irregularidade constatada poderia resultar na perda desse registro, o que impediria a arrecadação.

A ministra, reconhecidamente “autorialista”, na definição de Lopes, entende que as instituições civis, por direito constitucional, não podem sofrer intervenção do Estado. Especialmente, diz, porque o Ecad é eminentemente privado, não recebe recursos públicos. “É preciso estabelecer limites para essa supervisão para que não se torne inconstitucional, pois o direito do autor é protegido pelo artigo 5º da Constituição”, defende. Esse artigo da proposta da Lei de Direitos Autorais voltou para consulta pública e deve mudar.

Muitas vozes divergem da ministra e apóiam a supervisão estatal da arrecadação de direitos autorais decorrentes da execução pública de músicas nacionais e estrangeiras. Para o deputado Marcelo Aguiar (PSC-SP), um dos autores do requerimento para a realização da audiência, deve, sim, haver um órgão fiscalizador da cobrança, da arrecadação e da distribuição dos direitos autorais. “Para onde vai o dinheiro que está retido no Ecad? O que é feito com esse recurso? Este é um momento importante de dar uma orientação para o que tem de ser mudado no Escritório”, diz.

Outro autor do requerimento que resultou na audiência pública, o deputado Sandro Alex (PPS-PR) acredita que o problema do Ecad não está na arrecadação porque hoje o Escritório “demonstra competência” – uma vez que a arrecadação subiu de R$ 100 milhões para quase R$ 500 milhões, ainda que haja suspeita de irregularidades na cobrança. “A discussão é a aplicação desses recursos, a forma como está sendo feita a distribuição. Porque existem hoje grandes autores que não recebem o valor devido e autores desconhecidos, e até fantasmas, que estavam recebendo indevidamente”, denuncia.

Ele quer saber por que o Ecad rejeita qualquer tipo de controle: “Estamos falando de um órgão que é privado, criado na época da ditadura, que arrecada, distribui, aplica multa e fixa preço. Então me parece lógico e necessário que haja uma supervisão do governo”.

Opinião semelhante tem Pablo Ortellado, representante do Grupo de Pesquisa de Políticas Públicas de Acesso à Informação (GPopai), da Universidade de São Paulo. No seu entendimento, o Ecad detém o monopólio da arrecadação e distribuição de direitos autorais pela execução pública de músicas e necessita de uma supervisão até para assegurar a democracia e a transparência da atividade, sobretudo em relação aos critérios de cobrança e de distribuição dos valores. “Não tem setor no país que desenvolva atividade monopolista que não tenha fiscalização pública”, destaca.
A superintendente-executiva do Ecad, Glória Braga, afirmou, na audiência pública da Câmara, que o Estado não deveria interferir sobre a administração de bens particulares: “Precisamos saber claramente qual é a proposta. Não podemos dizer que discordamos ou concordamos. Queremos saber como será”. Ela entende que, em princípio, a supervisão jamais poderia ser feita pelo poder público. “São bens de natureza privada, o direito autoral é um bem privado do compositor”, insiste.

O debate vai continuar no Congresso Nacional e também na sociedade. A Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara já pensa em criar um grupo para acompanhar as alterações no Ecad que serão incluídas na proposta de revisão da Lei de Direitos Autorais.

Abusos e Omissões

O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) é uma instituição privada, sem fins lucrativos, criada pela Lei 5.988/73 e mantida pela Lei Direitos Autorais (9.610/98). Esse escritório centraliza toda a arrecadação e a distribuição dos direitos autorais de execução pública musical, inclusive por meio de radiodifusão e transmissão por qualquer modalidade, e de exibição de obras audiovisuais.

O escritório é administrado por nove associações de música, que representam autores, intérpretes, produtores fonográficos, músicos e editores nacionais e estrangeiros filiados. A sede é no Rio de Janeiro, mas existem 28 unidades arrecadadoras. São 771 funcionários e 123 agências credenciadas, principais responsáveis pela fiscalização do recolhimento dos valores devidos ao Ecad na ponta.

O cálculo do direito autoral é realizado de acordo com os critérios estabelecidos pelas associações que integram o escritório. Existe o Regulamento de Arrecadação e a tabela de preços. Os valores são calculados levando em conta a importância da música para o negócio e um percentual sobre receita bruta, quando há vendas de ingressos, couvert artístico ou qualquer outra forma de cobrança para que as pessoas tenham acesso ao local de execução musical.

Leva em conta também a atividade do usuário, o tipo de utilização da música (ao vivo ou mecânica) e, em menor escala, a região socioeconômica onde é executada. Grandes empresas, como emissoras de televisão e rádio, têm de pagar 2,5% do seu faturamento ao Ecad.Dos valores arrecadados, 75% são repassados aos titulares filiados, 7,5% às associações e 17% ao Ecad. Com isso, o escritório ficou, no ano passado, com mais de R$ 73 milhões dos R$ 433 milhões arrecadados. Em audiência pública realizada em maio, na Câmara dos Deputados, os recursos para administração do Ecad foram considerados elevados pelos deputados. Mas o presidente da Associação Brasileira de Música e Arte, Roberto Mello, disse que esse percentual já foi de 38% e vem baixando paulatinamente.

Outra crítica dos deputados diz respeito ao verdadeiro “poder de polícia” que os fiscais do Ecad exercem irregularmente na cobrança dos direitos autorais. Também reclamam da abrangência da cobrança, uma vez que até consultório médico que tenha uma televisão ou rádio ligados na sala de espera precisa pagar pela música transmitida, mesmo que a arrecadação tenha sido cobrada das emissoras. Sequer os autores das músicas escapam da cobrança em seus próprios espetáculos.

Acima de tudo, as críticas recaem sobre a falta de transparência do escritório, que presta contas de forma limitada aos músicos e à sociedade. “O Ecad se limita a divulgar um balanço anual, que não tem informações precisas sobre o quanto é destinado a cada titular do direito e com base em que critérios a distribuição foi feita”, aponta Pablo Ortellado, do Grupo de Pesquisa de Políticas Públicas de Acesso
à Informação (GPopai), da Universidade
de São Paulo. (L.B.)