Dengue: direitos e deveres.



A relação entre a atual epidemia de dengue e a exclusão social pode
parecer óbvia, mas não é. O senso-comum já tem suas explicações para o
fenômeno, sendo uma delas a de que a doença resulta do fracasso da
atuação dos órgãos de saúde, acusados de serem cada vez menos eficazes
no controle das endemias, ao contrário do que se fazia no início do
século XX. Outra: a permanente ameaça da dengue e de outras doenças
decorre da falta de verbas e de decisão política, culpando-se, neste
caso, de forma bastante genérica, o governo, todos os governos, não
importa qualificá-los. E mais uma: a culpa é da população, que não joga
fora a água de suas violetas.

Mas a verdade está mais além, como no adágio atribuído a Confúcio: o
sábio aponta a lua e o tolo não vê mais do que o dedo… Comecemos
pelos cidadãos. Parece que já não são os mesmos do tempo de Oswaldo
Cruz, que realizou uma cruzada lembrada com nostalgia, mas marcada por
forte autoritarismo intervencionista. Hoje, é bom lembrar, já não se
entra nas residências e nem se intervém nas cidades impunemente. A
Revolta da Vacina já anunciava o réquiem da velha Saúde Pública.

Com efeito, mudou muito a sociedade. Entraram em cena a “Era de
Direitos”, a comunicação de massa, a globalização, a planetarização da
política, tendo como resultado a tendência universal de organização de
interesses, fazendo com que, bem ou mal, a intervenção estatal sobre a
vida social necessite cada vez mais da legitimação dos cidadãos. Há
ainda o impacto das tecnologias sobre o controle das doenças, por
exemplo, das vacinas, inseticidas, quimioterápicos e larvicidas, ou
ainda, no que se refere àquelas destinadas a outras finalidades, mas
que podem afetar o curso natural das epidemias. Neste aspecto, é hoje
enorme o impacto sobre a natureza do acúmulo de artefatos de plástico,
borracha, pneus usados e sucatas, inteiramente desconhecido há cem anos.

O passado também não conhecia essa verdadeira patologia da vida social
que é o crime organizado transformado em ator social, provendo a
sociedade de benefícios sobre os quais o Estado se omite. Nas favelas
do Rio de Janeiro, por exemplo, ocorre a submissão das equipes de
controle do mosquito aos traficantes, que impõem salvo-condutos para
circulação destes agentes. Fica assim fora de cogitação, por
interditado, o mapeamento das áreas afetadas, instrumento indispensável
para as medidas de controle. Também o Estado brasileiro já não é o
mesmo; no caso da saúde, pelo menos, está cada vez mais
descentralizado, com a implantação do SUS. De fato e de direito, foram
acrescentados ingredientes novos à ação sanitária estatal, que não mais
se arvora à velha ação militarizada.

Concluindo, dengue é um problema complexo, de fundo ecológico, cultural
e político. As soluções devem caminhar na mesma medida. Inclusão, mais
uma vez, é palavra-chave, mas acompanhada de educação e de
responsabilização, dos governos, dos cidadãos. Mas há que considerar
isso de forma ampla, para além dos fatores materiais e econômicos, pois
se, de um lado, há o papel irrecorrível do Estado, garantindo a
inclusão social, traduzida pelo acesso às oportunidades e facilidades
para uma vida digna, do outro, estão direitos e também deveres
pertinentes à cidadania, como o respeito ao outro, à natureza e às
normas do bem viver coletivo.


*Doutor em Saúde Pública; pesquisador da Fiocruz-DF (goulart.fa@gmail.com).