Dez mandamentos ao pé do Monte Sinai

Técnicos e formuladores de políticas para a internet debatem temas fundamentais para o futuro da rede. Neutralidade e padrões abertos são dois deles.

O site Ars Technica publicou uma matéria muito bacana sobre o Fórum de Governança da Internet, que aconteceu entre os dias 15 e 18 de novembro em Sharm el Sheick, no Egito, muito perto do Monte Sinai. O Monte Sinai é onde, de acordo com a Bíblia, Moisés recebeu os Dez Mandamentos. No encontro, Ian Peter, historiador da internet perguntou: quem topa escrever os Dez Mandamentos da Internet? As pessoas que levantaram a mão, na platéia, fazem parte da alta cúpula das organizações que criaram os princípios da rede em 1960 e que hoje representam organizações como a Internet Society, o World Wide Web Consortium (W3C) e a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN). Eles falam, aqui, sobre as questões mais importantes para a internet. É por isso que a matéria vale a leitura.

Daniel Dardailler, do W3C, disse que “os princípios da ciência da computação exigem que as camadas de rede funcionem de maneira independente umas das outras. A web (interface gráfica) roda em cima da internet (a rede de protocolos e computadores). Essa separação é importante. Tudo tem que ser extensível.” Extensíveis são programas, linguagens, protocolos desenhados de maneira que os usuários possam acrescentar recursos. “Tem que ter apenas um
root – uma identidade única. A web está gerando dados e não queremos que os dados trafeguem mais rapidamente em um site sem que saibamos que isso está acontecendo. A tecnologia da internet é de padrões abertos e de códigos livres. Todo mundo deve poder testar os sistemas em sua própria plataforma. Queremos tecnologias que não paguem royalties. Isso é importante para a web. Hoje somos a camada do topo – mais tarde haverá outras coisas, mas agora somos a interface. Todos precisam ter acesso ao sistema. Ele deve ser visível em todo o tipo de aparelho. A separação entre a implementação da rede e o conteúdo é a coisa mais importante de todas. Sites têm que ter metadados”. (Metadados são dados sobre outros dados. Podem dizer do que se trata aquele dado, geralmente uma informação inteligível por um computador. Os metadados facilitam o entendimento dos relacionamentos e a utilidade das informações dos dados).

“O princípio que perpassa tudo o que eu disse é o da escolha. Eu compro um computador na França, chego no Egito, há uma rede WiFi no meu hotel e posso usar. Não queremos chegar ao ponto de haver incompatibilidades (que impeçam este uso). A internet sempre esteve na vanguarda em relação a permitir às pessoas que definam como se dá a comunicação”.

Alun Michael, membro do parlamento inglês e formulador de políticas para a internet, disse que é preciso ser cuidadoso ao escolher o que é importante, mas não forçar a barra. “Precisamos escolher três pontos”, ele explicou. “Primeiro, estamos lidando com um futuro que ainda não foi inventado. As técnicas de administração da indústria, dos governos e a comunidade internacional são muito lentas para acompanhar as mudanças na internet. Segundo, os valores centrais são valores técnicos e eles afetam toda a sociedade, não apenas os engenheiros. As cidades nem sempre funcionam como seus arquitetos as conceberam. Estamos falando de pessoas. Precisamos também ouvir os jovens, precisamos entregar isso a eles. Eles falam sobre essas questões de uma maneira completamente diferente e há uma opotunidade real e poderosa de usar de maneira positiva este engajamento e talento.”

“Terceiro, o Fórum de Governança da Internet precisa se comunicar com os legisladores que não se importam com este processo de nenhuma forma. Os formuladores políticos estão afundados em questões sobre a segurança no ciberespaço. Nós precisamos dar uma resposta proporcional a suas preocupações. Minha citação favorita sobre fazer leis vem dos anos 1890: ‘As leis raramente evitam o que querem proibir’ Temos a oportunidade de fazer uma governança bem melhor em relação ao mundo real. As propostas para resolver problemas ameaçam os valores centrais da internet? Temos que provar que a abordagem colaborativa funciona. Depende das pessoas certas nos momentos certos fazerem algo a respeito. Precisamos apresentar soluções em vez de contar com o último recurso dos formuladores de políticas, que é legislar e regular”.

Nathan James, o diretor do OneWebDay, trouxe para a discussão a importância do Artigo 19 da Declaração dos Direitos Humanos. Toda pessoa tem o direito de liberdade de opinião e expressão; o direito inclui a liberdade de manter suas opiniões sem interferência e de buscar, receber e transmitir informações e ideias por qualquer mídia, independente de fronteiras.

“É uma expressão linda do direito humano mais sagrado”, disse ele. “Meu argumento é que o real valor da internet é sua rede humana de usuários e que uma discussão sobre seus valores centrais deve começar pela consideração dos valores humanos dos usuários. Eles valorizam os princípios end-to-end, os de sistemas abertos de inovação, um root seguro, a mais moderna versão do protocolo IP? Se valorizam, a maior parte deles não sabe disso. Em vez disso, os usuários valorizam a internet como uma expressão de seus mais profundos valores e aspirações: expressão, colaboração, divergências, liberdade, democracia, família, amizade, comunidade, oportunidade, justiça e mesmo lazer”.

Alejandro Pisanty, líder há muito tempo tanto da Internet Society quanto da ICANN, disse que vê os valores fundamentais da internet sob ameaça. “A internet foi criada como um meio de comunicação entre computadores”, ele disse, explicando que nos primeiros anos da computação ninguém imaginava que a rede assumiria a escala de bilhões de usuários. “As organizações que regulamentam padrões não imaginavam que isso seria tão sério. Nenhuma rede é simples. O poder de processamento dos computadores era limitado. Era preciso fazer coisas muitos simples para comunicar. Havia uma hierarquia horizontal. O Request for Comments (RFC) 760 (um dos que definiu o padrão para o protocolo IP) tem muitas frases e afirmações interessantes, inclusive ‘Seja liberal com o que você recebe e conservador com o que envia’. Isso mais tarde se tornou parte do RFC 1855, sobre etiqueta na internet. Ela traduz aquelas afirmações para o campo ético da abertura e tolerância de comunicação. (RFC ou Request for Comments — Solicitação de Comentários – são documentos editados desde 1969 e que descrevem aspectos relacionados com a Internet, como padrões, protocolos, serviços ou recomendações operacionais. Cada protocolo ou tecnologia de Internet é descrito por uma ou mais RFC.)

Pisanty acredita que esses valores estão em risco. “Eles podem ser ameaçados. Pode começar com coisas que vêm do mundo corporativo. Não se pode privilegiar um produto em relação a outros. Todos os pacotes são iguais. Isso pode vir do desejo de trazer de volta o modelo de redes com donos – como as das companhias telefônicas – as pessoas tentam fazer isso acontecer o tempo todo. Este é um dos truques no qual não podemos cair. Temos que olhar com muito cuidado do ponto de vista da internet para não permitir que a abertura seja esmagada por obstáculos inseridos na tecnologia ou por outros meios.”

Ian Peter então tomou a vez, dizendo que “a internet é uma ferramenta extraordinariamente poderosa e útil para nosso desenvolvimento. Em 1988, Brian Carpenter afirmou que o princípio da mudança constante é provavelmente a única coisa que vai continuar mudando indefinidamente. Em meio a tanta mudança, o que precisamos proteger? O que torna isso tão É uma tarefa enorme e é isso que a torna tão instigante”. Ele listou alguns dos valores fundamentais que aprecia – sua lista de possibilidades para os Dez Mandamentos:

1. Independência das aplicações

2. Novas aplicações podem ser adicionadas a qualquer momento, isso é um valor fundamental

3. Inovação sem necessidade de pedir permissão

4. Padrões abertos

5. Globalmente acessível e inclusiva – qualquer um pode usar

6. Escolha do usuário — Posso escolher quais aplicações usar e para onde quero levá-las

7. Facilidade de uso — Posso usar a internet em minha língua, posso usar a partir de qualquer equipamento que conheço

8. Liberdade de expressão

9. Habilidade de mudar rapidamente

10. Confiabilidade é um valor no qual temos que trabalhar, precisa se tornar um valor fundamental

Depois de completar sua lista, Peter propôs sua comparação esperta. “Por coincidência”, disse, “são dez. Estamos à sombra do Monte Sinai. Se tivéssemos uma boa comunicação remota, poderíamos ir até lá em cima e escrever tudo isso em tábuas de pedra.

“Não acredito que [fazer uma lista assim] seja trabalho de uma só organização. Gostaria que nós, do IGF, nos envolvêssemos no trabalho de levar isso à frente. Precisamos achar um jeito para que todo tipo de pessoa que acredite nesses valores expressem isso e colocar tudo em um documento.” (Do Ars Technica)