Artistas populares criam letras que representam mais do que palavras. Registram histórias de vida.
Patrícia Cornils
Seu Juca, letrista pernambucano,
admirador dos vermelhos de
Van Gogh
As letras, que formam a “imagem” das palavras, estão em toda parte. Estamos tão acostumados a vê-las que já não percebemos que ainda existem letras artesanais, nas ruas das cidades, competindo com padrões industriais. Este artesanato escapa a uma grande escola de design que defende a neutralidade do desenho das letras, de maneira que não se sobreponham ao que as palavras querem dizer: “compra-se”, “vende-se”. Antes das letras impressas, anúncios e placas eram feitos manualmente por letristas. Esse trabalho ainda existe, principalmente em cidades fora dos grandes centros, onde não se popularizou o uso de computadores e plotters – grandes impressoras. O que as letras artesanais têm de diferente? Ao contrário dos “tipos” ou “fontes” (palavras que os designers usam para definir as letras) impressas, não são neutras. Cada artista as desenha a seu modo e elas acabam trazendo mais informações do que a mensagem que veiculam.
“Como esta inscrição foi produzida? Por que foi produzida desta forma? (…) Quem a produziu? Os vestígios do fazer impelem o leitor ao encontro de um cotidiano compartilhado”, diz um texto sobre tipografia popular feito por Bruno Guimarães Martins e Paulo Bernardo Ferreira Vaz. Com perguntas assim, Pedro Moura, designer do Rio de Janeiro, decidiu fazer seu trabalho de conclusão de curso na Universidade Federal do Rio de Janeiro acerca da tipografia popular. “Não havia muitos desses letreiros na Zona Sul. Mas no caminho para o Fundão, onde fica a universidade, a gente vê que fazem parte da cultura da cidade”, diz ele.
Pedro explica que essas letras não têm a pretensão de serem universais, nem o purismo estético dominante no design. “Falam das tradições do lugar onde são criadas”, diz. Vinícius Guimarães, cujo trabalho de conclusão de curso também foi sobre tipografia popular, explica que estudar o assunto foi “uma forma de valorizar minha cidade (São Gonçalo-RJ), um centro riquíssimo em relação a esse tipo de material”. O trabalho de Vinícius está na internet, no site “Tipografia Artesanal Urbana”. Com base na pesquisa realizada nas ruas, ele criou as fontes Cabeça, Contexto, Filezim e X-Tudo. A pesquisa de Pedro Moura também gerou um site, que chegou a ter onze famílias de letras. “Tipos Populares” está fora do ar, mas pode-se ver, na página disponível, a variedade de desenhos.
Estética da exclusão
A relação entre cultura popular e erudita aparece no trânsito dessas letras pela sociedade. Como bem observou Pedro, sua distribuição geográfica representa uma estética da exclusão. Onde há dinheiro e tecnologia, as artesanais desaparecem. E voltam na forma de releituras que podem tanto valorizá-las quanto as transformar em exemplos exóticos de que esses autores cometem erros de português – o que revela o preconceito de quem lê. Esse vai-e-vem de informações foi descrito pelo compositor Fred Zeroquatro, do Mundo Livre S.A., no refrão “não espere nada do centro, se a periferia está morta/ pois o que era velho no norte se torna novo no sul”. As letras populares também chamaram a atenção de Vinícius para isso. “Comecei a enxergar de maneira diferente o que ocorre quando o popular se ‘alimenta’ do erudito e produz resultados surpreendentes. Acho que isso explica um pouco do nosso país”, diz ele.
Uma expressão usadas para definir essas letras, “tipografia vernacular”, mostra como muda, ao longo da história, a noção de popular e erudito. “Antes do aparecimento da cultura impressa, as linguagens européias eram consideradas línguas vernáculas, em contraste ao latim e ao grego oficial, usadas pelas classes instruídas”, relata um texto de Vera Lúcia Dones, designer gaúcha. “O termo vernacular sugere a existência de linguagens visuais e idiomas locais, que remetem a diferentes culturas. Na comunicação gráfica, corresponde às soluções gráficas e tipográficas ligadas aos costumes locais, produzidos fora do discurso oficial (…)”, explica ela.
Essa produção pode ser apropriada de maneiras diversas pelo discurso “oficial”. Um exemplo é a história de Seu Juca, João Juvêncio Filho, e de Oscar Malta. Oscar leu, um dia, uma matéria sobre Seu Juca. Havia sido escrita por Priscila Farias, que desenvolveu, a partir do trabalho de Seu Juca, fontes com esse nome. O personagem da matéria era conhecido de Oscar: sempre pedia ajuda, dinheiro e comida, à porta da casa do designer em Recife. “Chegando em casa, com a revista na mão, dei de cara com ele”, conta Oscar. “Parecia filme”. Virou filme de verdade, realizado em 2004. “Um retrato 3×4 que revela o começo e o fim de todas as cores, com a delicadeza das agruras da vida”, descreve Oscar, diretor de “Seu Juca, o letrista pernambucano”.
O trabalho de Priscila Farias e de Crystian Cruz, criador da fonte Brasilêro, inspirou uma nova geração de profissionais, como Pedro, Vinícius e Fátima Finizola, da Corisco Design Gráfico, a se debruçar sobre esse universo. Isso só foi possível a partir dos anos 90, quando a computação gráfica começou a permitir a geração e reprodução de letras baseadas em trabalhos artesanais. Várias fontes estão na internet para ser baixadas gratuitamente. Caso da 1Rial, de Fátima. “Encontrei a letra em um muro, disponível, de graça, e decidi mantê-la assim”, diz ela. Isso não quer dizer a letra foi copiada: há muito investimento “escondido” nas releituras, desde o desenvolvimento do alfabeto inteiro até os recursos necessários para produzi-lo. Por isso, há também maneiras diversas de colocar essas fontes em circulação: tanto podem ser vendidas, para remunerar o trabalho, quanto colocadas no ar gratuitamente.
Apropriação desigual
O problema é quando a apropriação é feita de maneira desigual, e aqui voltamos a Seu Juca. A agência de publicidade Ampla, de Recife, usou uma placa feita por ele em um anúncio da cachaça Pitu. Seu Juca não sabia a finalidade do trabalho, pelo qual recebeu R$ 10,00, conta Oscar. “Pensei em iniciar um processo para que ele pudesse ser remunerado justamente, mas sua morte, em 2006, me deixou triste e sem ânimo para isso”, explica.
No Popular de Luxo, site de Bogotá, há lindos exemplos de como a gráfica popular inspira criadores e gera uma relação de respeito com os personagens da construção coletiva que são nossas cidades. O Popular de Luxo faz “uma declaração básica: nós gostamos dessas coisas e gostamos de ser daqui. As peças gráficas que fazem parte desse site são peças pelas quais sentimos carinho, admiração e um profundo respeito (…) Queremos também lançar uma nova luz sobre nossos costumes e modos de ser (…). Remover o musgo dos pilares de nossa cultura é vital para nos sentir seguros, nos reafirmar e poder dialogar sem complexos com o mundo”. Seu Juca, que achava os vermelhos de Leonardo da Vinci os mais lindos do mundo, e que produzia seus próprios vermelhos, provavelmente concordaria.
www.tipospopulares.com.br – Página temporariamente fora do ar, mas há exemplos de letras neste link. Pedro Moura, o organizador pedromoura@gmail.com, tem uma bela apresentação sobre sua pesquisa de tipos populares.
www.crimestipograficos.com – Site do pessoal da Corisco Design Gráfico, de onde se pode baixar a fonte 1Rial e onde há (veja o link Zine) fotos de Damião Santana com placas do Morro Alto Zé do Pinho, de Recife.
www.populardelujo.com – Popular de Luxo.
www.flickr.com/photos/crystiancruz/sets/72157604030965659/ — Flickr de Crystian Cruz, autor da Brasilêro.
www.fundarpe.pe.gov.br – A Fundação do Histórico Patrimônio e Artístico de Pernambuco patrocinou o filme “Seu Juca, o letrista pernambucano” e recebeu 200 cópias em DVD. O diretor é Oscar Malta: omsmalta@hotmail.com.