Eduardo Coutinho fez um filme genial — que não poderemos ver.

O filme "Um dia na vida" é feito a partir de 19 horas de filmagem da programação de televisões brasileiras, e não pode ser veiculado porque seria impossível pagar os direitos autorais dessas imagens.

03/11/2010

Inácio Araújo, uma das pessoas que mais entende de cinema no Brasil — porque ama o cinema como poucas pessoas amam — está escrevendo em seu blog no UOL uma série de posts sobre “Um dia na vida”, o mais novo filme de Eduardo Coutinho. Pelas notícias de Inácio, o filme é maravilhoso. Mas provavelmente nunca chegará às salas de cinema nem será distribuído. O que significa que muito provavelmente não poderemos ver.

Por que? Por causa dos direitos autorais. O filme é uma costura de imagens retiradas de 19 horas de programação da tevê. Na projeção também estava Jean Claude Bernadet, crítico, roteirista, ator e estudioso de cinema — outro apaixonado –, que escreveu em seu blog: “A 643ª sessão da 34ª Mostra Internacional de Cinema ficará HISTÓRICA: projeção do material de pesquisa captado por Eduardo Coutinho na TV para um ‘filme futuro’ desafiou a Lei dos Direitos Autorais.”.

Veja abaixo o que Inácio escreve sobre a questão dos direitos autorais. No blog do Inácio, o Cinema de Boca em Boca, há mais informações sobre “Um dia na vida”.

O primeiro [sentido do filme], mais alarmante, é de que o filme possivelmente não tenha mais nenhuma exibição pública consentida. Exibição sem cobrança de ingresso e também sem aviso prévio, senão já haveria alguém tentando proibi-la.

Ou seja, eis aonde chegamos: se os piratas não distribuírem, não haverá distribuição alguma.

A questão, a primeira, é que está cada vez mais difícil ao cinema fazer qualquer registro do mundo real. Se você quer mostrar como funciona uma padaria de manhã tem que se acertar com o dono do lugar, o padeiro, o cara do caixa, os atendentes e os fregueses. Isso se não precisar pagar alguma coisa aos donos da marcas no balcão.

As leis de direitos autorais são um inferno, um absurdo. Qualquer um que já tenha aparecido no mais modesto documentário, num programa de TV do canal universitário às 3h da manhã, sei lá, sabe que, assim que acaba a gravação aparece um fulano com um papel pra você assinar, cedendo direitos e blábláblá.

Claro que isso não vai acabar com o cinema, mas, pior, tende a acabar com a realidade no cinema, o que talvez seja pior. Hoje em dia o cara que atravessa a calçada no fundo da imagem é um figurante, nunca um passante.

Se fosse fazer “Roma, Cidade Aberta” hoje em dia Rossellini teria de pagar direitos até pra os herdeiros do Hitler. Se fosse fazer “Alemanha, Ano Zero”, teria de dar direitos autorais aos caras que bombardearam Berlim. É ridículo, mas também catastrófico.

Todo mundo deve lembrar de uma biografia do Garrincha, que foi proibida porque a família queria direitos sobre a vida do jogador. E levou!!!
Há uma biografia do Roberto Carlos que foi proibida porque não foi autorizada pelo biografado. De maneira que, com a ajuda de nossa justiça catástrofe, daqui a pouco só será possível publicar autobiografias.

Para cinema a coisa é pior porque afeta diretamente nossa percepção das coisas. Uma delas: há décadas não podemos ver “A Hora e Vez de Augusto Matraga” por conta de umas disputas familiares, coisa de herdeiros. É o fim do mundo. Deviam mandar os herdeiros do Guimarães Rosa trabalhar e cuidar da própria vida.

Mas é nesse pé que estamos.

Por que isso acontece com o filme do Coutinho? Por que será esse uma coisa, um filme invisível?

Porque o filme consiste na filmagem de 19 horas de programas de TV ao longo de um dia, das quais extraiu-se a hora e meia que foi possível ver na sessão do cine Livraria Cultura (ex-Bombril, ex-Cinearte, ex-Cine Rio).

Sessão preciosa, porque única. Lamentável também, pelo mesmíssimo motivo.

Então, essa irrealidade do cinema, esse cerceamento brutal da imagem que existe hoje, esse constrangimento abusivo que se toma por direito autoral, não só com esse filme, mas com qualquer outro, é uma das coisas imperdoáveis do tempo atual.”