Educação sem camisa-de-força

A professora Léa Fagundes, coordenadora do Laboratório de Estudos Cognitivos (LEC), da UFRGS, conta por que acredita no laptop XO para revolucionar os processos de ensino no país. Ela também está pilotando os testes com o equipamento numa escola pública de Porto Alegre.


A professora Léa Fagundes,
coordenadora do Laboratório de Estudos Cognitivos (LEC), da UFRGS,
conta por que acredita no laptop XO para revolucionar os processos de
ensino no país. Ela também está pilotando os testes com o equipamento
numa escola pública de Porto Alegre.

Verônica Couto


Para a professora Léa, o XO
é uma "revolução".

"Essa máquina XO é tudo o que a gente sonhou, queria, e nunca
conseguiu”. Quem diz é a professora Léa Fagundes, psicóloga e pedagoga,
referindo-se ao laptop da ONG One Laptop per Child (OLPC). Ela coordena
o Laboratório de Estudos Cognitivos (LEC) da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), e também o teste pedagógico que está sendo
feito na Escola Estadual Luciana de Abreu, em Porto Alegre, com o XO.
Foi homenageada pela Unesco, no ano passado, na categoria Informação e
Comunicação, em reconhecimento ao seu método de aprendizagem para
escolas públicas, baseado no uso de novas tecnologias digitais. Na
mesma ocasião, a Unesco premiou, pos mortem, o educador Paulo Freire,
na categoria Educação.

O equipamento da OLPC, desenvolvido no Massachusetts Institute of
Technology (MTI), na opinião da professora, representa “uma revolução”
no processo de aprendizado. “É um computador novo, o primeiro criado
para ser usado na educação”, destaca. Ou seja, não é mais a adaptação
forçada, para as escolas, de um equipamento feito para escritórios —
como os PCs que rodam os aplicativos do Microsoft Office (escritório,
em inglês) —, e que não teriam, segundo ela, promovido nenhuma melhoria
na educação. O XO resulta, explica Léa, dos estudos de Jean Piaget e
Seymour Papert, sobre as formas como as pessoas (especialmente, as
crianças) percebem o mundo e aprendem, e de Marvin Minsky, precursor da
inteligência artificial.

Dos 400 XOs previstos para a escola de Porto Alegre, contudo, chegaram
apenas cem, em janeiro, dos quais somente 50 haviam sido liberados na
alfandêga, até o final de março. A coordenadora do LEC lamenta que
ainda haja, no governo e na indústria, muita oposição ao projeto da
OLPC. Isso acontece, argumenta Léa, porque a Intel, fabricante do
equipamento concorrente, o ClassMate, estaria oferecendo um pacote
completo ao país — capacitação de professores, conteúdos curriculares,
logística de transporte, tudo. “O problema é que o ClassMate é um PC,
não muda nada no sistema de ensino”, critica ela.

O LEC também está trabalhando em parceria com a Sociedade do Software
Livre, e com programadores da UFRGS, para desenvolver atividades
pedagógicas para o XO. E capacitando os professores e alunos (da sétima
série) da escola selecionada para o teste, que poderão, no futuro,
formar um grupo de multiplicadores desse conhecimento para novos
usuários do laptop, em cursos a distância. “Se o governo brasileiro
comprar 1 milhão de equipamentos, teremos que treinar 40 mil
professores da rede pública em menos de um ano”, calcula.


ARede •
O que se pode esperar do XO do ponto de vista pedagógico? Qual
a diferença entre ele e o ClassMate e o Mobilis, outros computadores
que o governo avalia para uso na educação?


Léa •
A diferença começa pela natureza do equipamento. Esse XO resultou
de 30 anos de pesquisa do Media Lab, o laboratório de mídias do MIT,
que estuda o desenvolvimento da inteligência, os processo de
aprendizado e as tecnologias.

Quando criamos o Laboratório de Psicologia Cognitiva (há 30 anos), no
Instituto de Psicologia, estudávamos os problemas de aprendizado. Isso
foi sempre meu desafio, saber por que as crianças pobres, das escolas
públicas, não aprendiam. Das crianças com sete anos, 50% eram
reprovadas na 1ª série. E, daí em diante, sempre aquele atraso, aquela
baixa autoestima, os professores desanimados. E a gente explicava que
era “a pobreza”, “a ignorância dos pais”, “porque são pretos, filhos de
escravos, de índios”. Não é nada disso. O educador precisa saber como a
criança aprende e como a inteligência se desenvolve.


ARede •
Como o XO responde a essa demanda?

Léa •
Esse XO é tudo o que a gente sonhou, queria e nunca conseguiu. O
PC nunca foi feito para a Educação, mas para a guerra, a indústria, o
comércio. Tanto que um aplicativo que todo mundo usa, é o Office, que
não tem nada a ver com educação, serve para escritório – office. A
gente tenta é adaptar para a educação.

Mas, repara: quando a gente tinha teatro, não tinha cinema. Quando
surgiu o cinema, como foram os primeiros filmes? Teatro filmado. O
homem não consegue mudar tão rápido. Não há um salto. Você tem um
sistema de significação, e fica preso nele. O seu raciocínio, a sua
imaginação, fica tudo preso ao condicionamento da sua experiência de
vida.

Então, o que fizeram os professores quando surgiu o PC? Colocaram o
software aplicativo, e reproduziram no micro o material do livro
didático. No primeiro projeto brasileiro do Ministério da Educação
(MEC), junto com a Secretaria de Informática, foram criados cinco
centros – a UFPE, UFMG, UFRJ, Unicamp, e nós (UFRGS). Todo mundo pensou
em criar conteúdo para ensinar química, física, biologia. O pessoal do
Rio levou cinco anos desenvolvendo um pacote completo, com todo o
conteúdo do ensino básico, para o MSX (computador). Quando terminaram,
o computador tinha saído de linha, o pacote não rodava. Tiveram que
refazer tudo.

Aqui na UFRGS, nossa linha foi outra. Por que usar um recurso novo para
reproduzir o tradicional? Na escola onde estamos testando o XO, há
salas onde os alunos estão enfileirados, caderno e livro abertos. A
professora passa as questões no quadro, eles copiam no caderno, e
buscam respostas no livro. E nós estamos no século 21. Antigamente, se
o aluno errava, tomava palmatória. Agora, não dá palmatória, dá nota
baixa, reprova. Então, passa-se o século e a educação não muda. Porque
é muito penoso ter uma formação, ser condicionado por ela, e, de
repente, mudar tudo. Mas, mesmo lentamente, o sistema resiste. No mundo
todo, a reação é a mesma. Se a escola vai mal, os alunos vão mal, ela
perde recursos, então não se arrisca a inovar.


ARede •
O plano do MEC não quer vincular metas a recursos?

XO, uma máquina que tem tudo
a ver com Educação.

Léa •
É. Mas quem precisa de recursos é quem está mal. Essa concepção é
mundial. Está tudo errado. É preciso aprender a se desenvolver, a
pensar, refletir, ser criativo. Quando a criança é bem desenvolvida,
bem atendida pela família, tem ambiente para aprender, viajar, livros
para ler, mãe que escuta, que conversa, a criança aprende. Mesmo que o
ensino seja moderado, ela aprende, porque está se desenvolvendo.


ARede •
Como o XO muda essa escola?

Léa •
Primeiro, ao permitir que o aluno não use o PC. Isso é
importante. O ClassMate é bonitinho, igualzinho ao PC, com Word,
planilha, Power Point, navegador, é familiar, confortável. O XO não é
um PC. Eles inventaram um novo computador, feito só para educação. É a
máquina das crianças.

O XO é a máquina das crianças, porque são elas que programam. E  o
XO cria um ambiente natural de expressão da comunicação. Tem a câmera
fotográfica, os fones, as crianças se comunicam conversando na tela.
Conectam-se pela internet wireless. Além disso, tem uma coisa
maravilhosa, que é a rede Mesh. Quando eu uso a internet nos PCs
tradicionais, a comunicação e a interação ficam forçadas. Não é um
ambiente para três, quatro pessoas colaborarem para gerar um produto.

ARede • Os outros computadores em teste no governo têm uma solução pedagógica?

Léa •
Eles não têm teoria nem práticas pedagógicas diferentes. São para
o ensino tradicional. Isso é que me dói. Tu vai fazer uma despesa
danada, e não mudar nada. O governo está encantado com o ClassMate.
Custa US$ 400, mas a Intel, que fez parceria com o Bradesco e a Editora
Abril, paga a formação do professor, o transporte, dá a estrutura de
rede para a escola. São módulos padronizados no mundo inteiro. E a
Intel me diz: ‘somos uma multinacional, damos o mesmo conteúdo aqui,
que damos em outros países’. Ou seja, não muda nada. Eu perguntei à
coordenadora do programa do ClassMate quem dará esses cursos, ela
respondeu que ela era mesma. A formação dela? Administração de
Empresas. O outro, MBA, Marketing. Ou seja, a Intel vai formar
professor para usar a máquina deles.

Para fabricar, a Intel procurou a Positivo. Vou dar um exemplo do que
se trata. Fui a uma escola em São José dos Campos (SP) com 20 máquinas,
crianças de 7ª série, todas sentadas, com a professora e um técnico
ajudando. É uma aula de geografia, do capítulo do livro didático, mas
todo o seu conteúdo está na internet. Pedi para baixar do site.
Conteúdo de quem? Da Positivo. Era o homem pré-colombiano, mas a imagem
não tinha nada de pré-colombiano, era elegante, magro, alto. E com
roupinhas, para o aluno vestí-lo. É isso, roupinhas de boneca para
vestir o homem pré-colombiano?

A Positivo tem 700 mil páginas na internet, que cobrem conteúdos de
todas as matérias, de todas as séries. Está tudo pronto. O professor
acha uma maravilha. Por que? Ele não precisa preparar a aula, não
precisa planejar. Quando termina a aula, já tem teste pronto, e o
programa diz o que as crianças erraram. Mas qual é a função do
professor, então? O professor não precisa pensar?


ARede •
No XO, qual a função do professor? Como ele vai trabalhar as
atividades para atender ao currículo e as provas de avaliação do MEC?


A tela do laptop se integra
ao teclado, na vertical,
para dar comodidade à leitura.
Léa • A nossa educação é uma camisa-de-força. Não aprendemos a pensar e
não temos consciência disso. Por exemplo, eu sou uma analfabeta
musical. Fiz formação de professores, mestrado, doutorado, dois cursos
de graduação — Psicologia e Pedagogia. E não consigo ouvir uma melodia
e escrevê-la. Então, no que essa escola foi boa? Eu sou um ser
limitado. Por que não posso aprender música? Não sei fazer uma
acrobacia, uma coreografia, trabalho com imagem não existe. Adorava
esporte. E por que não desenvolvi coordenação motora para fazer um
esporte que me realizasse? Essa escola não desenvolve as pessoas. Ela é
competitiva, mas não oferece o que os estudantes precisam agora. Na
introdução à informática, ensina a usar o computador. Planilha,
tabelas, gráficos. Fazer o que com isso?

O professor quer dar os conteúdos como sempre deu, do jeito que estão
no livro. Mas, quando têm o XO à sua frente, são desafiados. E quando
dão o XO às crianças, é emocionante.

ARede • Como está sendo a capacitação dos professores para o XO?
Léa • Aqui em Porto Alegre, tive que escolher uma escola com 400
alunos, o número de laptops que teríamos. Encontrei uma escola com 350
alunos e 50 professores, da 1ª à 9ª. Fizemos um seminário de dois dias.
Apresentamos a pesquisa do LEC, como vamos fazer funcionar o modelo do
XO, as propostas pedagógicas, o que já existe de produção de
conhecimento científico. Trabalhamos com os dez XOs que tínhamos, em
rodízio.

Prometeram nos mandar mais cem XOs depois do carnaval. Chegaram no
Brasil, mas a alfandêga não liberou. Nem o MEC. Decidimos formar
monitores com alunos da 7ª à 8ª séries que gostam de computadores. Eles
vieram fazer a formação com os professores, para ajudar quando
chegassem os computadores.

Então resolvemos fazer uma Formação Continuada em Serviço. Os
professores trabalham de manhã, de tarde, de noite, e ganham pouco. Não
têm tempo para sair e fazer cursos. Mas têm duas horas por semana para
planejar. Essa é a hora teórica do curso; e as aulas, as horas
práticas. Estamos documentando tudo. Se o Brasil comprar mais um milhão
de XOs, teremos que formar 40 mil professores, em alguns meses. E quem
vai fazer isso? Essas 40 professoras, nós e os meninos, a distância.

ARede • E como estão sendo as aulas com o XO? A rede Mesh já funciona?
Léa • Só chegaram à escola 50, dos cem, no dia 20 de março. Temos dez
unidades com os programadores na universidade, e 50 na escola, dos 400.
Só duas turmas de 4ª série, da tarde, estão usando. São 43 alunos e
professores, mais os 12 monitores — 55 XOs. Estamos esperando os outros
50. Quando chegaram os primeiros, não tínhamos dinheiro nem para
instalar a rede wireless. Colocamos do nosso bolso, parcelamos os
equipamentos. Tivemos que recarregar todos os XO, porque chegaram com
uma quantidade enorme de novas atividades. São 400 programadores
produzindo no mundo todo.

Ainda não instalamos a rede Mesh. Foi preciso instalar uma rede local,
para colocar os access points (pontos de acesso) — a escola não tinha
acesso à internet, nem computador (só na secretaria). Os meninos
tiraram uma peça de um micro, de outro, e montaram um servidor para
garantir um sinal melhor. A internet via wireless, até ontem, usava o
servidor daqui, da universidade. Agora, vão pendurar o XO na rede, para
tentar colocar a rede Mesh.

ARede • Os alunos levam o laptop para a casa?

"Essa escola não
desenvolve as
pessoas."
Léa • A primeira reunião com os pais tinha quase 400 pessoas, entre
pais, mães, tios, avós. Os professores nunca tinham visto uma reunião
dessas. Expliquei o projeto, e disse que eles teriam que assinar um
contrato, porque o computador é da escola, e o filho vai poder levar
para casa, para a família toda usar. Para fazer a inclusão na
comunidade. É o que chamamos de escola expandida. O professor, em vez
de chamar os pais para se queixar dos alunos, vai procurar os pais para
participar dos trabalhos. Por exemplo: temos aqui esse muro da escola —
a escola está abandonada, sem pintura, sem nada, pobre —, então os
meninos podem fazer um projetinho de como revestí-lo, com reboco,
cimento. Alguns dos pais trabalham em construção civil, são pedreiros.
O menino leva o laptop, fotografa o pai, entrevista – como é que faz a
argamassa, onde é que se compra, como é que se prepara a matéria. É o
projeto deles. Os pais ensinam, eles trazem, colocam no nosso ambiente,
e começam a produzir. Vão na loja, fazem orçamento. Aí os pais
gostaram. É o conhecimento da família entrando na escola.

Perguntei aos pais: vocês acham que os alunos podem levar o computador
para casa? Uma mãe disse que não, o menino toma dois ônibus, os ônibus
são assaltados, achava perigoso. Mas outra perguntou: e no feriado? Aí
pensei, ótimo. Quando for fim de semana ou feriado,vocês vêm aqui,
acompanham seus fihos e levam o laptop, e trazem de volta. Gostaram. Um
pai pediu a palavra e disse que todos precisavam correr riscos, ensinar
os filhos e protegê-los. E bateram palmas. Mas as professoras ficaram
com medo, querem se adaptar mais, e nem todos os pais assinaram o
compromisso.

ARede • Se acontecer alguma coisa, os pais vão ter que pagar pela máquina?
Léa • Isso não adianta. O prejuízo real é do menino, que fica sem o XO.
Mas também alertei a eles: é preciso compartilhar, ensinar, chamar os
amigos em casa para usar.

ARede • Quais são as atividades que estão no XO?
Léa • Primeiro, e acho fantástico, é que ele não tem arquivos. Aí
criticam: o XO não tem memória, o ClassMate tem. Pois não é mesmo para
armazenar arquivo. Ele tem journal (de jornal, diário), onde se
registram todas as atividades. Há um recurso de colocar tags e fazer
banco de dados. Então, se tirei medidas de comprimento, fiz cálculo de
superfíce — coloca a tag matemática. Aí fiz música, escrevi, vai pondo
as tags, e depois acessa essas atividades por técnicas usadas,
conceitos trabalhados, problemas resolvidos. A criança, com o
professor, decide a classificação. Ela constrói um banco de dados sobre
a própria atividade. Qualquer outro que entrar na rede Mesh vai no
banco de dados e escolhe o que consultar.

ARede • Assim, as crianças desenvolvem alguma habilidade em programação?
Léa • Sim, porque programar é que faz aprender. A criança tem que fazer
antecipações, retroações e tirar conclusões. Já estava na proposta da
linguagem Logo. Agora, temos a linguagem Squeak. Foi criada em software
aberto, orientada a objetos. Tu programas objetos, e faz atividades com
os objetos, usando o recurso Etoys. Por exemplo, fazer um carrinho. O
menino junta a roda, os pneus, a capota, o motorzinho. Desenha uma
paisagem. E o carrinho tem que descer uma lomba. E quando manda o carro
girar, engatar e descer, os comandos todos programadinhos, ele vai e
cai lá embaixo, respinga e faz barulho – tchum! E O Squeak roda no XO.

www.lec.ufrgs.br/index.php/Projeto_UCA_-_Um_Computador_por_Aluno

www.papert.org/ — Página do professor Seymour Papert

www.squeakland.org/ — Sobre o Squeak, software de autoria de mídias, de
código aberto e voltado para a compartilhamento (em inglês).