Acordo internacional pode travar a internet









Má notícia: o Acta, acordo comercial discutido em segredo há três anos, deve ficar pronto até o final de 2010.

Acordo Comercial Antipirataria
Má notícia: o ACTA, acordo comercial discutido em segredo há três anos, deve ficar pronto até o final de 2010. PATRÍCIA CORNILS

ARede nº59, junho 2010 – Imagine ser desconectado da internet por um ano porque baixou três músicas protegidas por direitos autorais – mas ter de continuar a pagar as mensalidades ao seu provedor. Imagine não poder passar para o computador as suas músicas favoritas do iPod. Ou ser processado e até preso porque violou, muitas vezes sem saber, o direito autoral de alguém. Esse “alguém” é, em geral, não o artista que criou a música, o filme ou o poema mas sim a corporação que fatura em cima dele – a gravadora, o estúdio ou a editora. Essas corporações pressionaram diretamente os governos e parlamentos da França e da Inglaterra, onde já foram aprovadas as famigeradas legislações conhecidas como Lei Hadopi, na França, e Ato da Economia Digital, na Inglaterra. Duas excrescências jurídicas que ignoram a mudança de paradigma e insistem em perpetuar práticas comerciais anteriores ao advento da internet e da economia globalizada.

Some a tudo isso a pressão cerrada sobre os provedores para que exerçam um verdadeiro poder de polícia sobre os usuários e o resultado é a minuta oficial do ACTA, finalmente divulgada em abril, depois de anos de sigilo e de reuniões secretas. A sigla designa o projeto do Anti-Counterfeit Trade Agreement – ou Acordo Comercial Antipirataria, engendrado pelos Estados Unidos e pela União Europeia há três anos, com o apoio de um punhado de países. Em algum lugar da Suíça, em julho, ocorrerá a nona rodada de negociações do ACTA.

O local do encontro ainda não foi divulgado – provavelmente em respeito à tradição da iniciativa, cujos debates foram mantidos em sigilo nos últimos três anos. Só muito recentemente o conteúdo da minuta do acordo veio a público por meio de vazamentos na internet – e a 21 de abril, enfim, a minuta oficial foi divulgada (ver página 24), com ligeiras modificações nos itens que haviam provocado maior fúria entre os defensores da liberdade na internet. Seja qual for o resultado da reunião de julho, o governo brasileiro já avisou que não reconhecerá os acordos sobre propriedade intelectual negociados fora de instituições multilaterais como a Organização Mundial do Comércio (OMC) ou a Organização Mundial para a Propriedade Intelectual (OMPI).

“Ninguém pode impedir nenhum país de negociar nada”, disse, a 6 de maio, o diretor do Departamento Econômico do Ministério das Relações Exteriores, Carlos Márcio Cozendey, lembrando que o acordo poderia prejudicar diretamente o Brasil em algumas questões internacionais, como o transporte de medicamentos genéricos. Há dois anos, a alfândega holandesa apreendeu um carregamento de remédio indiano destinado ao Brasil, porque, embora fosse classificado como genérico tanto na Índia como no Brasil, o medicamento ainda tem uma patente vigente na Europa, de propriedade do laboratório holandês Merck. Na opinião de Cozendey, os Estados Unidos e a União Europeia “estão tentando transpor suas legislações internas para o nível internacional, mas a negociação em curso não tem legitimidade para estabelecer padrões internacionais”.

De fato, a meta oficial do acordo é estabelecer padrões internacionais para combater “o aumento da circulação global de bens falsificados e da pirataria de obras protegidas por direitos autorais”. O acordo, cujas negociações a portas fechadas foram iniciadas em 2007 por Estados Unidos, Japão, Suíça e União Europeia, hoje é discutido também por outros nove países:  Austrália, Canadá, Coreia do Sul, Emirados Árabes, Jordânia, México, Marrocos, Nova Zelândia e Singapura. No total, são 27 países conversando em segredo – um número irrisório quando comparado ao número de membros das Nações Unidas (192), da Organização Mundial do Comércio (153) ou da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (184).

Embora excluam parlamentos e representantes do Poder Judiciário e da sociedade civil, os negociadores discutiram os termos do ACTA com representantes de grandes lobbies empresariais. Um advogado da Aliança Internacional pela Propriedade Intelectual (IIPA, em inglês), por exemplo, confirmou que teve acesso a minutas em debate. Em abril, o rascunho do acordo só veio à luz depois de uma série de pressões de grupos da sociedade civil e de alguns parlamentares. Esta pressão partiu principalmente de organizações da sociedade civil que defendem a liberdade na internet, como a estadunidense Fundação da Fronteira Eletrônica (EFF). Embora seja nominalmente um acordo para combater a pirataria de bens industrializados, como DVDs ou medicamentos, o ACTA também pretende obrigar os países que aderirem a adotar um sistema cada vez mais truculento de controle dos conteúdos que transitam na internet.

RELAÇÃO DESIGUAL
A minuta oficial da proposta de acordo, divulgada em abril, eliminou certas medidas previstas em minutas vazadas na internet, como a quebra do sigilo das comunicações na rede e do anonimato sem ordem judicial. Mas mantém o arcabouço de controle, que é o núcleo fundamental do ACTA. “O acordo está mudando a maneira de fazer as leis”, escreve Michael Geist, professor de Direito da Universidade de Ottawa, no Canadá. Geist mantém um blog com ampla informação e muitas análises sobre o ACTA e, em janeiro deste ano, publicou uma série de cinco artigos sobre o acordo, com base em documentos vazados durante as negociações. As organizações internacionais normalmente responsáveis pelo debate desses temas, como a OMC e a OMPI, explica ele, são todas mais abertas, transparentes e inclusivas do que as mesas de debate do ACTA.

O professor Pedro Paranaguá, da FGV-Rio, que é também doutorando em Direito da Propriedade Intelectual pela Universidade Duke, dos Estados Unidos, acredita que os países participantes das conversas do ACTA têm pelo menos uma boa razão para minar a autoridade dos foros multilaterais, particularmente da OMPI: esta organização tenta, desde 2004, rever as leis de propriedade intelectual em busca de uma relação menos desigual entre os detentores de direitos e o conjunto da sociedade. A proposta dessa revisão foi lançada pelo Brasil e pela Argentina, transformando-se em um movimento que se institucionalizou sob o título de Agenda do Desenvolvimento.

Em janeiro, na última série de conversações a respeito, o Brasil apresentou uma proposta de “exceções aos direitos de patente e limitações à propriedade intelectual”. Essas exceções, em leis de propriedade intelectual, definem os casos em que os interesses da sociedade se sobrepõem aos direitos dos detentores de patentes e direitos autorais, em nome do bem comum.

Construído num fórum informal, o ACTA não poderá ter aplicação imediata – nem mesmo quando os países participantes chegarem a um acordo, o que está previsto para ocorrer até o final do ano. Aqueles que aderirem ao acordo deverão adaptar suas próprias legislações domésticas ao ACTA e adotar leis que restrinjam e criminalizem a troca de arquivos na internet, como já fazem a Hadopi francesa ou o Ato da Economia Digital na Inglaterra, ambos combatidos por ativistas da liberdade na rede, mas aprovados pelos parlamentos desses países. Uma versão tupiniquim desse tipo de legislação ficou conhecida no Brasil como Lei Azeredo, por enquanto derrotada. Em março, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, declarou que apoia o acordo, em uma intervenção feita numa conferência sobre comércio. Obama disse que sua administração está decidida a apoiar “os produtores e criadores” e que não vê nenhum mal no uso das tecnologias para isso. Advertiu, no entanto, que a indústria estadunidense deve receber pelos conteúdos que cria. “Vamos proteger agressivamente nossa propriedade intelectual”, afirmou.
A mudança nas legislações locais pode não ser do interesse de cada país. “Desde a proteção legal a cadeados digitais (dispositivos tecnológicos de proteção) até a responsabilização de provedores de acesso internet, o texto do ACTA alteraria  trechos importantes da política de direitos autorais do Canadá, que foram objeto de anos de discussões e debate em nosso país”, explica Geist. Depois de adotar o ACTA nacionalmente, os países desenvolvidos provavelmente vão tentar impor suas disposições em negociações bilaterais com países que importam patentes e direitos autorais. Funciona assim: se o país não desenvolvido quiser exportar determinados bens ao país desenvolvido, vai precisar se comprometer a adotar uma legislação compatível com o ACTA. Isso já aconteceu com o TRIPS, acordo de proteção à propriedade intelectual do qual o Brasil é signatário, e que foi imposto aos países em desenvolvimento durante a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC).

até a ccia é contra
O texto publicado em abril estimula os provedores de acesso internet a desenvolver políticas proativas com relação ao armazenamento e à troca de conteúdos protegidos por direito autoral ou direitos correlatos. Ainda de acordo com a minuta oficial do ACTA, os países membros devem desenvolver políticas de aproximação entre provedores e portadores de direitos autorais para que aqueles possam lidar adequadamente com patentes, desenho industrial e direitos autorais. Eles também são estimulados a adotar proteção legal às medidas tecnológicas (dispositivos tecnológicos de proteção ou programas que impedem a cópia de um determinado conteúdo de um suporte para outro) adotadas pelos detentores de direitos autorais para impedir o acesso não autorizado a seus trabalhos.

Não são apenas os ativistas pela liberdade na internet que se colocam contra o ACTA. O site estadunidense Ars Technica mapeou a reação das entidades dos Estados Unidos ligadas à indústria de intermediação cultural e à indústria de informática logo após a divulgação da minuta oficial do acordo. Saudado pela indústria do entretenimento – estúdios de cinema e gravadoras, por exemplo – como o mais importante passo da atualidade para se criar uma robusta proteção para a propriedade intelectual online, o acordo foi duramente criticado pela CCIA (entidade que reúne a indústria de computadores e informática, como Microsoft, Intel, Google), que diz que, embora ele não afete o arcabouço regulatório dos Estados Unidos, compele outros países a aumentar as penalidades contra infrações à propriedade intelectual, em desacordo com a defesa do copyright, muito mais equilibrada, advogada pela delegação estadunidense na última reunião da OMPI. O presidente da CCIA, Ed Black, declarou: “Um acordo que diz ‘Por favor, punam as empresas de tecnologia’ não é bom para o comércio dos Estados Unidos. É um acordo anticomércio, pois fecha mercados estratégicos para as nossas empresas de tecnologia”.

O embate entre indústria de entretenimento e indústria de informática tende a se aprofundar à medida em que o debate em torno do ACTA for ganhando músculos e publicidade. Pela sua importância, esse debate tende a ganhar espaço crescente na agenda política mundial  – não só para essas duas indústrias mas para a livre circulação dos bens simbólicos e para o desenvolvimento da produção cultural mundial, que no mundo digital é cada vez mais uma produção de remixagem.

www.laquadrature.net/en/acta-partial-transparency-isnt-legitimacy
http://diplo.org.br/Dossie-ACTA-para-desvendar-a#nb7

UM RESUMO DO ACTA
Segundo a EFF
A Fundação da Fronteira Eletrônica, conhecida nos Estados Unidos pela sigla em inglês EFF, fez uma pequena relação das normas básicas propostas pelo ACTA, que a entidade considera uma lei de direitos autorais e não uma lei contra a pirataria (ou a contrafação, como quer o nome oficial do acordo). O resumo das normas, que seriam idealmente aplicadas a todo o planeta, é este:
•    provedores de acesso internet (ISPs, na sigla em inglês) seriam obrigados a desconectar usuários acusados, mas não condenados por repetidas violações de direitos autorais;
•    ISPs ficariam obrigados também a revelar a identidade de seus assinantes para proprietários de direitos autorais, sem nenhum processo ou supervisão judicial;
•    para obedecer essas ordens, os provedores deveriam fazer modificações potencialmente muito caras em suas redes, de forma a impedir a violação de direito autoral;
•    o congresso dos Estados Unidos ficaria proibido de reformar o Digital Millennium Copyright Act (DMCA ou Lei de Direitos Autorais do Milênio Digital), que criminaliza a quebra de proteção de produtos protegidos por direitos autorais mesmo quando a cópia é perfeitamente legal;
•    todos os países seriam obrigados a implementar legislação igual ao DMCA, sem o benefício do uso justo ou de outras exceções legais que permitem um mínimo de proteção à liberdade de expressão;
•    ameaça inovadores potenciais com multas financeiras ultrajantes por violação de direitos autorais; e
•    criminaliza até usos não-comerciais de materiais protegidos por direitos autorais.

Segundo a Quadrature du Net
A organização La Quadrature du Net, principal iniciativa francesa em defesa da liberdade na rede, acha que o ACTA poderá:
•    transformar os provedores de internet em uma polícia privada, obrigando-os a vigiar seus usuários e a denunciar suspeitas de violação de direitos de autor;
•    impor sanções duras e injustas aos usuários e consumidores de bens culturais;
•    impedir o acesso a medicamentos genéricos ou a seus componentes essenciais por países não desenvolvidos;
•     impedir a inovação, ao dificultar o acesso a bens de propriedade intelectual; e
•    estabelecer uma nova forma de governança mundial, antidemocrática, ao evitar o debate nos parlamentos e em instituições multilaterais internacionais.

TRIPS
Trade-related intellectual property rights, um acordo sobre aspectos comerciais dos direitos de propriedade intelectual.