Códigos-fonte são para aprender na escola
Mark Surman, diretor da Mozilla Foundation, defende a formação de crianças para que entendam o funcionamento da internet. Só assim, no futuro, teremos políticas públicas que garantam a liberdade na rede mundial.
Texto Rafael Bravo Bucco | Fotos Robson Regato
ARede nº 89 – março de 2013
A INTERNET de hoje não é a mesma da década de 1980, nem da de 1990. Grandes vitórias foram conquistadas ao longo dos anos, na percepção de Mark Surman, diretor executivo da Mozilla Foundation, instituição estadunidense responsável pelo desenvolvimento do navegador Firefox e também do promissor sistema operacional para celulares Firefox OS.
O maior avanço, que exige uma luta permanente, é a liberdade na rede: liberdade de expressão, de acesso e de navegação. “Vemos a internet como um ambiente aberto, como blocos de montar, em que tudo pode ser recriado por todos”, falou Surman, durante sua apresentação na sexta edição da Campus Party, no final de fevereiro, em São Paulo. “No final da década de 1990, víamos o mundo pelos olhos do Internet Explorer, pelas lentes da Microsoft. Isso precisava mudar”, disse. Nessa época, o navegador proprietário da então maior empresa de software do mundo era usado por mais de 90% dos internautas.
Surman e sua equipe, na Mozilla Foundation, criaram um navegador alternativo, de código aberto, e que permitiu aos usuários não apenas enxergar os códigos-fonte dos sites, como também criar add ons, extensões do software que conferem novas funcionalidades ao navegador e contribuem para a evolução das linguagens de programação da internet. Hoje, é possível construir programas inteiros na forma de aplicativos que rodam através do navegador em qualquer plataforma – Linux, Windows, Mac OS etc.
A perda de mercado do Internet Explorer e o crescimento de concorrentes são os resultados mais evidentes do esforço da Mozilla. Outro, foi o surgimento do HTML5, que revolucionou o desenvolvimento de sites, e agora deve alterar a forma como se programa para celulares com o Firefox OS. Por isso, Surman não hesita: “O Chrome, o Safari, e até o IE9 são vitórias nossas”, declara, em entrevista à ARede, explicando que todas essa ferramentas usam HTML5.
O próximo passo para garantir a liberdade na rede é conscientizar o legislativo sobre o papel do universo digital no desenvolvimento social e na inovação, de modo a prevenir o surgimento de políticas públicas restritivas. Para isso, além da pressão popular e de instituições que representam a sociedade civil, a escola também tem um papel fundamental. “O código deve ser ensinado às crianças, da mesma forma que as outras disciplinas básicas. Somente assim teremos políticos que no futuro entenderão como a internet funciona”, defende Surman. Na opinião dele, porém, teremos de esperar de 20 a 50 anos para que nossos representantes compreendam o que está em jogo quando propõem (ou votam) projetos como Sopa, Pipa, TPP, Ceta etc.
Qual a importância dos padrões abertos para a inclusão digital?
Mark Surman – Primeiramente, minha definição de inclusão digital é ter o controle e o poder de dar forma à nossa vida digital. Não estamos no momento da inclusão digital de 15, 20 anos atrás, quando comecei, ou até de 5 anos atrás, quando a pergunta era ‘as pessoas terão acesso à internet?’. Conforme nos direcionamos para o mundo da mobilidade, quase todas as pessoas obtêm uma conexão. Então, como fica a inclusão digital em uma época em que todos têm conexão? Nesse contexto, o objetivo é dar às pessoas condições para que assumam o controle, tenham uma vida digital que não as exclua, mas que as empodere. Podemos terminar em um mundo onde todos estão conectados, mas onde, como acontece com a TV, são todos consumidores.
Ou podemos terminar em um mundo em que todos estão conectados, são produtores e entendem de que forma a tecnologia pode trabalhar para nos empoderar. Nesse conceito de inclusão digital entram os padrões abertos, que permitem que as pessoas deem forma à tecnologia e a entendam de um modo que os softwares proprietários não permitem. Quando falamos em padrão aberto, entendemos que ninguém é dono daquela plataforma e que você pode rapidamente ver o código-fonte, olhar sob o capô da tecnologia e ver como funciona. Essa é uma habilidade fundamental para moldar a tecnologia segundo nossa vontade.
A proposta do Firefox OS é levar esse conceito de abertura para o celular?
Surman – O Firefox OS tem o código aberto; portanto, as pessoas podem pegar esse código e fazer o que desejarem. Mas outra característica fundamental é que o Firefox OS é baseado em HTML5, ou seja, é pura internet. Muita gente poderá desenvolver ferramentas para o sistema – que são realmente voltadas para enxergar o código – e alterá-lo. Imagine um universo em que os aplicativos serão fáceis de alterar e reconfigurar.
Qual a opinião da Mozilla sobre projetos como o Sopa e o Pipa, que colocaram em risco a internet do jeito que a gente conhece hoje?
Surman – Esses dois projetos de lei quase passaram no Congresso do Estados Unidos. Se aprovados, quebrariam a internet porque, basicamente, iam permitir que as pessoas retirassem do ar DNSs por quebra de direitos autorais. A opinião da Mozilla era, e ainda é: não quebrem a internet. Participamos da mobilização fazendo um blackout em nosso site. O lado mais sutil disso é que é muito difícil saber onde devem se situar a lei e os legisladores, e onde a internet se desenvolve por ser livre. Uma das coisas que estamos começando a fazer é visitar os políticos e mostrar material que explica como a internet funciona, como cria riqueza e empregos. Esse é o nosso argumento para que entendam o que está em jogo.
Apesar da retirada dos projetos de lei, há acordos comerciais sendo negociados em segredo por governos, como o TPP e o Ceta. A internet vai continuar ameaçada?
Surman – Vai. Quando falamos sobre qualquer coisa relacionada a liberdade e abertura, sempre haverá ameaças e tensões. Algumas das tensões dizem respeito a plataformas tecnológicas que não são livres, outras a leis com ideias que quebrem a internet por terem sido feitas por pessoas que não compreendem a rede. Por isso, a estratégia da Mozilla é alcançar os políticos, que fazem as leis, e fazê-los entender o que a internet é e como gerou tanto valor e criatividade para a sociedade. O fato de a internet ser livre é que permitiu tanta geração de riqueza e inovação.
Como fazer os políticos compreenderem o que é a internet?
Surman – Se conseguirmos educar nossas crianças hoje, daqui a 15 ou 20 anos teremos políticos que entendam a rede. Senão, em 40 ou 50 anos. Mas tudo bem. A internet é algo que estamos introduzindo na sociedade com o objetivo de ser duradoura, e leva tempo para algo se tornar duradouro. Não temos dados do Brasil, mas na Inglaterra, por exemplo, apenas 3% das crianças de 8 a 15 anos sabem programar, enquanto 67% se diz interessada em aprender programação. É um buraco enorme entre o rumo da economia e o que as pessoas querem aprender. Precisamos criar plataformas abertas mas, principalmente, ensinar como funcionam. É um aprendizado tão importante quanto ler, escrever e calcular.
Enquanto leis não são criadas, as empresas tentam moldar o modelo dentro de seus interesses, como na questão da neutralidade da rede.
Surman – Esse é um fator complicado. Se pensarmos em Dubai [nos Emirados Árabes, onde se realizou a Conferência Mundial de Telecomunicações Internacionais, em 2012], um grupo de companhias tentou influenciar de forma “extra-governamental”, ou seja, fazendo lobby, em certa direção. Mas a questão principal é a forma como as pessoas enxergam a rede – não tem a ver com ser comercial ou não, há muito comércio mesmo sobre as propostas livres. Algumas empresas compreendem os benefícios de uma internet livre e dão grandes contribuições para a internet aberta, pois percebem que a rede tem valor para seus consumidores; outras não compreendem e tentam desviar o debate. Não é que as empresas estejam filtrando pacotes, é que pessoas diferentes têm interesses diferentes. Se observarmos os debates sobre neutralidade de rede, em torno da proposta de lei no Brasil, vamos perceber que há empresas de um lado e empresas de outro. Na verdade, percebemos a existência de visões que competem entre si sobre como a internet deveria funcionar. Na época do Sopa e do Pipa, o Google e outras companhias de internet se alinharam contra esses acordos, em um visão de internet aberta (e, sobre isso, temos a criatividade, a economia, acontecimentos civis e políticos). Mas há outra visão, de uso de forma restritiva e limitada. Nós acreditamos que a sociedade da internet deva ser aberta.
O que você acha que deve acontecer com a privacidade e a segurança dos usuários da internet no futuro?
Surman – A Fundação Mozilla sempre se preocupou com isso, o que diversas vezes nos fez agir mais lentamente do que os nossos concorrentes. Acreditamos que o usuário deve ter controle sobre seus dados e deve ser capaz de determinar qual o nível de privacidade que deseja para essas informações. Vivemos em um mundo onde abrimos mão de nossa privacidade a cada minuto porque isso tem um valor. No Facebook, que é uma ferramenta terrível para quem se interessa por privacidade, compartilhamos nossos dados pessoais porque achamos que é uma forma eficaz de manter contato com nossos amigos. Há, então, uma tensão. Se estabelecermos certo nível de privacidade, muitas ferramentas vão simplesmente quebrar. Temos de descobrir como chegar ao nível de privacidade que queremos, extraindo o valor que queremos, sem oferecer tanto da nossa privacidade. Ainda não existem boas formas de fazer isso. Há dois grandes desafios: como manter nossa privacidade obtendo o valor que desejamos; e como oferecer aos usuários experiências que reconheçam quando pretendemos expor mais ou menos nossa privacidade. Ninguém descobriu isso ainda.
O respeito aos direitos autorais tem sido usado como subterfúgio para restringir a liberdade na rede. Como evitar que pessoas sejam processadas por remixar obras?
Surman – A cultura que criamos no universo digital obviamente precisa obedecer a alguma forma de direito autoral, mas as leis disponíveis são de uma era diferente. Queremos um sistema que respeite os direitos dos autores, mas queremos que reflita o funcionamento da internet. Eu não conheço um país que tenha esse sistema. Copiar, colar, modificar e remixar, nos Estados Unidos, poderiam ser considerados fair use [uso justo], pois fazem parte do nosso diálogo social e pessoal, mas ainda precisam ser inseridos em políticas de direitos autorais. É muito interessante quando brincamos com tecnologias como o Popcorn, criado pelo Mozilla, que permite criar vídeos com recursos disponíveis na internet. A tecnologia levanta questões sobre direitos autorais quando estabelece links para tudo o que aparece nos vídeos. Para a maior parte dos sites, essa é uma prática legal. Posso fazer um vídeo com meus links. Não preciso mais copiar o conteúdo de outros lugares, basta linkar. Novamente vem o debate sobre direitos autorais, pois a rede tem um sistema muito diferente do mundo dos impressos, das gravadoras ou produtoras de filmes.
Você se define como entusiasta das mudanças que a internet traz à educação, ao jornalismo, ao cinema. Que mudanças são essas, e em que ponto da transformação dessas áreas estamos?
Surman – A internet é ao mesmo tempo tecnologia e cultura. E ambos são fluidos, criativos, distributivos, open ended. Conforme as pessoas abraçam a tecnologia e a cultura da internet, se beneficiam da liberdade. Isso começa a afetar o trabalho, o que é nítido no jornalismo, que agora tem a participação das pessoas leigas, que produzem e comentam notícias. Mudanças vão ocorrer em todas as esferas da sociedade.
Na educação, a internet oferece a ideia de que podemos determinar nosso aprendizado e podemos nos conectar com os outros para aprender socialmente. A maior transformação que vejo na educação é a capacidade de construir o próprio conhecimento. Não precisamos mais ficar sentados na carteira. E a melhor maneira de levar à inovação é ensinar programação usando a internet. Afinal, a rede é o meio no qual vão usar os códigos, e não é possível ensinar a programar usando o quadro negro. Não se pode escrever códigos na parede e acreditar que as pessoas vão aprender dessa forma. É algo que se aprende mergulhando, construindo coisas. A pessoa vai perceber que mergulhando no código daquilo que gosta, fazendo um remix do Bob Esponja, aprenderá rapidamente como as coisas funcionam. Se conseguirmos mostrar que é possível aprender assim, podemos mostrar que é possível aprender qualquer coisa e levar esse sistema às escolas.
Além do Firefox OS, que produtos a Mozilla pretende lançar em breve?
Surman – Temos três grandes prioridades no momento. Firefox, Firefox OS e Webmaker. Desktop, mobilidade e conhecimento de internet, portanto. Temos bastante trabalho a fazer apenas com isso, e toda nossa energia será canalizada para esses três projetos nos próximos meses. Veremos, no futuro, inclusive na forma como nos posicionamos, a Mozilla participar mais da arena de políticas públicas. Não fazendo lobby, mas como uma organização com o papel de fazer os legisladores compreenderem o funcionamento da internet e seu valor para a sociedade.
Não é contraditório a Mozilla ser financiada por grandes empresas, inclusive algumas que vendem o acesso à rede?
Surman – Não, a internet é um local que se relaciona com nossa vida pessoal, cívica, social e comercial. A internet é vida. Há comércio na vida? Sim. Portanto, é natural.
Há pessoas que defendem outros navegadores, como o Chrome, dizendo que são mais rápidos que o Firefox.
Surman – Tenho duas respostas para esse questionamento. Houve um momento em que fomos mais lentos, mas agora somos tão rápidos quanto, temos mais add ons, melhores recursos de privacidade, e em breve seremos compatíveis como o ecossistema móvel do usuário. Outra resposta é que o Chrome é uma vitória nossa. O Safari é uma vitória nossa. HTML5 é nossa vitória. Vivemos no mundo que nós queríamos criar. Até o IE9 é uma vitória nossa. Isso é o que os usuários, usando o Firefox, e nós, fizemos: uma plataforma que funciona em qualquer dispositivo, que é o HTML5. Não nos importamos se o usuário use o Firefox ou não, nos importa se a internet continuará vibrante e que tenhamos mercado suficiente para manter a web nos trilhos.
Mark Surman é diretor executivo da Mozilla Foundation e do Centro pela Inovação Social, do Canadá. É ativista da liberdade digital há mais de 20 anos, nos quais já colaborou com instituições como Greenpeace e Anistia Internacional.
Nova aposta no celular
O grande número de adeptos de comunidades de software livre no Brasil e a força da marca Vivo em telefonia celular são os dois motivos determinantes para smartphones com o sistema operacional Firefox OS serem lançados aqui, ainda neste semestre. Inicialmente prometido só para o Brasil, o lançamento foi expandido para outros países. Colômbia, Hungria, México, Montenegro, Polônia, Sérvia, Espanha e Venezuela também receberão os smartphones equipados com o Firefox OS em 2013.
O projeto foi apresentado em fevereiro do ano passado pela Fundação Mozilla, apenas com a Telefónica de operadora parceira. No pré-lançamento do novo sistema operacional, que vai permitir a venda de smartphones por US$ 100, outras 16 operadoras de peso já tinham se engajado no projeto, ao lado de fabricantes como a coreana Samsung, as chinesas Huawei, ZTE, Alcatel One Touch e a europeia Nokia.
Com o lançamento do celular a US$ 100, as operadoras que atuam em países em desenvolvimento acreditam que terão um grande espaço para aumentar o seu market share, oferecendo principalmente aplicações sociais e de governo, como e-banking, ensino a distância, acesso aos serviços de saúde e muitas outras. Pensa-se até mesmo em alfabetizar pelo celular, como mostra a experiência bem-sucedida desenvolvida pelo professor José Luiz Poli, presidente da desenvolvedora de aplicativos IES2, com jovens e adultos da região de Campinas (SP).
A redução do custo tornou-se viável, de acordo com a Mozilla, porque o Firefox OS foi totalmente concebido para promover o acesso aos padrões da web, permitindo que cada funcionalidade seja desenvolvida como um aplicativo em HTML5. A flexibilidade da plataforma permite que as operadoras personalizem e desenvolvam facilmente serviços localizados para dar resposta às necessidades da sua base de clientes.
Anunciada como a primeira plataforma totalmente aberta pelo presidente da Telecom Italia, Franco Bernabé, que com essa afirmação queria provocar a reação do Google, responsável pelo desenvolvimento do Android, o Firefox OS vai manter a competição entre as líderes de mercado na América Latina: Telefônica e América Móvil (no Brasil, Claro). Embora só recentemente tenha aderido ao projeto, a América Móvil pretende lançar aparelhos com o novo sistema em maio.
Apesar da demonstração de força do pré-lançamento, ao qual compareceram 700 jornalistas, analistas olham com cautela a entrada do Firefox OS no mercado. O sistema vai enfrentar o líder de mercado, o Android, que tem 68,3% do market share mundial, e do iOS, da Apple, com 18,8%, segundo a IDC. No Brasil, o Android lidera com 56,7% do mercado, seguido pelo Symbian (a Nokia trocou este sistema operacional pelo Windows, da Microsoft), com 31,5%, de acordo com dados da Kantar WorldPanel ComTech. (Lia Ribeiro Dias)