Entrevista – As corporações põem dinheiro no software livre

Com a criação da Otun, o mercado corporativo se aproxima das comunidades do software livre. E abre, para os jovens talentos formados nos telecentros, uma oportunidade de capacitação e novas frentes de trabalho.

Com a criação da Otun, o mercado
corporativo se aproxima das comunidades do software livre. E abre, para
os jovens talentos formados nos telecentros, uma oportunidade de
capacitação e novas frentes de trabalho.
Lia Ribeiro Dias e Verônica Couto

O que seria impensável pouco
tempo atrás, começa a acontecer e pode mudar o padrão de
desenvolvimento e uso de software no Brasil: a criação de uma entidade,
a Rede de Usuários de Tecnologias Abertas (Otun, do inglês Open
Technology Users Network
), que se propõe a desenvolver dentro do modelo
colaborativo, junto com a comunidade de software livre, uma série de
suites de soluções para atender às demandas mais urgentes do mercado
corporativo; que terão sua metodologia colocada à disposição de todas
as empresas que aderirem à Otun. E todos os prestadores de serviço que
quiserem  trabalhar com essas soluções, seja na sua implementação,
no suporte ou consultoria, terão que se certificar junto à organização.

Lançada no dia 17, em São Paulo, na sede da Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (Fiesp), a Otun, segundo um de seus idealizadores,
José Luiz de Cerqueira César, vice-presidente do Banco do Brasil, nasce
para fazer a articulação entre as necessidades de atualização
tecnológica das empresas usuárias, que representam a demanda, e os
desenvolvedores de software e soluções, que representam a oferta. Essa
articulação passa pelo desenvolvimento colaborativo e consorciado,
caminho necessário para baixar custos, aumentar a eficiência
empresarial e a qualidade das soluções desenvolvidas, e garantir a sua
continuidade. “Nenhuma grande empresa quer mais ficar na situação de
adotar uma tecnologia que acaba descontinuada, se pode ter outras
opções mais estáveis, com maior qualidade, em processo contínuo de
aperfeiçoamento por envolver um esforço coletivo”, afirmou Cerqueira.
“A Otun vem consolidar as vantagens do modelo do software livre e
reduzir as suas possíveis desvantagens”, disse Sergio Amadeu da
Silveira, presidente do ITI e um dos mais apaixonados defensores da
adoção do software livre no país. Entre as desvantagens mencionadas por
Amadeu está basicamente a desconfiança do mercado corporativo em
relação às soluções livres, no que diz respeito à sua perenidade,
manutenção e suporte. Desconfiança que tende a ser afastada com a
certificação, pela Otun, das soluções e dos prestadores de serviços.

A Otun, pelas contas de Cerqueira César, vai precisar de R$ 1,5 milhão
mensais para desenvolver o seu trabalho. Como se encontra em fase de
formalização jurídica, como entidade civil sem fins lucrativos, ainda
não tinha, no seu lançamento, a adesão formal de empresas de
tecnologia. Mas é certo que ao lado de grandes usuários, como Banco do
Brasil, Caixa Econômica Federal, Casas Bahia, Carrefour, entre muitos
outros, vão estar grandes fornecedores de tecnologia, como as
multinacionais, e médios e pequenos desenvolvedores.

Nesta entrevista, Cerqueira César conta por que a Otun vai ser um
catalisador para os profissionais de software livre que quiserem aderir
aos projetos, e como a organização vai trazer, para o mercado de
trabalho, os jovens que se formam nos projetos de inclusão digital.

ARede Qual o objetivo da Otun e em que medida ela vai elevar a outro patamar o movimento do software livre no Brasil?

Cerqueira Cezar –
A discussão do software livre no país tem sido feita
de uma maneira incompleta. É uma discussão polêmica, nova, que
pressupõe quebras de paradigmas comerciais, de modelos de distribuição.
Tentou-se desvirtuar, de certa forma, a gênese verdadeira dessa
discussão, como se aqueles que estivessem defendendo o software livre
estivessem promovendo uma guerra contra as empresas ou contra as
soluções proprietárias. Muita gente ainda não entendeu o momento, e as
oportunidades de mercado que existem para esse novo paradigma de
produção. Criou-se uma polarização falsa, tentou-se confundir a defesa
às vezes romântica e apaixonada, natural em toda inovação , com o
estabelecimento de uma guerra ideológica contra fornecedor a, b, ou c.
É importante passar uma régua nesse ponto, até para que nós, como país,
possamos avançar. Fizemos questão de fazer o lançamento da Otun no
coração da indústria brasileira, dentro da Fiesp (Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo), para demonstrar claramente que
busca de competitividade, redução de custo Brasil, criação de redes de
sustentação tecnológica para os diferentes segmentos da indústria –
bancos e outros segmentos da economia
são metas e desafios que estão
aí há muitos anos e que, até hoje, não conseguimos suplantar.

ARedeComo o software livre se insere na redução do custo Brasil,
aumento da oferta de trabalho, da competitividade, inserção
internacional?


Cerqueira Cezar
Se analisarmos as comunidades existentes em torno do
mundo do software livre, e não só, mas em torno dos padrões abertos,
vamos perceber diferentes formas inovadoras de se organizar a produção.
Muitos modelos que encontramos dentro dessas comunidades são totalmente
replicáveis na indústria tradicional. Há um artigo recente muito
interessante sobre a Toyota, que analisa como a empresa desenvolve seus
projetos estratégicos. A forma de governança tem muita similaridade com
as estruturas produtivas que encontramos no software livre. Estamos
vivendo uma nova onda na economia
já tivemos a onda do surgimento da
internet e, após a bolha, a sua consolidação no mundo físico,
corporativo –, na indústria do software, marcada pela revisão integral
de todos os modelos de distribuição, comercialização e produção.
Palavras como consórcio, compartilhamento, colaboração estão presentes,
hoje, em todas as mesas de executivos de todas as companhias. No Banco
do Brasil e em outros bancos. O próprio presidente da Febraban
(Federação Brasileira de Bancos) fala em compartilhamento de
backoffice, colaboração no desenvolvimento, integração das redes de
auto-atendimento. Todo mundo fala nisso. Porque não há mais espaço para
a companhia que não buscar eficiência operacional e melhoria de suas
condições de competitividade.

 ARede – As palavras mágicas do software livre chegaram às corporações?

"Colaborar, compartilhar
investimento e despesa".
Cerqueira Cezar –
É isso. Colaborar, compartilhar investimento e
despesa, abrir uma solução para que outros a utilizem e dêem
sustentabilidade, elaborar consórcios para reduzir o gap competitivo,
criar uma solução de escala. Isso vale desde a microeconomia, como
arranjo produtivo local, até um grande cluster, como um projeto de um
novo segmento como é o caso de biomassa. Não adianta o investidor ter
dinheiro para montar a unidade de transformação da mamona, por exemplo.
Alguém vai ter que plantar a mamona. Então, não dá para viabilizar a
indústria de biomassa, sem pensar num arranjo entre produtores,
agricultores, empresas de logística, e outros ingredientes. Da mesma
forma, hoje, não dá para pensar em grandes investimentos, até porque as
empresas não têm um grande fôlego de investimento em P&D e
inovações; muitas vezes, sozinhas, não viabilizam a própria reinvenção
de seu negócio. O papel da Otun é exercitar esses modelos, promover
empreendimentos baseados nessa nova lógica de colaboração e
compartilhamento.


ARede –
Pode-se dizer que a Otun vem consolidar, organizar, formalizar e qualificar a produção do software livre?

Cerqueira Cezar
A Otun vai catalisar um potencial já existente
não estamos falando de nada abstrato. São universidades, comunidades,
empresas, pequenas ainda e outras grandes, como as multinacionais que
estão à procura de países onde localizar seus centros de competência em
software livre, casos da Nokia, Sun e Novell. A tarefa da entidade é
orquestrar e aproximar os usuários corporativos, a comunidade de
software livre e os grandes vendors. E, dessa forma, criar as condições
para os empreendimentos que, muitas vezes hoje, não se viabilizam de
maneira isolada. Para tanto, é preciso capital financeiro e
intelectual, certificar essas soluções, dar uma garantia corporativa
para que as empresas utilizem aquela solução com segurança, e
certificar a sua cadeia de valor. Por exemplo, uma solução de
geoprocessamento. Ela demanda software, os equipamentos que vão
hospedar e processar esse software, capacitação dos usuários, suporte,
consultoria para avaliar as potencialidades da sua aplicação. Essa
solução precisa ser certificada, ter um selo, para que quem for
adotá-la tenha segurança da sua qualidade e de que não será
descontinuada.


ARede –
É possível identificar pontos mais vulneráveis que a montagem
desse modelo vai enfrentar? É a produção do código, o suporte?


Cerqueira Cezar
O que falta é um espaço de orquestração. Hoje, quem
está fazendo esse papel são as grandes empresas de tecnologia, como
IBM, Sun, Novell. Ao inserirmos os usuários corporativos no processo,
vamos introduzir uma massa crítica para que não fiquemos reféns de
apenas alguns fornecedores. Esses fornecedores têm que ser
co-partícipes, colaborar na formação de centros de competência, mas não
podem ser os líderes do processo. Só assim o Brasil poderá, de fato, se
consolidar como uma referência de exportação em soluções abertas.

Para as pequenas e médias empresas o acesso à tecnologia ainda é muito
restritivo em função do nível de investimentos demandado. No caso das
companhias usuárias, na medida em que o modelo é de compartilhamento de
investimentos e custos, vai ocorrer uma maior democratização no acesso
a soluções e à tecnologia. É diferente um hospital desenvolver uma
ferramenta de gestão e a mesma ferramenta ser produzida por um
consórcio de vários hospitais pequenos e médios, podendo ser replicada
depois por outros hospitais. Há um custo para cada um, mas muito
inferior, se comparado ao de uma solução proprietária. Quanto as
desenvolvedores de software de pequeno e médio portes, precisam estar
organizados em um ecossistema que permita uma governança e o uso
compartilhado de ferramental jurídico, tecnológico, comercial. A grande
maioria das empresas tem uma taxa de mortalidade muito alta, por falta
dessa infra-estrutura compartilhada. Em todos os segmentos da economia
e não só no de software.


ARede –
Como vai ser o processo de certificação de empresas?

Cerqueira Cezar –
Um caminho é partir de um produto existente,
submetendo-o a um conjunto de usuários que vão fazer a crítica de seu
desempenho: seus pontos fortes e fracos, o que precisa ser mudado,
acrescido, etc. A partir daí, chega-se a uma solução, que vai precisar
de investimento para ficar pronta atendendo a todas as especificações.
Se o código for proprietário, terá que ser aberto, se já for aberto,
terá que se adequar aos padrões de documentação, de linguagem, de
portabilidade. Em paralelo a esse trabalho, outros profissionais
estarão criando os programas de certificação para aquela solução. Isso
faz parte do projeto. Quem quiser trabalhar com aquela solução, e ter o
selo da Otun, terá que se certificar. Pode ser uma pequena empresa,
pode ser uma grande empresa que venha a funcionar como um hub,
replicando essa certificação para uma rede distribuída de empresas
terceirizadas.


ARede –
Quando se começou a falar na criação dessa entidade
certificadora, alguns desenvolvedores de software livre temiam que essa
certificação funcionasse como um filtro de processo de desenvolvimento.
Existe esse risco?


Cerqueira Cezar
A organização não tem ambição de substituir o
movimento e a comunidade de software livre. Dentro dessa comunidade, há
técnicos que trabalham em boas empresas e, nas horas de lazer, se
dedicam ao desenvolvimento, voluntariamente, sem problemas econômicos e
com nível educacional alto. Não vamos nos dirigir a esse público, mas
sim aos jovens que estão na base da pirâmide e estão se desenvolvendo
no ambiente do software livre. Para esses, a organização vai criar
espaço e oportunidades profissionais. A idéia é não engessar o seu
trabalho, nem interferir nas suas comunidades, até porque participar do
projeto é um ato voluntário. A organização pretende oferecer
oportunidades de trabalho para esses jovens e capacitá-los para montar
os seus negócios
como dar suporte ao telecentro e aos pequenos
negócios do bairro, ou a projetos de arranjos produtivos.

Nós temos uma demanda bem clara, nosso carro-chefe, que são os usuários
corporativos. Temos um segundo pilar que é a inclusão digital. Muitas
corporações querem participar da inclusão digital mas, às vezes, não
têm os mecanismos de transferência de recursos ou técnico-operacionais
para isso. Ao envolvermos os jovens, como monitores e gestores de
projetos de inclusão digital, estamos criando oportunidade para as
corporações contribuírem. O terceiro pilar são os arranjos produtivos agrupamentos econômicos de diferentes segmentos que carecem também
de um suporte tecnológico. Nossa tarefa é capacitar os jovens dos
projetos de inclusão digital para que atendam, como agentes de suporte,
às demandas dos arranjos produtivos, com o apoio do nosso carro-chefe,
as corporações. Isso não tem nada de filantrópico. Vamos aproveitar a
inteligência que já existe nos projetos de inclusão digital e integrar
os grupamentos econômicos com as ferramentas tecnológicas que podem ser
introduzidas nessas iniciativas.


ARede –
Quando deve se iniciar e como será o processo de capacitação dos jovens?

"Temos um segundo pilar que é a
inclusão digital".

Cerqueira Cezar
A diretoria provisória tem 90 dias para colocar em
pé a organização e os primeiros empreendimentos, que são os seguintes:
suite de gestão municipal, suite para ATM/bancos, suite estação de
trabalho, suite de e-learning (plataforma com conteúdo para as
capacitações online da própria organização), suite de geoprocesamento,
projeto CAD (computer aided design, ou projeto auxiliado por
computador) e ferramentas para apoiar os arranjos produtivos locais.
Esses empreendimentos, dependendo da solução, vão exigir capacitação,
consultoria, suporte. É aí que entram os jovens talentos dos projetos
de inclusão digital e as pequenas empresas que vão querer se certificar
como prestadoras de serviço. A identificação desses talentos pode se
dar com base na proximidade geográfica entre o telecentro e o arranjo
produtivo local, até pela realização de um concurso para selecionar
profissionais que terão vaga como desenvolvedores num desses
empreendimentos. Ao usar os jovens dos telecentros, está se articulando
os projetos com políticas públicas e, por meio da demanda corporativa
ou dos artesãos/artíficies da comunidade, ajudando a lhes dar
sustentabilidade.


ARede –
E essas articulações serão feitas pela Otun a partir dos seis projetos que serão desenvolvidos, inicialmente?

Cerqueira Cezar –
Esse é o caminho. A adesão é proporcional ao grau de
criatividade e atração financeira e tecnológica dos empreendimentos, a
partir do momento em que eles tenham aderência aos interesses e
necessidade das empresas. Por outro lado, tudo que vier a democratizar
a capacitação e atualização tecnológica para as empresas é uma proposta
que atrai. No Banco do Brasil, temos 4 mil técnicos na área de
tecnologia em diferentes disciplinas, com necessidade de reproduzir
esses conhecimentos, mantê-los, atualizá-los. Se eu somar mais cinco ou
seis empresas, fica explosivo. Esse modelo de compartilhamento de
conhecimento, de soluções, de investimento e de despesa é música para
as empresas.