Entrevista – As OnGs não substituem o Estado

O historiador Antônio Eleilson Leite, coordenador da Associação Brasileira das Organizações não-Governamentais (Abong) em São Paulo, que atua na Ação Educativa, defende a atualização do marco regulatório do terceiro setor. E critica a criação da figura das Organizações Sociais, entidades que, em vez de parceiras dos governos, assumem de forma terceirizada o papel que deveria ser do poder público.


O
historiador Antônio Eleilson Leite, coordenador da Associação
Brasileira das Organizações não-Governamentais (Abong) em São Paulo,
que atua na Ação Educativa, defende a atualização do marco regulatório
do terceiro setor. E critica a criação da figura das Organizações
Sociais, entidades que, em vez de parceiras dos governos, assumem de
forma terceirizada o papel que deveria ser do poder público.
  Lia Ribeiro Dias

A final, o que são as Organizações não-Governamentais (OnGs)? Qual é o
seu papel na sociedade e no fortalecimento da democracia? Por que foram
alvo da proposta de criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito,
em novembro, feita pelo senador Heráclito Fortes (PFL/PI)? Essas e
outras questões são discutidas nesta entrevista com o historiador
Antônio Eleilson Leite, coordenador do Centro de Juventude e Educação
Continuada da Ação Educativa, uma OnG de longa tradição na defesa do
direto à educação, e coordenador da regional São Paulo da Associação
Brasileira de Organizações não-Governamentais (Abong), que reúne 270
associadas. Eleilson considera que a motivação do senador Heráclito
Fortes é claramente político-partidária, ao defender a CPI, cuja
requisição deve ser reapresentada em fevereiro, segundo o acordo feito
entre parlamentares da oposição e do governo. Mas o coordenador da
Abong é a favor do debate sobre o papel das OnGs e a transferência de
recursos públicos. Entende que o marco regulatório relativo a essas
entidades precisa ser harmonizado e atualizado, já que há várias leis
tratando das associações e fundações sem fins lucrativos.

Embora destaque o papel das OnGs na formulação e na execução de
políticas públicas e projetos, Eleilson insiste em que elas não
substituem o Estado. Por isso mesmo, a Abong se coloca contra a lei que
criou a OS — Organização Social, um modelo de entidade que,
diferentemente, assume, de fato, a gestão de setores estatais.

Segundo levantamento do Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea), com o
IBGE, até 2002, eram 276 mil fundações e associações sem fins
lucrativos no Brasil, empregando 1,5 milhão de pessoas. Só que 77% não
tinham nenhum funcionário, e apenas 1% — principalmente grandes
hospitais e universidades ditas sem fins lucrativos — empregava mais de
1 milhão. Se o peso político dessas entidades não é proporcional aos
números apurados, é verdade que tem havido uma expansão das OnGs que
enfatizam a defesa de direitos, do meio ambiente e do desenvolvimento
rural. Entre 1996 e 2002, elas saltaram de 2,8 mil para 8,6 mil.

ARede • O que, na sua avaliação,
motivou o pedido de CPI para investigar a atuação das OnGs? Há um
recrudescimento das irregularidades ou você vê aí motivação política?

Eleilson • A CPI é um recurso importante do Parlamento, do
sistema democrático, e não há nenhum problema de haver uma CPI para
investigar a atuação de organizações sociais não-governamentais. O
problema é a motivação. Não é a primeira CPI de OnGs. No início dos
anos 90, houve uma CPI de OnGs, solicitada por parlamentares ligados a
madeireiras que atuam na região amazônica e viam, nas OnGs, um
empecilho a seu trabalho. Eu acredito que o senador Heráclito Fortes,
pelo que pude observar pela imprensa, tem motivações políticas. A
partir da constatação de que uma determinada OnG teria recebido um
volume grande de recursos federais, ele colocou sob suspeita essa OnG e
todas as demais que recebem repasse de recursos federais ou estaduais.
Seria até interessante se ter uma CPI que pudesse esclarecer à
população sobre os diferentes tipos de OnGs existentes e sobre o
repasse de recursos públicos.

ARede • Quando e por que as OnGs
cresceram no país? É um contraponto às privatizações, ao estado mínimo?
O Estado, por falta de infra-estrutura própria de pessoal, passou a
recorrer a elas para desenvolver políticas públicas?

Eleilson • Existe um levantamento realizado pelo Ipea e pelo
IBGE, publicado em 2004 e que cobriu o período até 2002, que apontou a
existência de 276 mil associações e fundações sem finalidade lucrativa.
São instituições de todo tipo, desde associações de moradores, de
classe, de defesa de diretos, etc. Na década de 80, foram criadas 62
mil entidades sem finalidade lucrativa; na década de 90, 140 mil.
Possivelmente, esse volume de entidades criadas na década de 90 se deve
ao estímulo da Constituição de 1998. Ela diz que as pessoas têm
liberdade de constituir associações e que é vedada a interferência do
Estado desde que, evidentemente, não sejam organizações de caráter
racista ou paramilitar. Esse fato se insere no processo de
redemocratização, a partir de 1985, que por si só estimulou os
mecanismos de organização da sociedade. Outro fator relevante foi a
realização, no Brasil, em 92, no Rio de Janeiro, da conferência da ONU
sobre o meio ambiente. A sociedade civil organizou uma conferência
paralela, no Aterro do Flamengo. A partir dali, a mídia passou a dar
destaque ao trabalho das OnGs, o que também passou a estimular seu
desenvolvimento.

ARede • Como você avalia a importância do Terceiro Setor na consolidação da democracia?
Eleilson • Nós, da Abong, não gostamos dessa definição de
Terceiro Setor, porque é uma definição, a nosso ver, muito associada a
um conceito trazido para o Brasil pela filantropia empresarial. A
Conferência do Meio Ambiente de 1992 também despertou, de forma
legítima, iniciativas do setor empresarial. Foram criados o Instituto
Ethos e o GIFE (Grupo de Investimentos de Fundações e Empresas), duas
forças do empresariado, uma de responsabilidade social e outra de
investimento social privado, que ajudaram a alavancar as fundações
privadas de tal forma que, a partir da metade dos anos 90, foi esse
conceito que passou a ser destacado na mídia. Toda e qualquer definição
que se possa dar para OnG é insuficiente. Uma definição do Senado
Federal estabelece que a OnG é um grupo social organizado formalmente e
autonomamente, com ações de solidariedade a populações excluídas. Só
que a Associação Paulista Viva, organizada pela associação de lojistas
e moradores, também é uma OnG, embora não defenda nenhuma população
excluída. Não estou tirando o valor da iniciativa. O exemplo é para
mostrar como qualquer definição é insuficiente. Usamos o termo OnG
porque ele está mais vinculado à pressão dos movimentos sociais, à
militância, ao engajamento e à defesa de direitos.

ARede • E quais são as diferenças entre OnGs, Oscips e OSs?
Eleilson • Outro movimento importante que ocorreu nos anos 90,
foi o fato de o governo FHC ter ordenado as relações das instituições
com o Estado. Ele deu um novo papel às OnGs, com uma visão própria, a
de que elas podem completar o papel do Estado. Isso traz um certo
esvaziamento do Estado na implementação das políticas sociais. O
ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira é um formulador dessa
concepção, que é programática no PSDB. A reforma do Estado do governo
FHC previa a criação das Oscips. Na verdade, elas foram criadas no
âmbito do Comunidade Solidário, programa que era conduzido pela Ruth
Cardoso. Com as Oscips, cria-se o termo de parceria, que é uma
modalidade de convênio menos burocratizada e que possibilita um
dinamismo das OnGs em sua relação com o Estado. O conceito de interesse
público das Oscips é bastante interessante. O problema está nas
conseqüências disso. Existem hoje, no Brasil, 4 mil OnGs que obtiveram
o título de Oscips via Ministério da Justiça (também pode ser obtido em
nível estadual). Uma das imperfeições da lei é que qualquer
instituição, mesmo recém-criada, pode requerer o título de Oscip; e
muitas OnGs viraram um negócio. Muitos profissionais, gente séria, no
lugar de montar uma consultoria, montam uma OnG e requerem o título de
Oscip. Em si, não há nenhum problema em se fazer isso porque é até uma
forma de você, estando fora do governo, contribuir com a formulação de
políticas. Só que esse mecanismo pode levar a uma terceirização do
Estado, sem controle.

ARede • O que é uma OS?
Eleilson • É um título dado pelo chefe do Executivo federal, que
permite à OnG gerir um equipamento público, estabelecido pela Lei 9637,
de maio de 1998. O que o Estado faz com a OS não é um convênio, como no
caso da Oscip, é um contrato de gestão. O Hospital Sara Kubitscheck é
uma OS. A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo é uma OS. O Museu
da Casa Brasileira, da Casa das Rosas, da Língua Portuguesa, todos eles
são OS. Evidentemente que isso deve ter aspectos positivos, mas, em
termos de política pública, pode criar um grande problema. Como OS,
essas instituições têm sua autonomia de captação de recursos, o que
pode acabar gerando uma distorção na distribuição dos recursos, já que
não se tem mais o Estado para fazer a equalização. Como exemplo: a
Orquestra Sinfônica, em função de sua excelência, por aquele auditório
maravilhoso construído pelo Estado, tem muito maior condição de captar
recursos do que outra entidade, mesmo que seja uma OS. Nós, da Abong,
somos contra a Lei da OS, porque entendemos que tem problema
intrínseco, o que não acontece com a Lei das Oscips, onde temos que
estar atentos apenas para as conseqüências da sua aplicação.

ARede • Como você vê o marco regulatório hoje?
Eleilson • É absolutamente necessário ter marco regulatório. Por
meios dos títulos públicos, já há uma certa delimitação do caráter das
OnGs. O Conselho Nacional de Assistência Social atribui um título de
utilidade pública federal, que define determinados atributos da
entidade. Ele dá o título de assistência social e de filantropia. Mas a
regulamentação não é suficiente. No primeiro ano do governo Lula, a
Abong apresentou uma agenda com cinco pontos. Um deles se referia ao
marco legal e acesso aos fundos públicos. Depois, em 2004, o governo
criou um grupo de trabalho formado pela Abong, Gife e uma entidade de
Oscips e vários ministérios, que acabou não andando, até em função da
crise política. E, agora, vamos fazer um evento no Congresso Nacional.
Lá existem 23 ou 24 projetos de lei relativos a OnGs. O que a Abong
proclama, no que diz respeito ao marco legal, é a defesa de alguns
princípios, como o da autonomia das organizações, o que está garantido
na Constituição. Também queremos avançar o debate para estabelecer o
que é uma OnG de defesa de direito, que é o âmbito de atuação das
afiliadas da Abong. A Lei Orgânica de Assistência Social, a Loas,
regulamentada em dezembro de 2005, define, de algum modo, a OnG de
defesa de direito. Outras leis também tratam dessa questão. Mas existem
também os direitos difusos, para os quais não há lei específica. Quando
você fala em desafio em relação ao marco regulatório, eu acho que ele
está no fortalecimento do campo das OnGs de defesa de direito, que têm,
como característica, atuar ao lado do movimento social e fortalecer a
democracia.

ARede • A que se devem as freqüentes denúncias, que recrudescem de quando em quando, de irregularidades envolvendo OnGs?
Eleilson • Praticar irregularidades envolvendo OnGs é um caminho
convidativo pois, por serem entidades sem fins lucrativos, elas gozam
de uma série de isenções fiscais. Daí a necessidade de fiscalização.
Mas o desvio de recursos em OnGs não é maior do que dentro do próprio
Estado ou em empresas privadas que sonegam impostos. Mas é natural que
casos de irregularidades em OnGs chamem a atenção porque a finalidade
delas é fazer o bem; e é abominável que isso aconteça. Mas se há desvio
de recursos em OnGs que prestam serviço para o Estado, seja ele
federal, estadual ou municipal, o problema primeiro é do Estado.
Primeiro, porque fez o contrato de gestão, de parceria ou convênio sem
critério. Depois, porque tem mecanismos para investigar através de seu
órgãos de controle, como tribunais de contas..

ARede • Quanto ao financiamento, de onde vêm os recursos?
Eleilson • Entre as associadas da Abong, que são 270, 150 têm
recursos de cooperação internacional, que são geralmente fundações da
Europa e dos Estados Unidos que captam recursos de fundos públicos ou
mesmo de pessoas. Até o início dos anos 80, essa era praticamente a
única forma de financiamento existente. Mas vem crescendo a
participação de financiamentos nacionais, seja de governos, pessoas ou
empresas, que já respondem por 42% dos recursos captados pelas OnGs
filiadas à Abong.

ARede • A distribuição de recursos privilegia as OnGs de primeira divisão, mais bem estruturadas e de maior visibilidade?
Eleilson •
A professora Marilena Chauí diz que as OnGs têm ocupado o vácuo do
movimento social e, por vezes, substituído o próprio movimento, e os
movimentos têm-se convertido em OnGs, em função de maiores facilidades
de acesso a recursos. Ela atribui essa dinâmica à despolitização dos
movimentos. Essa questão é bem mais séria do que a falta de
equanimidade na distribuição dos recursos, que existe de fato. Nós, da
Abong, pelo menos, pautamos nossa atuação na aliança com os movimentos.
Até o início dos anos 90, OnGs, como as nossas, ficavam atrás do biombo
dos movimentos, ajudavam a fomentar os sindicatos, tanto rurais como
urbanos. Já o movimento ambientalista, assim como o feminino, é todo
ele originado em OnGs. Então, essa relação entre movimentos sociais e
OnGs é complexa. Em alguns momentos, as OnGs fomentam os movimentos
sociais, em outros, eles são as próprias OnGs. Mas é bom lembrar que o
movimento social, percebendo a necessidade de uma organização
institucional, criou, nos anos 90, a Central dos Movimentos Populares,
que consegue captar recursos para os movimentos. Isso é importante
porque resguarda a autonomia dos movimentos. Até porque as OnGs, também
da década de 90 para cá, têm se colocado mais como ator político,
acabou a história do biombo. Existe, então, um certo tensionamento, que
não está resolvido. Nós, da Ação Educativa, captamos recursos através
de projetos. Mas também atuamos na articulação da Campanha Nacional
pelo Direito à Educação, que reúne 200 entidades. Temos a franca
compreensão de que se não estivermos aliados ao movimento social e
colados à sua pauta, nossa razão de ser deixa de existir. E essa é a
perspectiva de trabalho da Abong — se o movimento social não estiver
fortalecido, as OnGs não têm por que existir.

ARede • Em que medida as OnGs são relevantes no desenvolvimento de políticas públicas?
Eleilson • Elas têm essa característica de criar modelos que
podem ser replicados em políticas públicas. Como exemplo, na Ação
Educativa,  desenvolvemos um projeto em parceria com o Ibope,
“Nossa escola precisa de sua opinião”. Ele capacita o professor a
utilizar a opinião pública como instrumento didático. O projeto chamou
a atenção do MEC e de secretarias de educação interessadas em replicar
a metodologia. Outro trabalho legal é o das OnGs que fizeram do Brasil
uma referência mundial em prevenção da Aids, trabalho que não existiria
sem a parceria do Estado com as OnGs. As OnGs têm papel na formulação
de políticas públicas, são parceiras. Gostaria, ainda, de citar os
Pontos de Cultura, do programa Cultura Viva do Ministério da Cultura,
exemplo de como deve ser o papel de uma OnG na relação com o Estado. O
ordenamento da política quem dá é o Estado e a OnG entra na ponta
implementando a política definida pelo Estado. Uma OnG nunca pode ser a
executora da política pública, senão não é OnG, vira uma organização
governamental.

ARede • Por que a bandeira da inclusão digital ficou confinada a OnGs com foco específico nessa questão?
Eleilson • A inclusão digital é mal compreendida pelo nosso
segmento. Muita gente acha que inclusão digital é só colocar computador
com acesso à internet para comunidades carentes. Não percebe que
envolve a democratização das informações, do acesso à informação, a
transformação das pessoas em autores. Também a questão do software
livre é importante. Estamos interessados nessa discussão.