O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos explica as raízes históricas da crise do governo Lula. Verônica Couto
O cientista político
Wanderley Guilherme dos Santos tem uma explicação estrutural para a
crise que atingiu o governo do presidente Lula, com denúncias de crimes
eleitorais (caixa 2) e de corrupção em contratos estatais. Segundo ele,
o Estado brasileiro, incluindo aí os Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário, é extremamente vulnerável às pressões dos grupos
empresariais privados, que disputam à foice posições dentro das
instituições. Criado na década de 30 para atender os interesses de
grupos oligárquicos de base rural e de uma indústria nascente, também
não tem instrumentos nem capacidade para implementar e executar
programas sociais de larga escala. Em síntese, o Estado brasileiro está
velho e obsoleto.
Essas são, de acordo com o cientista político, as raízes históricas da
atual crise política. Outra razão seria o fato de que, no governo
anterior, não havia uma oposição tão forte como agora – dentro do
Congresso, mas também fora dele, por meio da chamada grande imprensa.
Ou seja, ainda que tenha sido identificado, por exemplo, caso de compra
de votos (para a reeleição de FHC), Santos avalia que a oposição da
época, exercida basicamente pelo próprio PT, não conseguiu transformar
os episódios críticos em um fato institucional.
Ele acredita, contudo, que o movimento popular vai se recompor e que o
avanço dos programas de inclusão social e digital é irreversível. O
movimento social, diz o centista político, pode se comparar à difusão
de endemias – umas mais rápidas, outras menos, elas se espalham em
ondas. Para ampliar o controle sobre a máquina estatal, Santos defende
maior participação popular nas decisões, a descentralização dos poderes
e dos recursos públicos, a modernização do Estado e de suas agências.
Para as campanhas eleitorais, é favorável ao financiamento privado (com
teto máximo permitido), e acompanhamento da aplicação e das doações
pela internet.
ARede – É possível explicar a atual crise política?
"Disputas econômicas intensas
em torno do aparelho de Estado."Wanderley – O Estado brasileiro, suas agências, instituições, conselhos
normativos, reguladores, agências de execução, tanto na sua versão
federal, quanto nos estados e municípios, foram criados, sobretudo, ao
longo da década de 30, na época do governo de Getúlio Vargas. Foi ele
que criou o Estado Nacional brasileiro. Antes, não havia um Estado
nacional, mas apenas um Estado oligárquico. Desde então, a única mexida
no Estado brasileiro foi no período de Juscelino Kubitschek. Ele tinha
um plano de metas a cumprir e, àquela altura, na década de 50, o Estado
já apresentava aspectos negativos, com várias agências conhecidas por
seu fisiologismo e corrupção. Juscelino, em vez de se bater e gastar
tempo na reformulação e reestruturação desse aparelho de Estado, formou
uma estrutura paralela para executar o seu programa – os Grupos
Executivos. Ele criou uma série de pequenos órgãos e de conselhos – com
o beneplácito do Congresso – com autonomia gerencial e orçamentária.
Terminado o governo de Juscelino, parte desses grupos foi absorvida
pela máquina funcional, parte desapareceu. E o Estado brasileiro
continuou com aqueles remendos e pequenas mudanças, enquanto iam
aparecendo novas necessidades e que aumentava a lógica da competição
política.
Não me refiro apenas a partidos políticos, mas a grupos privados que
dependem do Estado e, portanto, precisavam controlar pedaços dele para
obter legislação, regulamentação, áreas de influência. E foi isso que
presidiu a evolução do Estado brasileiro, inclusive durante o período
autoritário, ditatorial, quando a política em torno dos lugares de
poder dentro do aparelho de Estado era a chamada política de corredor,
em que a disputa não se dava publicamente. Eram pressões contra
pressões dentro do aparelho de Estado, num processo altamente corrupto.
ARede – Mas há quem aponte, já na primeira gestão democrática, no governo Sarney, um crescimento de casos de corrupção.
Wanderley – Sim. Pela simples razão de que surgiram mais disputantes.
Não que tivessem desaparecido os outros. À medida que o processo
democrático avança, e que a economia e a sociedade brasileira se tornam
mais modernas e complexas, o número de agentes, de grupos de interesses
econômicos fica enorme. Mas o Estado brasileiro, nas suas estruturas
decisórias, de formulação de projetos, de planos, de políticas de
governo, não acompanhou essa evolução.
Estou considerando, como Estado brasileiro, o Executivo, o Legislativo
e o Judiciário. O Tribunal de Contas, por exemplo, é uma agência do
Legislativo. Foi uma inovação quando surgiu, em 45, com a democracia,
como um órgão de controle da União pelo Legislativo. E hoje é um
dinossauro. O Judiciário também precisa de reforma porque a sociedade
mudou muito e ele ficou parado. Mas não é só isso. Há também o fato de
que, nos últimos 30 anos, você incorporou duas grandes regiões do país
– o Norte e o Centro-Oeste –, que não eram relevantes nem do ponto de
vista da economia, nem da política. Atualmente, as pessoas adultas, no
Norte e no Centro-Oeste, tem a mesma taxa de matrícula eleitoral que no
Sudeste – cerca de 90% da população. Isso implicou uma invasão do
universo eleitoral brasileiro. O preço, o custo em votos, de cada
mandato de representação aumentou muito, porque cresceu muito o
eleitorado. Ao mesmo tempo, a economia brasileira virou uma economia
moderna, competitiva. E o Estado brasileiro é o mesmo. Então, em torno
desse aparelho de Estado é que as disputas políticas e econômicas se
travam de uma forma intensíssima. E a vulnerabilidade desse Estado a
processos de corrupção, assim como o valor da corrupção,
tornaram-se cada vez maiores.
ARede – As agências reguladoras não pretendiam uma fiscalização maior dos processos?
Wanderley – As agências reguladoras estão muito sujeitas a serem
capturadas. Grande parte dessa crise política, por trás das cortinas, é
uma competição de morte entre grupos que querem controlar as
telecomunicações. Os órgãos reguladores são um alvo brutal, e não só no
Brasil. Normalmente, nos capitalismos modernos, que é um capitalismo
sobretudo regulador e não executor, os órgãos de regulação são a nata.
E, por isso mesmo, neles há uma vigilância e uma transparência muito
grandes.
"Só quem faz política pública, hoje
é a burocracia."
O que não acontece no Brasil, por várias razões. Por exemplo, no caso
das nossas instituições de comunicação. Há um hibridismo, uma dupla
face na imprensa brasileira, em que os órgãos de divulgação e de
informação, ao mesmo tempo, são grandes negócios. Devem ser
pouquíssimos países que permitem uma coisa como a Rede Globo, com tal
quantidade de afiliadas, de jornais, revistas, rádios. É inacreditável
o poder de coação de uma organização como essa. Considero a Rede Globo
espetacular em tudo, mas, na parte política, é um problema sério,
porque eles utilizam esse poder, e qualquer um utilizaria, porque é um
grande negócio. Ou seja, não são só as estruturas do Estado que estão
velhas. Também as da sociedade. Boa parte da nossa economia e dos
nossos capitães de indústria ainda não se descolaram das tetas do
governo. No sentido não necessariamente impuro ou corrupto, o fato é
que são extremamente dependentes das decisões de governo. E do ponto de
vista político, institucional, há uma centralização brutal de recursos
e de capacidade decisória no governo central.
O resultado é que uma parte considerável da agenda dos políticos, com
pouquíssimas exceções, precisa ser dirigida para obter serviços para o
seu eleitorado. Existe, assim, uma dimensão da política nacional que é
apenas a administração de negócios locais ou estaduais junto ao
aparelho do Estado. Quem decide onde vai fazer um hospital, onde vai
fazer um rodoanel? A agenda de necessidades é maior do que os recursos
disponíveis, e quem decide é o governo central. Razão por que surgem as
brigas pelo orçamento. O problema das emendas do orçamento não é porque
o deputado vai botar o dinheiro no bolso. Ele não põe no bolso (pode
botar no bolso outras coisas, por outros caminhos). Mas o orçamento é
vital para assegurar votos. E, por outro lado, é a forma de as
instâncias regionais obterem serviços.
ARede – Qual a alternativa?
Wanderley – Quando você retira essa decisão do governo central e a leva
para o estado e para o município, ganha mais capacidade de controle. No
Brasil, exceto durante algum tempo no período do Império, nunca se
experimentou o federalismo de verdade. Num modelo descentralizado, o
município deve ter o poder de taxar e de fazer os impostos que bem
entender, segundo a sua Câmara de Vereadores. Se inventarem impostos
malucos, muito altos, as empresas saem de lá; o pessoal se muda e
desaparece o município, assim que é a vida num país federal. O que não
significa que, na política local, não exista corrupção. Mas é mais
fácil de controlá-la e identificá-la, para punir os responsáveis. E os
parlamentares teriam que fazer política de outra maneira, se dedicando
à elaboração de políticas públicas, de programas nacionais. Só quem faz
política pública, hoje, é a burocracia. São os técnicos.
ARede – Essa moldura explica o cenário de corrupção, mas não a crise,
uma vez que as raízes históricas já estavam presentes antes.
Wanderley – De fato, isso não aconteceu no período FHC, ou anteriores?
Aconteceu. Não se pegou ninguém? Pegou. Houve deputados que confessaram
a compra de votos para a emenda da reeleição. Essas coisas aconteciam.
Mas a oposição não tinha capacidade parlamentar, nem fora do Congresso,
de transformar os episódios em um fato político institucionalizado. O
que a oposição podia fazer, e fez o tempo todo, era gritar, fazer
escândalo, dizer Fora FHC. Agora não. Há uma oposição forte e bem
constituída dentro do parlamento, e também fora do Congresso, uma vez
que todos os órgãos de imprensa estão na oposição. É possível que
existam, ainda, outras motivações por trás da crise, que estão
desaguando nessas CPIs. Aos poucos, a gente talvez consiga ter uma
visão do que está acontecendo, além das disputas políticas reais entre
PSDB, PFL, PT. Mas acho difícil chegarmos a essa clareza, devido às
nossas condições históricas.
ARede – Como fugir desse ciclo? A esquerda virou uma terra arrasada?
Wanderley – Terra arrasada não, porque existe a esquerda das ruas.
Gente que não vai votar no PSDB nem no PFL. O PT vai perder um pouco de
votos, nessa primeira eleição. Mas não será essa sangria que estão
imaginando. Porque a crise não interfere naqueles 30%, que fazem o
núcleo de eleitorado do PT.
Além disso, você tem iniciativas na área social, mas não conta com um
Estado capacitado e instrumentalizado para executá-las. E é forçado a
improvisar. E quando há inovações políticas em áreas tradicionalmente
não atendidas, como na área social, elas acabam, às vezes, até pesando
contra os governos. Veja o que aconteceu com o programa Fome Zero ou
com o Bolsa Família. É um programa monumental, um dos maiores programas
sociais do mundo, mas o Estado brasileiro não tinha capacidade para
implementá-lo. O que está acontecendo? Críticas, falta de cadastro,
gente que recebia e não devia receber, gente que devia, mas não
recebe… Até você montar uma estrutura estatal capaz de atender com
eficiência esse serviço, tome pancada.
O orçamento tem uma parcela muito pequena para o governo decidir o que
pode fazer ou não. Parte dos recursos está vinculada (só pode ser
aplicada em áreas pré-definidas), outra parte tem que ser destinada a
compromissos anteriores, para emergências. Nessa faixa estreita, é que
um governo pode fazer a diferença. E, ao olhar para essa faixa, você
vai percebendo que a política do governo Lula muda prioridades em
relação aos governos anteriores.
ARede – Onde, por exemplo?
Wanderley – Na política social. Quando se refere a crédito para
microempresa, microcrédito, farmácias populares, Bolsa Família – que já
está chegando a 8 milhões de famílias. Na política econômica, a redução
da dependência do país em relação ao pagamento de juros caiu, o
compromisso sobre o PIB nacional é menor. E, com isso, aumenta a área
disponível de recursos para tomar decisões novas. É o que precisa ser
feito, alterar prioridades onde é possível decidir. E o governo vem
fazendo, pouco a pouco. Está tudo certo? Não está tudo certo, não, mas
a forma é essa. Não há outra.
ARede – Os programas de inclusão social e digital estão ameçados?
"Toda a grande imprensa
está na oposição."Wanderley – Não. Isso vai continuar. Durante algum tempo, não será
possível transformar essas ações em participação política. Mas os
programas vão continuar. Essas iniciativas de inclusão ou de
participação social são irreversíveis, porque as pessoas têm o que
perder. Uma experiência bem-sucedida diminui o medo dos custos da
participação, inclusive o do fracasso. A pedagogia do exemplo, no
entanto, com esses que já começaram e já têm o que perder, acaba por
conquistar outros agentes que ainda não se mobilizaram e acabam
seguindo o exemplo, que se difunde. Leva tempo, mas vai. Movimento
social, mutatis mutanti (isto é, com as devidas e óbvias diferenças), é
como a difusão de endemias. Umas são mais rápidas, outras mais lentas.
Mas o círculo de influência é assim, em ondas. Todo movimento social é
assim.
ARede – A reforma eleitoral melhora o quadro geral?
Wanderley – Nada impede as pessoas de se organizarem e pressionarem as
instituições. Existe, inclusive, a possibilidade de a sociedade tomar
iniciativas de apresentação de leis, prevista na Constituição. Mas só
uma foi aprovada, a que transforma crime eleitoral em crime com perda
de mandato. É a única lei, até hoje, criada por iniciativa popular. O
que impede as pessoas? Você não tem organizações capazes de
mobilizá-las para tanto, é o custo da participação. O problema não é a
falta de leis.
ARede – E o financiamento de campanha?
Wanderley – Tem que ser privado, com teto, e acompanhamento pela internet.