Os novos rumos do Casa Brasil

As unidades vão fazer parte da rede de extensão universitária e serão coordenadas por professores de universidades parceiras
Patrícia Cornils

O Casa Brasil foi concebido, em 2005, como um projeto modelo de inclusão digital, com espaços compostos por módulos que reuniriam atividades de formação, acesso a cultura e tecnologia da informação. Logo no primeiro ano de vida, sofreu um grave revés, quando o plano inicial se reduziu de mil a 90 unidades-piloto.

A própria articulação que possibilitou a existência do projeto, concebido dentro do Instituto Nacional da Tecnologia da Informação (ITI) e apoiado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), se mostrou frágil com o tempo: sem orçamento determinado, seus gestores praticaram, durante anos, o que em Brasília se chama “passar o pires na Esplanada”. Ou seja, buscar recursos em diversos órgão para viabilizar o projeto. Até que, em 2007, decidiu-se que o MCT assumiria o Casa Brasil. Mesmo com todas essas incertezas, a iniciativa já era conhecida em todo o país e o custo de descontinuá-la seria alto, em termos da credibilidade das políticas de inclusão digital do governo federal.
A transição demorou e 2009 foi, nas palavras de Roosevelt Tomé, coordenador geral de inclusão digital da Secretaria de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social (Secis) do MCT e atual responsável pelo Casa Brasil, “talvez o pior ano do projeto”. Um exemplo: em junho, a equipe de técnicos e coordenadores das unidades de Fortaleza publicou uma carta aberta na qual denunciava o descaso da prefeitura e do governo federal com as unidades. Os bolsistas, naquela época, estavam há oito meses sem receber.

No final de 2009, a transição para o MCT se concluiu e tomou-se a decisão de dar novos rumos ao projeto. As bolsas, prorrogadas até agosto, estão sendo pagas. Só 56 das 90 unidades criadas estão em atividade. Ao encerrar-se o período de pagamento das bolsas, um novo edital será publicado, para iniciar uma nova fase: o Casa Brasil será transformado em um programa de extensão universitária. Nesta entrevista, Roosevelt Tomé e Marco Aurélio de Carvalho, coordenador nacional do projeto, contam o que vai mudar.

O que aconteceu com o Casa Brasil?

Roosevelt Tomé – O projeto passou por um longo processo de transição entre a saída do ITI e a confirmação como um projeto do MCT. Nesse período, muitas entidades parcerias na ponta descontinuaram suas atividades. Mas seria uma insanidade deixar isso acontecer com uma política tão importante de inclusão digital. Ao contrário, nossa expectativa sempre foi a de que o programa não fosse descontinuado. Fizemos um planejamento estratégico em 2008, que contou com a participação de integrantes de comitês gestores e executivos das unidades, técnicos e coordenação nacional. Esse planejamento foi fundamental para debater a missão, os objetivos, as metas e os resultados do projeto. Ao mesmo tempo, o secretário de Inclusão Social do MCT, Joe Valle, solicitou ao professor Marco Aurélio de Carvalho uma avaliação do projeto, para entender como poderíamos seguir com ele e evitar esse sucateamento. A melhor alternativa, e a que vamos implementar, é a criação de uma Rede de Extensão para a Inclusão Digital (Reid). Vamos envolver os professores e as universidades no Casa Brasil, inclusive na gestão.

Quantas unidades do projeto estão em funcionamento?
Carvalho – Das 90 casas do edital original, havia 76 em funcionamento. Depois da avaliação, concluímos que só 56 poderiam continuar. A solução encontrada foi a coordenação nacional, no MCT, pagar as bolsas para seis pessoas em 40 dessas unidades, que foram consideradas satisfatórias mas não tinham como continuar os contratos com o CNPq, por pendências de documentação ou contratos vencidos. O CNPq ficou diretamente responsável pelas outras 16. As bolsas para as 56 unidades foram prorrogadas por mais seis meses, que acabam em agosto.

Tomé – O anseio na ponta era: “eu trabalhei tão bem, agora vou ser descontinuado?” Não. Quem trabalhou bem continua. Quem se achou prejudicado é porque nas avaliações feitas, inclusive na ponta, não apresentou resultado compatível com o que se comprometeu a realizar. Agora a ideia é criar condições de autosustentabilidade para essas unidades que ficaram. A manutenção desse projeto é um problema sério se a unidade não estiver atendendo o edital original e se não quiser se enquadrar no processo de continuidade que vamos estabelecer. Muitas das unidades estão vinculadas a prefeituras que já se manifestaram interessadas em continuar, inclusive absorvendo a obrigação de dar manutenção aos equipamentos. A partir de agosto, no edital em elaboração com participação das universidades, todos poderão concorrer em igualdade de condições, independente de já ter participado do projeto, de já ter recebido as bolsas.

Que critérios foram usados para avaliar as unidades?
Carvalho – Os critérios estavam definidos no edital e nos contratos. Os contratos eram de três anos, nos quais o governo federal, além de fornecer os recursos para instalação e os equipamentos, manteria seis bolsistas por unidade por um ano. O compromisso do edital era de que os parceiros dessem a sustentabilidade nos dois anos seguintes. Apesar disso, nós prorrogamos as bolsas ao final do primeiro ano. E também no final do segundo ano. As bolsas foram pagas por três anos, apesar de o edital prever apenas um. Isso foi um grande esforço.

O Casa Brasil foi formatado como um projeto de pesquisa no CNPq, que continha critérios de avaliação: formação de conselho gestor, operação da unidade, número de pessoas atendidas, atividades recomendadas, relatórios de execução, capacitação, envolvimento da comunidade. Os responsáveis pelas unidades e os bolsistas precisam fazer relatórios trimestrais e um relatório no final da execução. Solicitamos às unidades que mandassem seus relatórios. Havia unidades que nunca tinham feito nenhum, nem trimestral nem final. Muitas unidades faziam as coisas direitinho. Recorremos aos relatórios que existiam para verificar como estava a execução do projeto. Para aqueles que não mandaram relatórios, enviamos formulários pela internet para o proponente responder, mandamos para o coordenador da unidade responder, e, finalmente, para os bolsistas responderem. Esse trabalho intenso de busca de dados durou dois meses, no final de 2009. Das 76 unidades em atividade, algumas nunca responderam. Das que responderam, algumas disseram que queriam fechar e até propuseram que seus equipamentos fossem levados para outra unidade. Isso aconteceu em Recife e em Salvador. Apenas duas que não foram reconduzidas recorreram diretamente à Secis pedindo continuidade: uma em Santa Maria (RS), outra em Recife (PE). São unidades ligadas a prefeituras e as prefeituras entraram em contato pedindo reconsideração. Nas unidades mantidas, na semana passada estávamos com mais de cem bolsistas com contratos resolvidos. Se a gente não conseguir fechar os 240 no mês de março, porque havia unidades sem bolsistas, essas entram em abril.

Por que a transição demorou tanto?
Tomé – A transição de um projeto de um órgão público para outro envolve muitos procedimentos. Um exemplo: a titularidade dos equipamentos tinha que passar do ITI para o MCT. Para isso era necessário um levantamento dos equipamentos. Depois de o MCT internalizar o projeto, deixa de ser um programa isolado e os recursos para sua continuidade estão garantidos. Passa a ser um dos programas de inclusão digital do ministério. Temos o Casa Brasil, os Centros de Acesso à Tecnologia para a Inclusão Social, o Cidade Digital e agora o Telecentros.BR. Nosso orçamento de inclusão digital este ano é de
R$ 330 milhões. No ano passado, foi de R$ 189 milhões. No anterior, de R$ 70 milhões.

Qual foi a principal conclusão sobre como o projeto estava funcionando?
Carvalho – Vamos usar na próxima fase do projeto todos os princípios que avaliamos e testamos no Casa Brasil. A nossa ideia é que seja um programa regular, em vez de um projeto com prazo para acabar. Um programa que tenha editais regularmente e, ao final do ano de execução, as unidades que participaram entrem em disputa com outros concorrentes, para continuar. Na medida em que o programa demonstrar resultado, nós ampliaremos a base.

Um dos problemas do Casa Brasil é que as iniciativas que ganharam o edital nem sempre estiveram em conformidade com o que o edital determina. As organizações enxergam somente que o governo vai dar bolsa, equipamento, custeio para reformar os prédios, e não prestam atenção em seus compromissos: fazer ação com comunidades, adotar software livre, contribuir para a inclusão social. Houve outra coisa importante. A implementação do Casa Brasil foi muito acidentada. O projeto foi lançado em 2005 e começou a funcionar em novembro de 2006. Nós tínhamos R$ 23 milhões para o programa, mas os recursos ficaram disponíveis somente em novembro de 2005. Conseguimos, mesmo com esse prazo curtíssimo, colocar o edital no ar e fazer a licitação dos equipamentos. No primeiro dia útil de 2006 não sabíamos se os recursos chegariam, se a licitação de R$ 8 milhões que havíamos feito poderia ser executada. Foi uma luta para conseguir recursos, mas honramos essa primeira licitação. É muito difícil tocar um projeto dessa natureza sem orçamento próprio. Passávamos o tempo inteiro correndo atrás de dinheiro. E, em função de toda essa descontinuidade, começamos a replanejar o projeto.

E essa situação culminou, em 2009, com o não pagamento das bolsas.
Tomé – O ano de 2009 foi talvez o pior ano do Casa Brasil porque a gente não conseguiu implementar o planejamento estratégico desenhado em 2008 e não havia recurso para dar continuidade às ações. O esforço necessário era hercúleo porque as provisões no orçamento não eram claras. Agora, em 2010, há recurso orçamentário para dar continuidade ao Casa Brasil e um comando. Sou eu que estou à frente e que tenho que ser cobrado. Antes havia dois comitês, um executivo e um gestor, e uma secretaria executiva. Quando o novo edital for a público, estará amparado no planejamento estratégico, na continuidade de recursos. Não faz sentido ficar passando o pires pela Esplanada.

Nosso maior apelo é que a sociedade que é atendida hoje continue a ser atendida. Até casamento tem nas unidades da Casa Brasil! São espaços de convivência procurados pelas comunidades e isso não pode acabar. Por isso, mesmo as unidades descontinuadas podem participar do pleito, sabendo que há benefícios e responsabilidades. As bolsas ficam aqui, mas a ponta sempre será responsável por fazer a seleção, o cadastro do monitor, a capacitação, o acompanhamento. Precisa ter comitê gestor e a prefeitura participando. Todos esses critérios vão continuar. Os módulos que já existem no Casa Brasil – leitura, metarreciclagem etc. – vão continuar. Mas na Reid, que fará parte da rede de extensão universitária, professores e alunos das universidades vão poder usar o espaço para validar pesquisas acadêmicas, para atrair a comunidade para participar de pesquisas acadêmicas.

O que é a rede de extensão universitária?
Carvalho – A universidade pública brasileira é definida por um tripé: o ensino, que são os cursos de formação. A pesquisa, que é o desenvolvimento de conhecimento, os esforços de mestrado, doutorado e especialização. E a extensão, o primo pobre nesse tripé. Seu objetivo é ter contato direto com a comunidade, sem passar pelos meios formais de formação e de pesquisa. Existe uma enorme comunidade extensionista no Brasil. Mas os professores que fazem projetos de extensão não recebem créditos, isso não conta na sua progressão funcional, não conta do ponto de vista acadêmico, apesar de a extensão ser, além de um trabalho de ponta, uma atividade de pesquisa. A ideia é que a partir dessa iniciativa do MCT se inaugure uma linha de financiamento de extensão em que os professores serão remunerados e que a estrutura de extensão da universidade receba recursos para pagar alunos universitários que trabalhem nesse tipo de projeto. Também vai haver bolsas de ponta, para a comunidade. Isso vai continuar via CNPq. A chave da história é que cada unidade vai ter que ter um professor coordenador dentro de uma universidade. Os recursos vêm por meio desse professor. Então, se algum proponente quiser participar do edital, precisa se articular com a universidade.

Por que vocês optaram por essa solução?
Carvalho
– Porque a rede de extensão existe, tem capilaridade, tem as universidades e os institutos federais de ensino técnico. Essa turma já está organizada, existe uma rede social e práticas consagradas. E são pessoas que já vão para as comunidades. Quando a gente colocou a ideia, uma das críticas que surgiu foi que poderia elitizar as Casas Brasil. Mas não é isso. Esse professor não vai fazer o que vier da cabeça dele, vai ter o compromisso de articular as demandas vindas da comunidade com as áreas de tecnologia, de saúde, de biblioteca das universidades. Ações como esta já ocorrem, mas sem financiamento, de forma voluntária. O movimento extensionista está se afirmando, os alunos hoje podem considerar atividades de extensão como matéria optativa em um semestre. A ideia é que isso seja financiado por uma linha de governo, por meio do CNPq. O pessoal das universidades adorou a ideia e o pessoal do CNPq está achando ótima.
Além disso, no momento em que começamos a nos perguntar como manter o programa, surgiram várias ideias. Uma era criar um Instituto Casa Brasil, que funcionaria em Brasília. Mas um instituto precisaria ter filiais em vários lugares, para poder tocar o programa todo. Fazer no ITI era outra opção, mas para isso o instituto teria que mudar o estatuto. Inclusão digital não é finalidade do ITI, que além disso atua somente em Brasília, não quer estar em todo o Brasil. Outra possibilidade era criar uma Organização Social (OS). Uma OS é uma organização semipública, que pode receber recursos públicos para atender demandas do governo. No governo Lula nunca foram criadas OS, que são uma concepção do governo anterior, do Fernando Henrique. O Casa Brasil tem mais gente do que a própria Secis, portanto não poderia ser incorporado todo aqui. Na Secis há 60 funcionários. No Casa Brasil há 240 bolsistas hoje, mas já houve 600. Então a proposta de se fazer por meio de uma rede estabelecida, que tem uma vocação, teve aceitação em todas as instâncias. A ideia é que o primeiro edital seja o teste dessa nova proposta. Se der certo, vamos em frente.

Vocês já sabem quantas unidades vão ser licitadas?
Carvalho – Ainda não, porque estamos fazendo a modelagem de como vão ficar as unidades e as universidades que vão dar assistência. A ideia é ter seis ou 12 bolsistas por unidade, com os valores das bolsas dentro do padrão do Telecentros.BR. Hoje, os valores do Casa Brasil são mais altos. Os módulos vão continuar como são, seis por unidade. E o valor de cada unidade vai depender do número de bolsistas. O Casa Brasil continua como está, mas agora como parte de uma rede de extensão. Além disso, estamos pensando em repassar um valor para o custeio das unidades, para pagar energia elétrica, por exemplo. Então ainda não sabemos quanto vai custar cada unidade, por isso não sabemos o número que vai caber no edital.

Tomé – Este ano temos R$ 6 milhões como orçamento para o Casa Brasil, incluídas as bolsas que assumimos. Pretendemos fechar o edital até junho, para que em agosto ou setembro possamos terminar a seleção.

O que vai acontecer com os equipamentos que estão nas Casas Brasil hoje?
Tomé – O custo de tirar os computadores das unidades é um ônus que o Estado não precisa. Não faz sentido, também, desmobilizar algo que a comunidade está usando. Sou a favor de doar. Vamos ver se isso está previsto no edital ou criar um mecanismo para formalizar isso, porque temos que zelar pela publicidade e pela transparência.

Até que ponto o Casa Brasil, do jeito que existe, está realmente inserido na comunidade?
Tomé – Todas as 56 unidades que estão funcionando têm conselho gestor, esse foi um dos critérios para a continuidade do projeto. O nível de apropriação, pela comunidade, varia. No Ceará, por exemplo, funcionam bem. Em Campina Grande, na Paraíba, também. Há vários casos que têm que ser destacados, pois foram bem-sucedidos e bem recebidos pela comunidade onde estão inseridos.

Roosevelt Tomé Silva Filho é bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade de Brasília, com especialização como Analista de Sistemas. É Secretário Substituto de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social e Diretor do Departamento de Ações Regionais para Inclusão Social do Ministério de Ciência e Tecnologia.

Marco Aurélio de Carvalho
é professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília e coordenador nacional do Casa Brasil desde novembro de 2009. Ele já havia coordenado o projeto entre 2005 e 2008.