É mais importante o jovem estar afinado com as práticas de inclusão social do que dominar técnicas de informática.
Áurea Lopes
ARede nº63 Outubro de 2010 – O cidadania digital, programa de inclusão digital do governo da Bahia, está em franca expansão da rede de Centros de Cidadania Digital (CDC), que já atingiram a marca de mil unidades implantadas. Dentro do Telecentros.BR, programa do governo federal, serão abertos mais 110 unidades (78 telecentos com equipamentos novos e 32 com equipamentos recondicionados). Mas o Cidadania Digital também está diversificando a atuação. Ano passado, a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação (Secti) da Bahia selou uma parceria com o Ministério do Planejamento, pelo programa Computadores para Inclusão, e inaugurou o primeiro Centro de Recondicionamento de Computadores (CRC) da Bahia — o segundo no Nordeste, pois há outro em Recife (PE), vinculado a uma organização não-governamental.
Por trás das milhares de máquinas que esses programas colocam à disposição da população, estão jovens oriundos das comunidades locais, que fazem a interface com as pessoas atendidas pelos projetos. E, por trás desses jovens, está um dos mais bem estruturados programas de capacitação digital para atendimento em pontos de acesso à internet públicos, coordenado pela pedagoga Sônia Maria Pinto. Uma das responsáveis pela experiência de formação do Cidadania Digital, Sônia conta, nesta entrevista, como é feita a capacitação dos monitores do programa baiano – que é uma das referências para a formação nacional da Rede de Formação do Telecentros.BR. O monitor, acredita Sônia, não é apenas para “monitorar” as atividades no telecentro: “Mas uma pessoa para propor atividades, buscar formas de utilização da infraestrutura tecnológica com ações que possam transformar a comunidade”.
Qual é a abrangência do programa Cidadania Digital?
Sônia Pinto – Já ultrapassamos a casa das mil unidades abertas. Mas nem todas estão em pleno funcionamento. Em uma rede desse tamanho, existem fatores conjunturais, dificuldades pontuais, que levam os telecentros a suspender as atividades por um período. Mas depois o telecentro retoma o atendimento. A média é de 15% a 20% parados, mas, repito, não é que estejam fechados. A maior parte fica sem funcionar por problemas de manutenção, quebra de máquina. Outras vezes há problemas políticos, eleição, mudança do gestor do programa… Um grande “problema”, hoje, e que eu acho que é um fator positivo, é a mudança dos monitores. Esses jovens recebem uma formação e adquirem uma experiência profissional que acaba por lhes abrir portas para outras oportunidades de trabalho. Eles aprendem, se profissionalizam, são reconhecidos pela comunidade. E isso é bom. Como o programa de formação é muito forte dentro do Cidadania Digital, conseguimos suprir essa demanda com facilidade.
Esse não é um problema da política de remuneração dos monitores? Como são pagos os monitores dos CDCs?
Sônia – Todo CDC precisa ter um parceiro local. Pode ser uma prefeitura, uma organização não-governamental, uma universidade, o próprio estado. E é o parceiro que assume o monitor, entre outras incumbências – como fornecer o espaço físico, custear a manutenção (luz, papel etc.), contratar o link de acesso à internet. Todas essas despesas juntas somam uma média de R$ 2.500 mensais por unidade. Para alguns parceiros, em especial ONGs, é bastante. Então, não há um valor de referência do pagamento do monitor porque cada instituição tem uma realidade diferente. A maioria das nossas parcerias é com prefeituras, que podem pagar um monitor. Mas também há lugares onde o atendimento é feito por voluntários. Porque a gente sabe que não é fácil arcar com esses custos. Pelo regimento, o CDC tem de funcionar no mínimo oito horas por dia, de segunda a sexta, e os serviços devem ser gratuitos. Só que, no caso de parcerias com ONGs, a gente dá uma brecha para que possam desenvolver algumas atividades fora dessas oito horas, cobrando alguma taxa. É uma forma de garantir a subsistência.
Dentro do Telecentros.BR, vocês terão bolsa para monitores?
Sônia Pinto – Com o Telecentros.BR, nós solicitamos bolsas para todos os CDCs, os novos e os existentes. Pedimos duas bolsas de menor valor (cerca de R$ 240) por unidade. Queremos colocar dois monitores remunerados em cada CDC. Com esse reforço, imaginamos que será possível ampliar o atendimento, abrir à noite, aos sábados. Está em andamento um processo público de seleção, para contratar esses bolsistas e esperamos que os atuais voluntários se tornem bolsistas do programa.
Você participou da concepção do programa de formação do Cidadania Digital. Como foi pensado, nesse trabalho, o papel dos monitores?
Sônia – Quando a Secti desenvolveu o programa, procurou a Uneb para pensar a metodologia de formação. Naquela, época eu estava no Núcleo de Tecnologias Inteligentes, onde se discutia a relação entre educação e tecnologia. Coube a esse núcleo montar a primeira proposta de formação dos monitores. A gente não sabia nem o que era telecentro. Tentávamos entender o próprio termo inclusão digital, qual o impacto dos tais telecentros na comunidade. Começamos a pensar quem seriam esses monitores, qual o papel deles. Até o termo monitor foi questionado. Vai se chamar monitor mesmo? Para “monitorar” o uso dos equipamentos? Ou se quer mais do que isso? Qual a relação daquelas tecnologias com a vida das pessoas? Como usar aqueles equipamentos para transformar a vida das pessoas e das comunidades? Que sentido teria se nada mudasse?
Decidiram não mudar o nome…
Sônia – A gente queria mudar, mas não encontramos um melhor, que pudesse substituir esse! Pensamos até em “agente de inclusão digital”. Mas, no final, se pensou que não valia a pena mudar por mudar, e que o melhor seria resignificar esse nome. Discutir com eles, no processo de formação, o significado da função. Nós sabíamos que o monitor, que deve ser um jovem da comunidade onde se instala o telecentro, não deveria ser só um técnico para monitorar as atividades. Mas uma pessoa para propor atividades, buscar formas de utilização da infraestrutura tecnológica com ações que pudessem transformar a comunidade. Porém não havia uma receita pronta para conseguir essa transformação. Mais uma vez, a gente foi discutindo, fazendo formação e discutindo. Esse processo quase artesanal era possível porque o programa estava com apenas seis unidades, três na capital e três no interior.
Esse é o modelo atual de formação, mesmo com mais de mil unidades implantadas?
Sônia – Pois é, tivemos de nos adequar à expansão. No início, era possível entrar na formação questões pedagógicas e até ergonomia. Com o passar do tempo e a capilarização do programa, surgiram questões mais específicas como uso do software livre, de novas ferramentas a serem agregadas ao sistema operacional, entre outras. Hoje, a proposta de formação é socioeducativa, mas está formatada em módulos sobre temas que vão do uso de ferramentas à gestão da unidade. A formação é feita antes de o monitor começar a atuar e é obrigatória para todos, inclusive os voluntários. Vamos montando grupos com pessoal de novas unidades e de unidades já em funcionamento. Tem até fila de espera para se inscrever em uma turma… O programa montou uma equipe permanente, que faz a capacitação de 40 horas presenciais, nas salas ou no auditório do Centro de Formação. As duas salas têm 20 máquinas cada. As turmas são de 40 participantes, dois por computador. Mas às vezes fazemos turmas até maiores, se a demanda é grande. A estada dos monitores aqui em Salvador, durante a capacitação, é por conta do parceiro do CDC. Já capacitamos cerca de 6 mil monitores desde o início do programa, em 2004.
O monitor precisa dominar o uso de tecnologias da comunicação e da informação?
Sônia – Não. Desde o início, quando definimos o perfil desse jovem, não achamos necessário que ele dominasse técnicas de informática. É mais importante ele ter experiência em projeto social ou ter o desejo de trabalhar em um projeto social. Claro, é desejável que ele utilize bem o computador, mas não precisa ser craque em tecnologia. E isso já acontece naturalmente. Hoje eles já sabem tudo. Antigamente, eles faziam o primeiro e-mail na formação, com a gente. Essa é a diferença entre a formação que a gente fazia antes e a de agora. Porque eles chegavam sem ter nem ideia. E agora chegam com conta no Orkut, Facebook etc.
Quais são os módulos da formação?
Sônia – O primeiro módulo, de quatro horas, é uma apresentação do programa como um todo. O objetivo é instrumentalizar o monitor para que ele saiba o que é inclusão digital, de que tipo de programa ele faz parte, que instrumentos regulamentam o programa, qual é o regimento. Eles discutem a política pública de inclusão digital e o papel deles nessa política. O segundo módulo, de 20 horas, trata de Cultura Digital e Software Livre. É uma parte mais prática, com oficinas, mas também com discussões sobre o que é cultura digital, o que são as redes sociais. Nesse módulo, eles aprendem a usar software livre, a se comunicar em redes, a tirar e postar fotos. Existem até comunidades no Orkut sobre o programa, com fotos que eles tiram aqui.
Tem mais um módulo de 16 horas, chamado Socioeducativo, que trabalha a relação da tecnologia com a vida prática. Queremos que os monitores busquem formas de uso da tecnologia com possibilidades de transformação. É o momento de trabalho por projetos. Por isso, a gente estimula que eles desenvolvam oficinas que a gente chama de inclusão digital logo que abra o telecentro. Coisas simples, mas que sejam atividades práticas – fazer currículo, escrever poesia, procurar receita, pesquisar na internet, entrar em contato com outras comunidades. A gente fala para os monitores: mesmo que vocês nunca tenham feito, vamos tentar. E então eles fazem um projetinho em grupo. Alguns já têm essa vocação, mas outros não, e aprendem aqui. O melhor é que eles reforcem ações que já são desenvolvidas na comunidade. Por exemplo, se o CDC é mantido por uma ONG que trabalha com artesanato, ou por uma cooperativa de vassouras feitas de PET, ou por um terreiro de candomblé onde há aula de música, a gente pede que eles façam uma articulação com essas atividades da organização e aproveitem a tecnologia para ampliar, potencializar o projeto existente.
Há algum acompanhamento desses projetos pela coordenação do Cidadania Digital?
Sônia – Existe um banco de dados aberto a todos, onde estão todas as ações realizadas pelos monitores nos telecentros. Desde 2004, 2107 oficinas foram cadastradas no sistema. A gente dá apoio a essas iniciativas. É o próprio monitor que registra sua oficina, dentro da plataforma de gerenciamento global do Cidadania Digital, o sistema chamado Vida, usando uma ferramenta on-line colaborativa para o planejamento das atividades. Tivemos a preocupação de não criar um formato de planejamento complicado, com padrões formais, acadêmicos. Era preciso uma ferramenta funcional, simples, para que os próprios monitores pudessem usar sem dificuldade. Então foi desenvolvido um modelo que tem lá metodologia, objetivo, avaliação… O monitor escreve, do seu jeito, na sua linguagem, o que está propondo, para quem, como está pensando em chegar lá… Ele precisa dizer qual é a primeira etapa, em qual momento, em quanto tempo, qual dia. Aí a nossa equipe de formação dá uma olhada para ver se está coerente, se está dentro da proposta do programa, faz sugestões. Eles não são obrigados a seguir nossas orientações, mas esses comentários ajudam a organizar a atividade. Outra força importante é a interação com a rede. Como esses projetos são abertos para todos verem, no sistema, os monitores acabam se inspirando nas experiências de outras unidades, trocando informações, colaborando uns com os outros. Além disso, muitos CDCs têm blogs e publicam tudo o que acontece, outra forma de disseminar as boas práticas.
O sistema de gestão Vida foi desenvolvido pelo programa?
Sônia – Sim, foi desenvolvido na Secti, emsoftware livre. E já está sendo usado até no programa de inclusão do Pará, o NavegaPará. O Vida foi o resultado da integração, no ano passado, dos vários sistemas independentes que existiam para implantação, cadastramento, capacitação (que era o Eduque Bermbau). Cada CDC recebe um CD e instala o programa. Mas também tem uma cartilha on-line de implantação com linguagem muito simples e acessível. Um passo-a-passo mesmo, para que, independente de ter passado pela formação, o monitor consiga fazer sozinho. Essa cartilha está no portal do programa, para uso livre. Qualquer interessado pode baixar e usar – mantendo a autoria.
A Uneb é responsável pelo pólo Nordeste da Rede de Formação do Telecentros.BR. A experiência de formação do Cidadania Digital vai ser aproveitada?
Sônia – Sim, sem dúvida. Aqui no Pólo Nordeste, que eu coordeno, teremos 22 iniciativas, o que dá uma média de 4 mil monitores passando por formação presencial e a distância. Toda a rede de formação do Telecentros.BR se estrutura a partir das experiências locais, de cada região e de cada instituição. Nós temos experiência em EAD. No começo do Cidadania Digital, a Secti fez parceria com universidades estaduais, em um formato muito parecido com a proposta da rede do Telecentros.BR. Cada núcleo regional contribuiu com suas experiências. Por exemplo, na Uneb, o grupo era de educação; na Universidade Estadual de Santa Cruz, de informática; na estadual de Feira de Santana, também de tecnologia. Formou-se uma equipe multidisciplinar, com uma troca muito boa, a partir de cada área, de cada linha de pesquisa.
Porém, apesar de a experiência de cada um ser de grande valor, não podemos desconsiderar as especificidades locais. Por exemplo, cada pólo de formação, além de ter um material comum, tem flexibilidade de desenvolver conteúdo local. Ou seja, pode produzir material impresso, ou digital, para ampliar o conteúdo proposto pela rede, socializando para os demais. Aqui na Bahia, pensamos em fazer um material digital porque a gente já trabalha com um grupo que faz “cinemação”. São curtíssimas metragens, produzidos pela comunidade. Esse grupo trabalha com a metodologia de Paulo Freire. Ou seja, a ideia é que se leve um tema para a comunidade, que se faça uma discussão com mediação, e dali o grupo crie um roteiro de vídeo. Então eles mesmos filmam e fazem a edição.
Você acha que a proposta da rede nacional de formação funciona? Os pólos estão integrados?
Sônia – Não tenho dúvida disso. A integração entre os pólos está muito forte, as pessoas estão envolvidas. Não havia, antes do Telecentros.BR, um programa de formação de monitores do governo federal. Acho que esse é um grande nó que vai ser resolvido agora, com essa rede. Os telecentros eram implantados sem formação. Aqui na Bahia, cansamos de capacitar muitos monitores que estão nos municípios, mas são de programas do governo federal. A gente aceita a inscrição para a formação, capacita uns dois… dali a pouco, vem mais dois, do mesmo programa. E tem uns que pedem, olha, aqui tem outro programa, mas não dá pra vocês capacitarem? Aí eu digo… esse foi tão sincero, vamos ajudar! Então, a necessidade por formação é muito grande. Isso motiva a rede de formação, que está bastante ativa. Você nem consegue dar conta porque todo mundo está participando muito. Para ter uma ideia, estou fazendo doutorado e meu olhar estava voltado para um novo projeto da Secti de implantação de 30 centros rurais, com financiamento da Finep, que a Uneb vai acompanhar por dois anos. Mas fiquei tão encantada com a Rede de Formação do Telecentros.BR que estou repensando a minha linha de pesquisa, pois está sendo uma experiência muito boa. E essa integração foi estimulada pelo governo federal. Eu não vejo essa integração em termos de estado, aqui na Bahia. A gente até trabalha em parceria com outras instituições estaduais, mas não a título de construção de programa. Para mim, essa proposta do governo federal, onde tem o Ministério das Comunicações, o Ministério do Planejamento, da Ciência e Tecnologia, em um movimento só, é o máximo. E os envolvidos na Rede já trabalham com inclusão digital, com diversas experiências, é um pessoal comprometido. Não é uma instituição, ou uma empresa, que se candidata e vai começar do zero. Vamos ter um acúmulo de conhecimento.