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Decifra-me ou…
O Brasil está em pé de igualdade com os desenvolvedores de padrões abertos de todo o mundo. Só temos de nos desacomodar e contribuir mais.
Áurea Lopes
ARede n71 julho de 2011 – A comunidade de software livre brasileira tem um grau de maturidade técnica que se equipara ao de desenvolvedores dos países mais avançados do mundo. Essa é o opinião de um profissional que não só entende do assunto, mas se destaca no cenário internacional de padrões abertos: o engenheiro e ativista Jomar Silva, que também é conhecido como Homem Bit. Nesta entrevista, Jomar faz um chamado à produção colaborativa brasileira, que considera “pífia”, muito aquém do que poderíamos dar como contribuição. Também aponta caminhos para o crescimento dos desenvolvedores não só no plano pessoal, mas, em especial, no profissional.
Por que é importante desenvolver em padrões abertos?
Jomar Silva –– Para responder a essa pergunta, eu gosto de recorrer à história da humanidade. O império egípcio tinha uma forma peculiar de escrever em hieróglifos. Só que o último egípcio que sabia interpretar esses sinais morreu, por volta do ano 300 depois de Cristo, e levou com ele esse conhecimento de ler os hieróglifos. Durante séculos, se encontravam aquelas marcações nas paredes e ninguém sabia como aquelas sociedades se organizavam, qual era sua cultura. Até que um exército de Napoleão encontrou uma pedra onde havia o mesmo texto escrito em grego clássico e em hieróglifos. Então, por um processo de engenharia reversa, comparando as escritas, começou a ser desvendado o que tinha sido escrito no Egito. Nós, na sociedade contemporânea, fizemos a mesma coisa. No início da era da informática, os formatos que a gente utilizava para armazenar os documentos eletrônicos eram hieróglifos digitais. Só a empresa que criou o formato é que conhecia os códigos para decifrá-lo.
Quer dizer, para ter acesso à informação, era preciso comprar os programas que haviam sido usados para gerar a informação.
Jomar — Exato. E cada empresa tinha a sua tecnologia. Quando você comprava um computador para conectar em rede, esse equipamento só ia se comunicar com outras máquinas da mesma marca, a placa de rede só ia funcionar se fosse da mesma marca, o cabo de rede era exclusivo para aquela marca… Aí, se você comprava uma estrutura de rede da empresa A e amanhã essa empresa falisse, ou quadruplicasse o preço e você quisesse trocar para o fornecedor B, ia ter que jogar tudo fora e fazer de novo. O mesmo valia para os protocolos de rede.
Foi a internet que favoreceu o desenvolvimento de padrões que se comunicassem, independente da marca da tecnologia?
Jomar — Foi a necessidade de comunicação. A internet é um dos grande exemplos que a gente tem hoje de padrão aberto. A internet só existe porque é baseada em padrões abertos, desenvolvidos de forma colaborativa. Não foi uma empresa que fez assim porque achou que era o que interessava para o seu negócio. Mas um colegiado de especialistas, que discute e desenvolve tecnologia de acordo com as necessidades do mercado, não da empresa A ou B.
Que características um padrão de documentos precisa ter para ser, de fato, aberto?
Jomar — Primeiro, tem de ser uma especificação desenvolvida de forma transparente, com participação aberta a qualquer interessado. Como o TCP-IP, em que qualquer um de nós pode dar um pitaco. Segundo, a especificação tem de estar publicada, disponível. Terceiro, tem que ser implementado livre de royalties. Esse é um ponto importante. Para trabalhar com uma tecnologia proprietária, é preciso licenciar de alguém, pagar roylaties. Alguns anos atrás, se achava que esse modelo era válido. Mas a gente acabou vendo os problemas. Um exemplo é o DVD. Quando foi criada a tecnologia do DVD, o royaltie que se pagava para ter um leitor de DVD era equivalente a 10% do custo total de uma unidade. Só que, na produção em escala, o custo do equipamento caiu. E, hoje, paga-se mais pelos royalties das tecnologias do padrão DVD do que pelo hardware. Porque o royaltie ficou fixo. Esse não é um caminho sustentável no longo prazo. Por isso, cada vez mais as empresas se unem para trabalhar em torno de padrões abertos. Além disso, tem a questão da interoperabilidade, que é a capacidade que dois sistemas têm de trocar informações entre si sem que um sistema conheça as características do outro. Há vinte anos, para mandar e-mail todo mundo tinha que estar dentro da mesma rede, usando o mesmo software de mensagem. Hoje eu mando e-mail para qualquer pessoa, pouco importa se é para um smartphone, um PC, um mainframe. Porque toda a tecnologia que a gente usa para e-mail, hoje, é baseada em padrão aberto.
Mais do que livre, é importante a tecnologia ser aberta, para garantir a interoperabilidade e também permitir outros desenvolvimentos a partir do código fonte?
Jomar — Tem uma história ótima, de um grupo de estudantes de uma universidade de Stanford (Estados Unidos), que ilustra bem o conceito de interoperabilidade. Eles projetaram um hardware muito legal e um software muito legal para fazer a interconexão de protocolos em rede. E eles só conseguiram transformar aquilo em um produto, para comercializar, porque utilizaram os padrões abertos da internet, não tinham condições de pagar royalties. Aí eles abriram uma empresa que chamaram de Stanford University Network, e que a gente conhece como Sun Microsystems. Foi assim que nasceu a Sun. A empresa nasceu por meio da utilização de um software aberto, implementando um padrão aberto em um hardware. Por isso, também tem uma característica fundamental para o padrão aberto, que é permitir a reutilização. A internet, do ponto de vista técnico, nada mais é do que um monte de padrões abertos desenvolvidos em cima de outros padrões abertos. É como se fosse uma montagem de lego, com bloquinhos em cima dos quais você coloca outros bloquinhos e faz o que você quiser. Se você imaginar que cada bloquinho desse juntou o que tinha de melhor naquela área e o consenso de um grande grupo de especialistas atendendo às demandas de mercado, de usuários, é uma grande forma de construir colaborativamente a tecnologia e fazê-la se disseminar muito rápido.
Como o Brasil se situa no mundo de padrões abertos? Temos um contingente significativo de desenvolvedores nesse universo?
Jomar — Quando a gente começou com a história de software livre por aqui, imaginei que ia ver o Brasil se desenvolver cada vez mais nos softwares e nos padrões. Mas, depois de muitos anos, o que existe é o envolvimento de heróis solitários. Algumas pessoas que trabalham com desenvolvimento de padrão, eu sou uma delas; outras que trabalham com desenvolvimento de software livre. Mas, no volume, o envolvimento do Brasil é pífio. Seja no padrão ODF para documento, no e-pub, em uma série de outros padrões, o desenvolvimento de brasileiros é bem pequeno.
Por que? Não há estímulo do mercado? Falta cultura de colaboração?
Jomar — Da parte das empresas, não há cultura de participar desse desenvolvimento. Antigamente, os países desenvolvidos criavam suas tecnologias e na hora que já estava saturando, mandavam para nós e saturavam o nosso mercado. Quando a tecnologia estava ficando obsoleta, eles abriam lá um pedacinho do código e a gente dava um passo de formiguinha. Mas quando você atua no desenvolvimento, você tem condições de competir com qualquer empresa do mundo. É para isso que os brasileiros ainda não acordaram. O dono da empresa pensa: eu vou colocar um funcionário que podia estar trabalhando para ficar lendo lista de discussão e escrevendo normas, com gringo? Claro que vai! Porque nós temos condição de igualdade de participar de desenvolvimento com qualquer empresa no mundo. Eles podem ter até mais recursos financeiros, mas, tecnicamente, não precisamos esperar a tecnologia amadurecer, uma empresa estrangeira criar o produto e trazer pra cá. É um ciclo vicioso: alguém desenvolve uma tecnologia lá fora, o produto entra no Brasil, a gente começa a usar e conhecer, e quando a tecnologia está ficando obsoleta a gente passar a entender aqui. Mas aí… já ficou ultrapassada. Dessa forma, vamos ficar o resto da vida correndo atrás do rabo. Por exemplo, o ODF 1.2 está na fase final de lançamento. Qualquer empresa brasileira pode pegar aquilo e gerar um sistema de CRM, de workflow, uma suíte de escritório online, um sistema com assinatura digital… A gente não precisa ficar sentado esperando uma multinacional lançar um sistema desses.
E da parte dos desenvolvedores? Há uma deficiência na formação?
Jomar — Eu acho que a questão tem muito mais a ver com o profissional do que com a formação. No mundo dos padrões fechados, você só participa de um grupo de desenvolvimento se for funcionário de uma empresa e receber um convite para integrar esse grupo. Com os padrões abertos não é assim. Qualquer interessado pode participar, apontar um erro, dar uma contribuição. O meu envolvimento com padrão aberto começou por causa do TCP-IP, na universidade. Mas eu não tive nenhum professor que me sentou no colo e disse estuda isso aqui, que vai ser legal pra você. Quando eu vi que aquela tecnologia que ele estava ensinando eu podia aprender o quanto eu quisesse, que eu não estava restrito à apostila, que podia entrar em um site e baixar aquele negócio para estudar, foi o que eu fiz. Passei três anos estudando TCP-IP. Virei aquilo do avesso, cheguei a implementar código para testar e dei sorte de pegar um professor que tinha implementado em um hardware para automação industrial no Brasil. No entanto, na minha turma, que teve a mesma aula, tem gente que não consegue configurar um roteador em casa. Quer dizer, eu acho que os estudantes têm de ir à luta, pesquisar à noite em casa para no dia seguinte fazer perguntas inteligentes, avançar no conhecimento.
Qual o papel da escola, da universidade? Os currículos têm conteúdos relacionados a padrões abertos?
Jomar — Se você vai conversar sobre padrão aberto em uma universidade, normalmente ouve um discurso muito bonito que não se traduz em prática. O professor dá aula de Oracle, de SQL Server, ninguém dá aula de banco de dados relacional. E, para quem conhece teoria de banco de dados relacional, não importa qual é o banco. Esse cara vai ter condição de entender qualquer banco que seja lançado daqui a trinta anos. Tem universidade que dá aula de Linux. Mas ainda é um equívoco, tem que estudar a tecnologia. Porque a consequência é que o profissional de tecnologia dos últimos anos, no Brasil, é um usuário de ferramenta. Nós nos acomodamos em ser colonizados digitais. Tem gente que acha legal ser certificado de uma empresa e de outra… não pensa que está dedicando anos de faculdade para estudar produtos que daqui a pouco podem deixar de existir. Em vez de estudar uma tecnologia. Isso que é bacana no mundo do software livre. Muita gente que não tem sequer diploma superior está desenvolvendo coisas de deixar qualquer gringo com pós-doutorado de boca aberta. Porque teve interesse de ir atrás, de se informar.
Tem outro aspecto, que diz respeito às práticas pedagógicas. Nas universidades de ponta, no Brasil, ainda se faz exercício na aula de programação. Por que não fazer um software? Por que um professor de design não pega um software que tem uma interface ruim e tenta melhorar? Na aula de marketing, o professor inventa um produto. Por que não pega um software livre, cujo marketing praticamente não existe, e cria um projeto para divulgar esse produto, que é gratuito? Você vai conseguir trabalhar os mesmo conceitos, no final do semestre o aluno produziu um produto que pode colocar no portfólio e mostrar, pode entregar para a comunidade… O pessoal de línguas pode fazer tradução de normas, desenvolver dicionários, desenvolver verificador ortográfico.
Eu tive um professor de uma matéria chamada compiladores. Todos os anos se inventava uma linguagem X e se fazia um compilador de X para Y. Esse professor veio com uma proposta interessante. Tem o CLP, Controlador Lógico Programável, que é uma caixinha para automação industrial. Na época, um controlador desse tipo, que vinha com um software que podia ser facilmente aprendido por um operador de máquina, custava R$ 600 mil. Mas existia um controlador similar, que custava R$ 100, e só tinha um defeito: tinha que programar em linguagem de máquina. Era um assembler do produto. Nas empresas, era muito difícil utilizarem aquele produto porque exigia um técnico experiente para operar. De outro lado, todo operador de máquina sabe espécie de linguagem de programação com relês. Qualquer menino do ensino técnico sabe programar com relês. Então o professor falou: vamos transformar a programação de relê que esses caras conhecem no código em assembler desse processador. A proposta era aproveitar o esquema elétrico que o programador conhecia de relê como código fonte do processador. E a ideia dele era que, no ano seguinte, quem entrasse, não ia começar do zero, mas continuar o trabalho em cima do que a gente tinha feito. Até que, dentro de algum tempo, surgiria um produto bem acabado. Qualquer técnico poderia pegar um CLP de R$ 100, criar um produto, montar sua empresa, gerar emprego…
A falta de domínio do inglês não é uma barreira para grande parte dos desenvolvedores brasileiros?
Jomar — Sim, é uma barreira. Mas para procurar besteira na internet não é, né? O cara vai ler besteira em grego, vai usar um tradutor online. O brasileiro é muito bem-vindo na comunidade estrangeira. A gente tem vergonha de falar mal inglês, mas o fato de a gente se esforçar para tentar falar outra língua é reconhecido. Nesse cenário de software livre, a maioria é de voluntários. Quando você chega em uma comunidade e tenta se expressar, todo mundo ajuda. Outra coisa, a gente tem o FISL. É formação de graça. Você vai lá e volta com conhecimento de várias tecnologias, conhece gente que quer te ajudar, integra redes… Ninguém é perfeito, ninguém sabe tudo, mas se você somar o conhecimento de um e de outro, começam a acontecer coisas bem interessantes. No cenário internacional, há uma série de projetos de software livre precisando de gente e nós temos condição, sim, de trabalhar com esses caras.
O que deu certo hoje, no Brasil, no desenvolvimento de software livre?
Jomar — O Portal do Software Público. E talvez seja uma exceção nesse quadro de falta de colaboração. Muita gente ajuda a desenvolver os softwares abrigados por esse projeto. Mesmo assim, podia ser muito mais. Vamos pegar um exemplo, o Open Office. O Brasil deve ter, por baixo, uns dez milhões de usuários desse software. Se, desses, cinquenta — só cinquenta — contribuírem, vamos ser o país que mais contribui com esse software no mundo. E, se uma empresa quiser fazer uma derivativa desse software, uma distribuição, vai procurar profissionais para fazer isso onde? Em um país que tem dez desenvolvedores? Não, vai vir aqui. Por isso, eu acho que, com o software livre, hoje a gente tem condições de se apropriar do conhecimento e de estar par e passo no mundo da tecnologia. Com o desenvolvimento de padrões, idem. E isso vai colocar o Brasil no mapa.
Quais as perspectivas profissionais para quem trabalha com padrões abertos?
Jomar — Muita gente diz… ah, eu só vou fazer esse desenvolvimento se alguém me pagar. Mas ninguém paga porque não tem quem desenvolva. Pronto. De novo, o círculo vicioso. Não importa se vão usar ou não o que você fez. Você vai ganhar, vai estudar, vai aprender. Conheço muitos profissionais que se desenvolveram por conta própria e depois foram contratados por empresas. Eu não acho que alguém vai bater na porta da sua casa e te convidar para desenvolver tecnologia. Mas as oportunidades estão aí. Por exemplo, quando o Google anuncia uma vaga, considera um diferencial grande se o candidato à vaga já contribuiu com um projeto de software livre. Porque isso significa que ele sabe trabalhar em time, sabe cumprir prazo, meta, tem competência técnica, sabe conversar. É muito mais interessante para o Google contratar alguém da comunidade. Um dos maiores especialistas em Java do mundo é um brasileiro, Bruno Sousa, que trabalhou na Sun. Hoje ele está no board do JCP, que é o órgão que comanda o futuro do Java. Muitos brasileiros estão fora do brasil trabalhando em software livre.
Como aumentar a contribuição ao desenvolvimento de padrões abertos?
Jomar — Uma grande parte de responsabilidade é das empresas que usam software livre. Vejo executivos reclamando de coisas e dizendo que a comunidade tem de resolver. Eles esquecem que eles fazem parte da comunidade. Economizam centenas de milhões de reais por ano em licenças de software, mas não investem um centavo no desenvolvimento e manutenção de projetos de software livre que utilizam. No plano individual, muita gente entende que ser usuário de redes sociais organizadas em torno de projetos de software livre seja o mesmo que ser integrante, de fato, da comunidade do projeto em questão. Esses são os que se manifestam e apontam defeitos nos projetos que “participam”. Mas na hora de enviar contribuições realmente significativas quase ninguém aparece. Conheço ao menos um software livre desenvolvido aqui no Brasil e que é utilizado no país todo, além de ser suportado por centenas de empresas, mas que tem como desenvolvedores ativos apenas duas pessoas, sendo que uma delas (e talvez o desenvolvedor-chave), não é remunerado. Eu estou participando de um grupo da Fundação Apache, que funciona mais ou menos assim: tá errado? Corrija. O que você quer fazer para arrumar? Isso é colaborar de verdade.
É preciso ter um conhecimento avançado para contribuir?
Jomar — Não necessariamente. No dia a dia, qualquer usuário que encontrar um erro pode ir além de reclamar. Pode tentar resolver o problema ou ir atrás de pessoas que ajudem. No software livre, isso funciona. A regra é: resolva seu problema e compartilhe a solução. Busque a solução e devolva se não funcionou. Alguém vai contribuir. Se a pessoa não tiver condições técnicas de ajudar, já ajuda se informar o erro. Porque existem erros que os desenvolvedores não imaginam que podem acontecer. É muito importante clicar ali, no enviar relatório de bug.
Jomar Silva é engenheiro eletrônico, especialista em padrões abertos e software
livre, desenvolvedor do padrão OpenDocument Format (ODF).