entrevista


Os laços frouxos

Apesar das boas intenções, Estado e comunidade divergem na construção de uma política pública de cultura E enfrentam problemas de gestão dos Pontos e Pontões de Cultura.   Bernardete Toneto

ARede nº 77 janeiro de 2012 O casamento foi firmado em 2004. Na implantação do Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva, o Ministério da Cultura (MinC) selou um compromisso com organizações de militância cultural que já atuavam na produção das artes e que interagiam com as comunidades. A parceria foi celebrada como um grande passo para a democracia cultural, ao aliar autonomia social e participação da sociedade organizada ao reconhecimento da diversidade cultural. Porém, passados oito anos, e já no terceiro governo, os problemas da relação Estado e sociedade mostraram que os laços estão frouxos, por dificuldades de ambas as partes. “O Estado não está preparado para uma relação muito próxima com a sociedade civil”, afirma Frederico Barbosa, sociólogo e coordenador da pesquisa Cultura Viva – As práticas de pontos e pontões, elaborada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No documento, lançado em dezembro do ano passado, são apresentados os resultados de uma prospecção de fôlego, que incluiu trabalho de campo por imersão em pontos e pontões de cultura, oficinas de avaliação para os pontões e aplicação de questionários.

Nesta entrevista, Barbosa chama a atenção para entraves comuns de gestão e planejamento, desde o gerenciamento dos locais até a prestação de contas, verificados tanto no MinC quanto nos pontos e pontões. E vai além: aponta tensões entre os interesses das comunidades que executam os pontos de cultura, tolhidas por regras nem sempre claras impostas pelo Estado. “O meu sonho é que as regras não limitem esse sonho, mas o potencialize”.

Por que fazer uma pesquisa específica sobre os pontos e pontões de cultura?
Barbosa –
Trata-se da continuidade de um projeto desenvolvido no Ipea, para ajudar a organizar o Programa Nacional de Cidadania e Cultura Viva, fundamentando suas ações e componentes. Na primeira pesquisa [Cultura Viva: avaliação do programa Arte, Educação e Cidadania, de 2010], o objetivo era demonstrar que o programa tinha impacto, que gerava transformação social, que as associações se fortaleciam e que trabalhavam com poucos recursos. Nesta segunda pesquisa buscamos construir um mapa para mensurar  o impacto da população em termos financeiro, de inserção e reconhecimento. A ideia era traçar uma etnografia das ações, mostrar como a cultura e a arte surgiam na ponta comandada pela sociedade civil. Também queríamos entender os pontões, saber que tipo de rede estava sendo formada.

Quais são os principais resultados?
Barbosa –
O principal ponto positivo é que os pontos e pontões de cultura têm conceitos interessantes e justificam não apenas essa ação, mas todo o Programa Cultura Viva. Nos pontos e pontões de cultura tem-se a ideia do protagonismo, da autonomia social, da sustentabilidade e da participação da sociedade organizada, que tornam a ideia extremamente atraente. O ponto negativo é a operação dessas articulações, seja do Ministério da Cultura com os pontos, seja dos pontos entre si.

O que mais chamou a atenção na pesquisa?
Barbosa –
No decorrer da pesquisa, vimos que os problemas da gestão do MinC também apareciam na gestão dos pontos. Há problemas de articulação entre os pontos, problemas com a inadequação do uso do kit de cultura digital, problemas de gestão interna, no planejamento de atividades, na gestão de recursos e na prestação de contas. Há tensões conceituais entre os interesses das comunidades e das associações que executam os pontos de cultura. Mas existem obstáculos também com relação à cultura popular: regularização e recuperação de espaços públicos e privados que são apropriados ao longo do tempo e que deveriam ser reconhecidos como uso dessas culturas.

O que significa o conceito de circuito cultural, utilizado na pesquisa?
Barbosa –
Como a ideia era construir um mapa, usamos o conceito de circuito cultural, ou seja, a produção cultural e o caminho que essa produção percorre até chegar à pessoa que vai consumir. Por trás desse conceito está a noção de rede. Os circuitos ligam os agentes culturais e instituições que regulam a comunicação entre eles, seja na forma de trocas monetárias e simbólicas ou na produção de regras. Isso é importante porque os pontos e pontões de cultura juntam prática política, encontros, reuniões, fóruns, recursos financeiros, formas de comunicação, seminários, eventos, exposições, debates, que indicam a necessidade de uma multiplicidade de políticas, com arranjos organizados conjuntamente pela sociedade e pelo Estado.

Daí nasce a ideia de assembleia?
Barbosa –
A metáfora da assembleia cai bem para explicitar como se organizam as redes. A assembleia também reúne associações, grupos, pessoas, projetos, ideias, práticas, atividades, técnicas de planejamento etc. em múltiplos coletivos. Estes se associam a lugares de reunião – pontos de cultura, pontões, teatros, orquestras, salas de espetáculo, ruas, cineclubes, cinemas –, a espaços geográficos, vias de troca e comunicação que permitem que esses fluxos se deem em sentidos e intensidades variadas. A segunda noção de rede está relacionada ao agenciamento político, à maneira como estes circuitos são organizados. No caso do Cultura Viva, uma parte importante dos dinamismos é realizada pela sociedade civil autônoma, que estabelece articulações, parcerias que a própria sociedade se propõe com diferentes atores, como associações comunitárias, bancos, universidades, escolas, igrejas, comércio local. Além disso, há ações da rede dos pontos de cultura e conexões via os pontões de cultura. E, por fim, a terceira noção de rede refere-se aos recortes seletivos feitos pelo Estado ao direcionar que tipo de trabalho será realizado, identificar quais áreas e segmentos serão incentivados e quais orientações políticas e ações do programa serão desenvolvidas pelos pontos de cultura.

Como essa pesquisa foi recebida pelo Ministério da Cultura?
Barbosa –
Essa foi uma pesquisa dialogada, não houve uma relação de produção e recepção dos dados. Desde a primeira pesquisa apontamos a necessidade de fazer um planejamento de ações. Assim, a pesquisa gerou uma oportunidade para tentar resolver os problemas.

A partir da pesquisa, o que é preciso fazer?
Barbosa –
A intuição e a implantação sem planejamento infelizmente é da natureza desse tipo de programa. O Cultura Viva foi implantado em 2004 e os governos deram continuidade, os problemas vão surgindo e acabam enfrentados na prática. É preciso um programa de formação nas pontas do processo, formar os gestores dos pontos de cultura e os agentes do MinC. Iniciamos agora um processo de planejamento, com a constituição de um grupo de trabalho formado por governo, Ipea e representantes dos pontos e pontões de cultura. Estão programados dois seminários, em abril e agosto, para conversar sobre os problemas específicos do programa e delimitar as ações.

O que falta para o programa ser uma política de Estado?
Barbosa –
Na prática, os pontos e pontões de cultura, assim como todo o Programa Cultura Viva, já são uma política de Estado. Temos de lembrar que, no Brasil, em geral as políticas públicas funcionam de forma implemental, não necessitam de uma legislação específica, votada no Congresso, para que existam. No campo da cultura também se verifica isso. Algumas ações tomaram fôlego e se solidificaram a partir dos anos 1970, como os programas voltados à leitura, à preservação dos bens materiais, aos museus. Esses programas têm uma dinâmica de funcionamento estável há 30 anos, sem que necessitem de uma intervenção no campo jurídico. O mesmo acontece com o Cultura Viva, que já tem dez anos de funcionamento. O programa existe em várias peças legais que dão ordenamento para a ação do governo federal. Está na LDO, no PPA, no orçamento. É um programa setorial dentro de uma política cultural, que lida com toda a legislação de licitação, de administração e de regulação. Portanto, está garantido por várias normas. A questão é outra. Será que os instrumentos jurídicos, as leis, os convênios e os tipos de prestação de contas são adequados para suportar efetivamente a forma de execução do Cultura Viva, que envolve organizações da sociedade civil com baixo nível de organização e institucionalização?

Qual é a resposta a essa pergunta?
Barbosa –
Penso que o Estado não tem instrumentos jurídicos, leis, reflexão de convênio e tipo de prestação de contas. E os que existem não são adequados para suportar efetivamente as políticas com o desenho e forma de execução do Cultura Viva. Apesar de serem necessárias, há normas formais que dificultam a ação, os processos orçamentários são complexos, os gastos se inserem em um contexto de grande complexidade de procedimentos e requisitos formais, a prestação tem suas dificuldades. É preciso levar em conta que além do objeto das políticas culturais ter características diferentes em relação ao de outras políticas, dadas as suas imprecisões e plasticidades, envolve ações de coordenação entre seus múltiplos processos. Essa consideração é importante porque faz com que a coordenação de ações das instâncias administrativas seja, em si, bastante complexa, envolvendo uma grande heterogeneidade de recursos, e também de direções ou objetivos, circuitos culturais com diferentes densidades organizacionais, naturezas e características distintas. Apesar do êxito do programa, há diversos problemas referentes à inexistência de estruturas formais adequadas. Os gestores apontam dificuldades na celebração de convênios, em especial pelas interpretações divergentes de normas, inadimplência dos proponentes ou não atendimento de documentação obrigatória.

Você considera que é pacífica a relação entre Estado e as organizações culturais, representadas pelos pontos e pontões de cultura?
Barbosa –
O Estado não está preparado para uma relação muito próxima com a sociedade civil. É uma relação que está amadurecendo. Não podemos esquecer que o Estado brasileiro tem uma forma de lidar com a sociedade civil, usando instrumentos que nem sempre são os mais adequados. Imagine, neste caldo de cultura normativa, de controle, ter de lidar com pontos de cultura, com manifestações organizacionais vibrantes, como se fossem organizações tradicionais? Por isso, pensar estratégias que mudem essa relação nem sempre igualitária é bom para todo mundo.

Isso justifica as tensões que existem entre governo e os pontos de cultura?
Barbosa –
Até hoje não entendo a natureza desse conflito. A ideia original do ponto de cultura é que ele seja fluido, uma rede aberta. Só que política pública funciona assim, capta um fenômeno e cria uma rede seletiva de ações. Não pode tudo. Além do mais, 2011 foi um ano orçamentário dificil, não só para o MinC mas para todo o governo. E os pontões ficaram sem dinheiro, o que aumentou a tensão.

O que é mais inovador no programa?
Barbosa – Sou um enamorado do conceito do programa. É claro que não é um desenho novo. Programas semelhantes já foram implantados em Cuba, na Europa, nos Estados Unidos. No fundo se trata de uma transferência de recursos para que a sociedade faça o que já sabe fazer e sempre fez. Mas, mesmo não sendo uma novidade, está envolvido em uma certa poesia, que é ver uma política pública feita basicamente pela sociedade, com sua lógica de funcionamento e que, mesmo ligada às regras do Estado, mantém certa dose de autonomia. O meu sonho é que as regras não limitem esse sonho, mas o potencialize.

Frederico Barbosa é doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e pesquisador da área de Políticas Culturais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)

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