Não é pela educação, é pela inclusão
Projeto de distribuição de laptops nas escolas do Uruguai não é orientado a melhorar notas, mas a
reduzir a desigualdade digital no país.
Texto Rafael Bravo Bucco
ARede nº 96 – janeiro/fevereiro de 2014
Projetos de distribuição de equipamentos eletrônicos entre estudantes e professores, em todos os níveis educacionais, ocupam os debates de educadores e gestores públicos há pelo menos uma década. No Brasil, iniciativas na área são questionadas a respeito da eficácia em melhorar a performance dos alunos, reter sua atenção, e oferecer, efetivamente, um recurso que seja adotado pelo professor em classe ou para planejamento do que será ensinado.
O ProUCA, que levou notebooks a crianças das escolas públicas brasileiras, chegou a um impasse em 2013. As pesquisas não apontaram melhora das notas. No governo, novos dispositivos entram na lista de facilitadores da educação. Uma nova distribuição, dessa vez de tablets, já começou. E novamente as críticas são direcionadas à eficácia dos dispositivos no aprendizado, bem como à falta de capacitação aos professores.
No Uruguai, as críticas também existem. E a elas, Miguel Brechner responde que não é na educação, mas na inclusão digital que se vê o maior impacto desse tipo de programa. “Não é necessário demonstrar que se melhora a educação, que melhora o aprendizado de matemática. Assim como não é necessário mostrar como é essencial ter água corrente, água quente, ou dar de comer às crianças. Tem que ser feito. É uma obrigação do Estado, do governo, dar internet, conectivadade, promover o acesso”, defende.
Brechner é presidente do Centro Ceibal para Apoio à Educación Infantil e à Adolescência do Uruguai. O centro é uma empresa de direito privado, mas de interesse público, responsável pela execução do Programa para a Conectividade Educativa de Informática Básica para o Aprendizado Online (ou, simplesmente, Plan Ceibal). O Ceibal prevê diversas medidas para reduzir a desigualdade digital. Entre as mais conhecidas estão a distribuição de equipamentos eletrônicos, como laptops, lá conhecidos por “ceibalitos”, a crianças e adolescentes.
O plano inclui doação de kits de robótica, conexão à internet nas escolas e nos cursos profissionalizantes do país. Plataformas online abrigam recursos educacionais, de capacitação dos professores e de pesquisa sobre o uso e o estado dos equipamentos.
O Plan Ceibal foi idealizado em 2006. Já no ano seguinte começou a ser implementado. Para garantir que não fosse deixado de lado por qualquer governo, foi regulamentado em 2010, com a aprovação no parlamento de lei que o estrutura e determina seus objetivos. Foi essa lei que criou o Centro e que lhe dá independência em relação a outros ministérios.
Os resultados, não educacionais, são apresentados em cifras. “Em 2006, dos 20% das pessoas mais pobres do Uruguai, apenas 5% tinham computador. Hoje, entre os 20% mais pobres, 73% têm computador”, explica Brechner. Tudo foi conquistado gastando-se menos de 100 dólares por aluno, em média, garante ele. Agora, o Ceibal entra em uma nova fase. Diante das críticas sobre o aprendizado, e com resultados colhidos na inclusão digital, o programa começa a se transformar em um laboratório de pesquisa em tecnologia educacional. O objetivo é descobrir os melhores usos e as melhores práticas. E, aí sim, responder aos que duvidam do potencial educacional da tecnologia.
Como vocês conceituavam o Ceibal no início, e como o pensam hoje?
Miguel Brechner – Quando começamos, o Ceibal consistia para nós em um programa de inclusão e de igualdade de oportunidades. Tendo conquistado a inclusão e a igualdade de oportunidades, hoje o Ceibal busca integrar a pedagogia e a tecnologia neste universo em que há igualdade de inclusão digital. Em 2007, começamos com toda a questão de promover a igualdade de oportunidades e todo o problema da inclusão. A partir de 2012, iniciamos a construção de plataformas para que todos, em igualdade de oportunidades, tenham também as mesmas chances de trabalhar mais seriamente e ter materiais pedagógicos que de outra maneira não teriam.
Como era a situação da inclusão digital antes, e depois, do Ceibal?
Brechner – Em 2006, dos 20% das pessoas mais pobres do Uruguai, apenas 5% tinham computador. Dos 20% mais ricos, 55% tinham computador. Hoje, entre os 20% mais pobres, 73% têm computador, e entre os mais ricos, 83%. Essa é uma transformação dramática.
Antes de começar, como definiram o plano de ação, o passo a passo do projeto?
Brechner – O plano era atender inicialmente todas as escolas públicas, levar internet a todas. E isso levou dois anos e meio para acontecer..
Foi preciso um esforço para convencer políticos e sociedade de que era um gasto essencial?
Brechner – O que acontece é que não era uma questão de gastos, mas de direitos. E em geral os direitos a gente não discute, e ponto. De qualquer forma, hoje o Plan Ceibal custa menos de 5% do custo total do sistema educativo. É uma cifra sustentável.
Em 2010, três anos após o início do programa, o parlamento uruguaio aprovou uma lei garantindo seu funcionamento de forma permanente. Por que isso foi necessário?
Brechner – Acreditávamos, na época, que um projeto como o Plan Ceibal tinha que ser conduzido por uma instituição própria, separada de outras instâncias do governo, e estabelecida por lei. Pois podia acontecer de mudar o governo, e uma nova gestão eliminar os decretos que garantiam o funcionamento do programa. Mas essa situação era muito improvável. De certa maneira, a criação da lei deu mais solidez ao programa e aprofundou a definição do Plano e do que deve ser feito..
Houve resistência? Foi preciso muito esforço para conseguir a aprovação da lei?
Brechner – Não muito. Naquele momento havia um consenso de que seria preciso separar o Ceibal. O programa estava sendo conduzido dentro de um laboratório eletrônico, um órgão que equivale ao Inmetro do Brasil. Não fazia sentido que continuasse ali. Tínhamos de separar, e desde o primeiro dia de funcionamento já tínhamos decidido que não deveria ficar no Ministério da Educação, que seria fora dessa pasta. Isso porque o Ceibal é um programa de inclusão que impacta a educação e a tecnologia, e o Ministerio da Educação não está preparado para um projeto assim.
Temos atualmente 627 mil laptops nas mãos de crianças, edudantes e professores em todo o país. Há 1,1 mil escolas e liceus (centros profissionalizantes) conectados com fibra óptica. Em 2014, todas as escolas dos centros urbanos terão fibra. Hoje, 99% das escolas de primeiro grau, têm acesso à internet. No segundo grau, 98% das unidades têm. Onde a conexão é de fibra óptica a velocidade fica entre 10 Mbps e 30 Mpbs. Onde não é fibra, a velocidade pode ser de 2 Mbps a 8 Mbps. É uma conexão de boa qualidade, menos em zonas rurais com internet satelital, que é tão ruim como é no restante do mundo. O satélite é um problema, especialmente pelo custo da banda. Temos também 3G em algunas escolas do campo.
Todas as escolas têm WiFi?
Brechner – Todas. Nós temos 3 mil centros educativos com servidores próprios. Temos ainda mil e tantos pontos de WiFi Ceibal, que são hospitais, centros desportivos, grandes edifícios públicos, favelas. São muitos os lugares onde há acesso em praça pública.
O acesso público foi outra etapa?
Brechner – Não. A intenção era que a criança, onde estivesse, pudesse acessar a rede. A gente acredita que as crianças têm capacidade de trabalhar com os equipamentos tanto na escola, na classe, quanto em casa.
Hoje, 65% da população do Uruguai têm acesso à internet. A intenção é chegar a 100% com ajuda do Ceibal?
Brechner – Não, porque trabalhamos apenas com as crianças. Onde há criança, há acesso. Aos pouquinhos, talvez. Mas alcançar a todos depende de outras políticas públicas.
O que falta ser realizado dentro do Ceibal?
Brechner – O que falta hoje, que começamos a estudar, é entender qual a interação entre a tecnologia e a pedagogia. Até agora, a pedagogia e a tecnologia estão divorciadas, ou estão apenas começando a se apaixonar. Hoje temos, particularmente entre os adolescentes, uma situação em que eles se cansam. E os professores estão longe deles. Nós temos de encontrar uma maneira para que, usando a tecnologia, de forma fácil e amigável, o professor se empodere mais e possa melhorar a parte pedagógica. A realidade é que o mundo mudou. A informação já não é mais importante. A informação está aí. Agora o mais importante é como chegamos à informação, quais são as perguntas para as respostas. Então há uma necessidade de que o docente mude e entenda que vai ser cada vez mais complexa a integração entre a tecnologia e a pedagogia para uma aprendizagem futura.
Para integrar tecnologia e pedagogia, foi preciso mudar o perfil da equipe?
Brechner – A equipe vai mudando. Na verdade, é a mesma de 2007 ainda, mas vamos trazendo, aos poucos especialistas em diferentes áreas.
Como o Ceibal está constituído institucionalmente? Como conversa com os outros órgãos públicos?
Brechner – O Ceibal é o que a gente chama de empresa paraestatal. É uma empresa pública, de direito privado. Na diretoria do Ceibal estão representantes do Ministério da Educação e da Economia [equivalente à Fazenda]. Ou seja, é constituído por interessados em seu papel público. E se o Ministério da Educação disser que não tem mais interesse no Ceibal como é hoje, não pode agir. Se disser que não quer mais o plano participando dos projetos de educação, não pode negar. O Ceibal é independente. O meu cargo responde diretamente ao presidente da República, não existem ministros entre ele e eu.
Como é o financiamento do Plano?
Brechner – É estabelecido na Lei do Orçamento [equivalente à Lei de Diretrizes Orçamentárias Brasileira]. Na lei de 2010, o investimento previsto foi de algo como 50 milhões de dólares anualmente.
Críticos dizem que o uso de laptops, de tecnologia em aula, não tem melhorado as notas dos alunos. Onde está a falha dos projetos de adoção de TICs nas escolas?
Brechner – Para a gente, não é necessário demonstrar que se melhora a educação, que melhora o aprendizado de matemática. Assim como não é necessário mostrar que é essencial ter água corrente, água quente, ou dar de comer às crianças. Tem de ser feito. É uma obrigação do Estado, do governo, dar internet, conectivadade, promover o acesso. Desde o primeiro dia tínhamos a visão de que o acesso à internet é um direito universal; mas em 2007 muitos nos consideravam yuppies, tecnocratas.
Além da distribuição de equipamentos, são realizadas capacitações dos professores. Como acontecem, qual a duração, há atualizações periódicas?
Brechner – Primeiro, tentamos um ensino cara a cara, que foi um desastre. A ideia era ensinar um professor, e este ensinar o outro, que ensinaria outro e assim por diante. Formávamos um formador, e o formador ensinava outros. Foi um desastre total. Agora, a capacitação é presencial e online, o que tem funcionado.
Quais os softwares usados nos laptops? Por que essa opção?
Brechner – Nós usamos, na maioria das vezes, software livre. Mas somos agnósticos em relação ao tema. Não consideramos parte de nossa batalha se o software é ou não livre. Usamos o que pensamos ser sempre o melhor para os estudantes. Se existir algo muito bom que não é software livre, queremos trazer isso, mas procuramos obter acesso ao código fonte para ter direito de modificá-lo.
Em dezembro o parlamento uruguaio aprovou lei que define o uso de software livre como prioridade em todas as instâncias do governo. Como isso impacta o trabalho de vocês?
Brechner – A lei do software livre não impacta o Ceibal porque 95% de nosso software é livre. Como disse, creio que seja importante usar programas livres, sem, no entanto, renunciar às melhores soluções em cada caso. Nós acreditamos muito no aspecto colaborativo do software, o achamos que em alguns produtos de software livre esse diferencial de colaboração é ampliado. A lei é importante porque marca as regras do jogo, mas muito mais importante é ter gente capacitada em usar os softwares.
Este ano, começaram um projeto-piloto para distribuir tablets a crianças em fase pré-escolar. Qual o motivo da diferença de dispositivos?
Brechner – A gente acredita que os tablets, no momento, são mais eficientes com as crianças menores, por enquanto. Por isso começamos um piloto no jardim de infância, em que a ideia é ver como reagem os professores. Mas nossa ideia é que sejam distribuídos tablets no segundo e primeiro ano da escola, laptops do terceiro ao sexto, e também do sétimo ao nono ano. Pensamos nessa divisão por entender os tablets mais como um dispositivo de consumo, por não enxergar a existência, hoje, de softwares de criação, fáceis de usar. Portanto, o tablet é para outro perfil. Não me vejo usando um tablet para programar. Mas acho que isso tende a mudar em breve.
O tablet pode vir a substituir os laptops um dia?
Brechner – Acho que os fabricantes não têm mais interesse em produzir notebooks baratos, de 200 dólares.
O Ceibal prevê a renovação, a cada quatro anos, dos equipamentos. Para onde vão os notebooks antigos? Como são descartados?
Brechner – Esse é um problema. Estamos reciclando alguns, levando à remanufatura, outros estão sendo usados para reposição de peças. Mas há o problema de descarte. No momento, estamos finalizando a licitação para determinar quem vai tratar o lixo eletrônico.
Em novembro, o país atingiu a marca de 1 milhão de computadores distribuídos entre os alunos. Para muitos já não era novidade receber o equipamento…
Brechner – Temos 1 milhão de computadores distribuídos a mais de 400 mil estudantes. Encerramos, em 2013, o terceiro ciclo de troca. A rede pública de estutantes no Uruguai é de pouco menos de 600 mil alunos. A troca é importante por causa da evolução dos recursos. A tecnologia muda muito rapidamente em quatro anos. Parte das máquinas hoje vem equipada com Fedora, outra com Ubuntu.
Além dos computadores, o que a sala de aula tem, que faz parte do Ceibal?
Brechner – Temos uma plataforma digital de matemática, de inglês, livros digitais, de programação. Temos kits de robótica, sensores. Enfim, temos de tudo.
Miguel Brechner Frey é presidente do Centro Ceibal para Apoio à Educação Infantil e à Adolescência. Também é diretor da Agéncia de inovação e do Laboratório Tecnológico do Uruguai.