Entrevista – Geração alt-tab deleta fronteiras na educação

Para Nelson Pretto, da UFBa, a inclusão digital ainda está muito distante da escola

Lia Ribeiro Dias


O que os projetos de inclusão digital e outros programas de formação de
crianças e jovens, como os da área da cultura, têm a ver com a escola
tradicional? Na opinião do físico e educador Nelson Pretto, diretor da
Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, eles existem
porque a escola não é o que deveria ser: ter professores qualificados,
oferecer todas as atividades que os jovens encontram nesses programas e
serem abertas à participação da comunidade. Mas ele diz que esses
programas conquistaram um espaço tão importante e que a maioria deles
vem desenvolvendo um trabalho tão significativo, que, mesmo que a
escola mude na direção desejada, eles não poderiam simplesmente ser
eliminados. O que Nelson prega é uma aproximação entre a escola e esses
projetos, porque o conflito existente entre esses dois mundos não é bom
para ninguém. Conflito, porque os projetos são divertidos, ao se
apoiarem nas tecnologias que permitem interatividade e estimulam a
criatividade, enquanto a escola é chata. A formação nos projetos é mais
flexível, enquanto a da escola é mais rígida. E a criança e o jovem,
diz ele, precisa de tudo isso, do formal e do informal, do rígido e do
flexível.

Nesta entrevista, Nelson Pretto ressalta que não tem um modelo para
fazer essa aproximação e que nem quer construí-lo a partir da

experiência que a Faculdade de Educação desenvolve no município de
Irecê, na Bahia. Defende que cada parte busque os meios de aproximação,
o que será facilitado por políticas públicas que estimulem as escolas a
se abrirem para os projetos. Mas, para isso, diz que é fundamental
investir pesado na qualificação dos professores e na sua preparação
para compreender e assimilar o modo de ser e pensar da geração alt-tab.
O jeito alt-tab de ser, diz ele, é esse de processar múltiplas coisas
simultaneamente, levando em frente uma dimensão de construir o pensar
que é diferente de tempos atrás.


ARede –
Como você vê a relação entre os projetos de inclusão e a
escola, a educação formal? É necessário haver uma integração maior?


Para o aluno, a escola formal
é um purgatório
Nelson Pretto — Eu acho que a integração é absolutamente fundamental. O
que acontece é que a escola foi sendo muito desmoralizada ao longo dos
últimos anos; só que ela ainda continua sendo um espaço que as pessoas
consideram necessário e obrigatório. Então, todos esses projetos, que
são importantes do ponto de vista da contribuição à formação dos
jovens, como os processos de inclusão sociodigital e mesmo de outras
naturezas, como projetos de cultura em várias áreas, têm sempre uma
característica fundamental que é obrigar que a criança e o jovem, em
outro turno, passe pelo purgatório. E o purgatório é a escola.

Acho que essa distância entre a escola e esses projetos e programas é
muito grande. Diante disso, considero fundamental avançarmos em uma
forma em que as escola se aproximem desses projetos e os projetos se
aproximem das escolas. Ou seja, tentar criar alguns mecanismos de
atuação mais integrada, no sentido de favorecer tanto as transformações
radicais que a gente precisa na educação, como uma maior qualificação
dos projetos na linha de infocentros, telecentros, coisas do tipo.


ARede –
Como poderia ser essa aproximação? E, em sua avaliação, por que
esses equipamentos públicos, como os projetos de inclusão digital e de
cultura, são necessários, se temos as escolas?


Pretto –
Em teoria, não seria necessário nada disso. Porque essa é uma
mania que nós temos no país: quando uma coisa não funciona, você faz
outra, ao lado, para funcionar. Na verdade, o que nós deveríamos ter é
uma escola com todos esses equipamentos, com professores qualificados e
aberta à sociedade de uma maneira geral, à comunidade. Se tivéssemos
esse tipo de escola, não seria preciso estar duplicando, nessa linha de
implantar outros projetos, como esses todos que estão por aí. Claro que
isso só pode acontecer, se tivermos uma mudança radical na própria
escola. Uma grande contribuição que esses projetos todos nos trazem é o
fato de eles serem geridos pela própria comunidade, em alguns casos, ou
por organizações não-governamentais, que garantem uma certa
independência do Estado, principalmente do governo. Então, seria
necessário ter mecanismos de democratização da escola, para que a
junção desses projetos e  programas com as escolas pudesse,
efetivamente, se constituir como um espaço de acolhimento de toda a
comunidade.


ARede –
Enquanto não se modifica o caráter das escolas, você considera positivos esses movimentos, essas iniciativas?

Pretto –
Importantíssimos. E são tão importantes, que eu não sei se uma
transformação da escola, no futuro, com sua maior abertura à
comunidade, será capaz de substituir a presença desses projetos. Porque
eles foram se configurando como um espaço muito importante na formação
da cidadania. Ao contrário, acho que, cada vez mais, a escola tem que
dialogar com as organizações não-governamentais que estão tocando esses
belos projetos.


ARede –
Como poderia se dar a aproximação entre a escola formal e esses
projetos? Abertura das escolas a eles, extensão dos projetos de
qualificação de professores para também qualificar educadores dos
projetos de inclusão sociodigital, por exemplo?


Pretto –
Eu acho que, hoje, o ponto central nosso é a formação de
professores. Se tivermos, no país, um programa pesado de formação e
valorização de professor, vamos melhorar a formação, a valorização e a
recuperação da autonomia do trabalho do professor e da escola. As
escolas, tendo mais autonomia e tendo possibilidade de atuarem de forma
mais ampla na sociedade, elas próprias vão se integrar e atuar junto
com essas organizações que vêm fazendo esse trabalho. Outro ponto
importante tem a ver com políticas públicas. Não é possível
continuarmos com políticas públicas esquizofrênicas, como as
classifico, onde vários agentes atuam na mesma área, completamente
desvinculados um do outro. Não falo só de ministérios diferentes, mas
de diferentes áreas, dentro de um mesmo ministério. Uma política mais
integrada de apoio a todas essas iniciativas é algo muito importante.
Eu dou um exemplo muito claro: os belíssimos projetos na linha da
cultura digital que o Ministério da Cultura vem desenvolvendo, como os
de videogames nacionais, os Pontos de Cultura e todo o movimento
Creative Commons teriam que ter mais integração com os programas do
Ministério da Educação.


ARede –
Voltando à integração entre os projetos de inclusão digital e a
escola. Ela poderia começar pelos programas de formação continuada de
professores, que estão sendo desenvolvidos, atingindo também os
educadores dos projetos de inclusão digital?

Pretto – Nós temos que concentrar esforços na formação continuada dos
professores, e promover uma maior interação desses professores melhor
qualificados com essas outras experiências. Então, o professor tem que
ter uma formação permanente e continuada que lhe habilite a dialogar,
permanentemente, com esses movimentos mais coletivos da sociedade. Esse
é um dos pontos relevantes.

Outra questão, que até antecede a essa e me preocupa, particularmente,
pela minha condição de diretor de uma faculdade de Educação, é uma
ênfase na formação inicial do professor. Eu acho que investimos pouco
numa modificação radical na formação do professor, porque não existe
uma política de mais cuidado com as faculdades de Educação,
particularmente nas universidades públicas. Nós formamos uma quantidade
enorme de professores que, muitas vezes, vão para o sistema sem
conseguir ter a compreensão global desse fenômeno.


ARede –
Em que medida os recursos multimídia, que permitem aprender de
uma forma mais interativa, são importantes na requalificação dos
professores ?


"Não é possível continuarmos com
políticas públicas esquizofrênicas."

Pretto —
Eu não chego nem a achar que são importantes, são
fundamentais. Na Universidade Federal da Bahia, nós consideramos essas
tecnologias como estruturantes. Essa é a nova forma de ser e de pensar
da juventude. E, nesse sentido, o professor tem que se integrar e
compreender todos esses processos. E por que isso acontece dessa forma?
Acontece dessa forma, porque eu costumo dizer que a meninada tem um
jeito alt-tab de ser. O jeito alt-tab de ser é esse de processar
múltiplas coisas simultaneamente; então, no momento em que o jovem
processa múltiplas coisas simultaneamente, leva em frente uma dimensão
de construir o pensar que é diferente de uns tempos atrás.

E essa diferença tem uma relação direta com esses elementos
tecnológicos do mundo contemporâneo. Apropriar-se dessas tecnologias
como uma mera ferramenta, do meu ponto de vista, é jogar dinheiro fora.
Colocar computador, recursos multimídia e não sei mais o quê para a
mesma educação tradicional, de consumo de informações, é um equívoco.
Ou nós trazemos essas tecnologias com a perspectiva de modificar a
forma de como se ensina e de como se apreende — e isso significa,
fundamentalmente, entender a interatividade e a possibilidade da
interatividade como sendo o grande elemento modificador dessas relações
—, ou vamos continuar formando cidadãos que são meros consumidores de
informações. O que nós precisamos— e essa é a chave do que eu defendo —
é formar cidadãos produtores de cultura e de conhecimento. E, para
isso, a tecnologia é fascinante.

Com o software livre, com possibilidade de rádio web, de edição em
máquinas digitais, cada leitor da revista, que está nos lendo em
qualquer parte do país, pode montar uma TV, uma rádio, uma revista, um
jornal, um panfleto, gravar discos. É isso que precisa acontecer. Nós
não temos que reagir à tecnologia, nem rejeitá-la, para rejeitar essa
sociedade que quer nos impor uma visão única de mundo. Temos que reagir
produzindo, passando por cima, no sentido de superar — claro que não é
fácil concorrer com a indústria hollywoodiana –, por meio desse esforço
de autoria que o professor e a escola têm que exercitar.


ARede –
No seu entendimento, os projetos de inclusão digital e outros,
como os Pontos de Cultura, completam a formação do jovem? Em que medida
fazem a diferença?


Pretto –
Primeiro, temos que qualificar as ações dos telecentros,
infocentros, de qualquer dessas experiências. Aquela que transforma o
telecentro ou infocentro numa mera escola de informática, no meu ponto
vista, não faz nada, ou seja, reproduz a mesma lógica da escola, só que
com computador. O telecentro que tem um trabalho de formação mais
ampla, em alguns momentos, pode até entrar em conflito com a escola.
Esse é o nosso desafio, porque o conhecimento sistematizado da escola
não vai ser jogado fora, e não é para ser jogada fora.


ARede –
Quando você fala conflito, está se referindo à diferença de abordagem?

Pretto –
Não é só a abordagem. É o universo todo que está sendo
trabalhado ali, os conteúdos. O lado de cá, da escola, é chato, o lado
de lá, dos projetos, é alegre; o lado de cá, da escola, é mais rígido,
o lado de lá, dos projetos, é informal. Enquanto nós tivermos esses
conflitos, entre esses dois universos, digamos assim, acho que os dois
perdem, porque a formação da meninada e dos jovens tem que passar por
tudo isso, pelo flexível, pelo rígido, pelo caótico, mas pelo
sistematizador, pelo formal e pelo informal. Então, por isso, acho que
o nosso grande desafio é aproximar essas experiências, que acontecem
fora da escola, com a escola.


ARede –
De novo, como fazer isso?

Pretto –
Nós temos no município de Irecê, na Bahia, uma experiência de
tentar unir esses programas à escola. Lá, no campus da UFBa, temos, há
dois anos e meio, um programa de formação de professores e, nesse mesmo
espaço universitário, tem um Tabuleiro Digital, que é o nosso
infocentro, tem telecentro do Banco do Brasil e um Ponto de Cultura.
Tudo no mesmo espaço físico, tudo na área do campus. Ou seja, lá
dentro, os professores vão ter aula; lá dentro, os meninos vão para os
telecentros; lá dentro, os professores fazem programas de rádios junto
com os alunos deles das escolas. Ou seja, há um complexo de formação
que inclui todos os elementos. E isso trouxe para nós, como pano de
fundo, a idéia de um currículo que, na ausência de um nome melhor, eu
chamo de currículo hipertextual. Ou seja, uma proposta curricular de
formação dos professores, nesse município, que contempla esse movimento
multifacetado de diversas ações e intervenções. É uma experiência muito
rica, que tem vivido, na prática, aquilo que as políticas públicas não
têm promovido, que é a integração dos diversos projetos.

Não acredito em modelo único. Acho que cada comunidade, cada grupo, vai
ter que identificar de que forma vai se aproximar da escola, e
vice-versa. E, principalmente, as políticas públicas municipais,
estaduais e federais têm que favorecer isso, porque, muitas vezes, a
rigidez está na escola. Então, os professores têm que ter mais
autonomia para poder, também, estabelecer esses links com os projetos
de inclusão sociodigital e de cultura.


ARede –
Você tem defendido o software livre como fundamental na
educação, pelo seu caráter de compartilhamento e colaboração. Também
considera que a sua adoção é necessária nos projetos de inclusão
digital?


Pretto –
Sim, por várias razões, mas a principal delas é o fato de a
lógica do software livre ser essa idéia de colaboração. Educação que
não pensar em colaboração, em generosidade, não é educação. Então, ou
nós recuperamos essa dimensão de generosidade, de colaboração, de
trabalho conjunto que a educação precisa ter – e, aí, o software livre
é um exemplo fenomenal de produção colaborativa —, ou nós não
conseguimos avançar nos programas nem educacionais, nem de inclusão. Há
um segundo aspecto, na lógica do software livre, que me agrada muito e
acho fundamental: a perspectiva dessa dimensão de colaboração,
acompanhada por um estimulo à atuação, como autor, de cada elemento do
conjunto. É claro que, para aqueles que são da informática, há uma
série de outras questões relevantes no software livre. Considero
fundamental que nós, usuários, passemos a usar mais o software livre,
num primeiro momento, para ampliar a base e as oportunidades. Para o
usuário, é uma questão de autonomia e independência. Associado a isso,
além dos benefícios para o país do ponto de vista de custo, tem toda a
discussão sobre democratização do processo da informação, sobre
Creative Commons, sobre todas essas questões interrelacionais à questão
da liberdade.