Entrevista – Jovem não é bandido

O sociólogo Daniel Cara faz uma reflexão sobre a violência e alerta: não é preciso dar escola e cultura aos jovens como uma forma de mantê-los longe do crime, e sim porque eles são cidadãos brasileiros aos quais direitos básicos são negados. 


O sociólogo Daniel Cara faz uma
reflexão sobre a violência e alerta: não é preciso dar escola e cultura
aos jovens como uma forma de mantê-los longe do crime, e sim porque
eles são cidadãos brasileiros aos quais direitos básicos são negados.
 
Patrícia Cornils


A violência, no Brasil, é um problema da juventude. De acordo com a
Unesco, em pesquisa feita de 1999 a 2003, os jovens (15 a 24 anos) são
as maiores vítimas de homicídio no Estado de São Paulo. A taxa de
homicídio nessa faixa etária é três vezes maior do que nas demais. E,
de acordo com a Fundação Seade, 65% da população entre 15 e 19 anos
mora na periferia. A taxa de desemprego juvenil em vários bairros da
periferia, de acordo com o Dieese, chega a 70% — a média para todas as
idades gira em torno de 16%. Apenas na região metropolitana  de
São Paulo, cerca de 1 milhão de jovens não trabalham e, pela baixa
escolaridade, não têm perspectivas profissionais.

Por isso, diz o sociólogo Daniel Cara, violência tem classe, etnia e
idade: atinge principalmente 49 milhões de brasileiros entre 15 e 29
anos, com preferência para moradores de periferias urbanas, negros. O
problema é tratar todos os jovens de periferia como potenciais
criminosos. Não é preciso dar escola à juventude por medo, para ela não
entrar no mundo do crime, diz Cara. “É preciso garantir direitos
básicos a esses cidadãos”, afirma. Cara é coordenador geral da Campanha
Nacional Pelo Direito à Educação, uma coalizão de 200 entidades, entre
elas a Ação Educativa. Também representa a sociedade civil no Conselho
Nacional de Juventude.

ARede • Por que a violência atinge principalmente os jovens?
Daniel Cara • Várias coisas. Uma é a dificuldade de acesso ao
mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que é valorizada a função do
consumo na sociedade. A pressão pelo consumo é maior na juventude,
quando você está construindo sua identidade e usar uma jaqueta da
Adidas ou um tênis Nike significa que você pode ser um campeão como o
Kaká, Tevez ou um VJ da MTV. Tudo o que é relacionado à juventude e ao
processo de identidade é muito simbólico, está muito menos no plano do
discurso que no plano da sensibilidade. E a sociedade criminaliza o
jovem, quando cria esse referencial de consumo inacessível para a
maioria. Outra parte importante dessa questão é a existência de uma
ética de masculinidade, quase do machismo. Ter uma arma de fogo,
dominar a violência, resulta em valorização perante os amigos. E isso
se aproxima da criminalidade. O terceiro fator é a própria
desestruturação da vida nuclear familiar, que acontece em toda a
sociedade, mas, em famílias de baixa renda, na periferia, leva a
questões mais graves, porque acaba com a solidariedade de renda entre
pai e mãe, por exemplo, e o jovem, em uma fase em que não deveria ser
pressionado em relação ao mercado de trabalho, precisa ajudar a
família. Outra forma de criminalizar é que vivemos em uma
sociedade  “juventudocêntrica”. A performance social está
relacionada com a juventude. E isso cria outro processo perverso, de
que você tem que viver sua juventude de uma maneira plena, arriscar,
transgredir, o que contempla inclusive a violência, porque a violência
é um valor social.

ARede • A própria sociedade estimula a violência?

"A sociedade criminaliza
o jovem ao criar um
referencial de consumo
inacessível"
Cara • Existe uma diferença entre violência e criminalidade. A
sociedade brasileira é muito mais violenta do que revelam seus índices
de criminalidade. Há um conceito de que todo jovem de periferia já fez
uma fita. Mas todo jovem de classe média ou de elite também fez fita,
já cometeu um furto ou um ato infracional. E o delinqüente é elogiado,
desde que não seja punido. Para o pai de um jovem, se o filho entrou em
uma briga, bateu, e não aconteceu uma tragédia, está tudo ótimo. A
prática da violência está presente em qualquer classe social,
principalmente para os homens. Você, na escola, não quer apanhar, é
obrigado a ter um comportamento extremamente heterossexual. As meninas
também começam a ser mais violentas, em todas as classes. A performance
— estar em primeiro lugar, se destacar — é muito elogiada na sociedade.
E todo discurso de conquista é baseado na dominação. Como há poucos
espaços sociais onde praticar formas de resolução de conflitos baseada
no repertório, no diálogo, a violência acaba sendo um canal de
dominação, de alcançar essa performance.

ARede • Por que a questão da juventude ganhou mais visibilidade agora?
Cara • A geração de 60, 70, 80 lutou pelos direitos básicos de
moradia, por exemplo, tanto nas periferias de São Paulo quanto nas
favelas do Rio de Janeiro. Os filhos dessa geração não precisam fazer
essa luta primária e têm mais acesso à informação na escola ou, no
mínimo, na televisão. E essa geração tem uma pressão do mundo do
consumo maior do que no passado. Então, a consciência da desigualdade,
dos mecanismos que impedem as pessoas de ter uma vida plena, acaba
levando a práticas de criminalidade. A criminalidade se torna uma
maneira de canalizar essa violência para obter aventura ou recurso.
Essa é uma explicação estrutural, no sentido sociológico. Há outra
explicação, que acho incompleta, que é a de que a falta de vagas no
mercado de trabalho te obriga a buscar outro tipo de oportunidade. Acho
que essa é uma explicação fraca, porque não considera a experiência
juvenil, que é marcada por questões simbólicas.

ARede • E como impedir que os jovens se alistem no PCC ou outras facções?
Cara • Como qualquer outra organização criminosa, o PCC pode ser
uma alternativa de ingresso econômico, na periferia. Mas é preciso
desmistificar o PCC, que não tem sob suas ordens todos os presos do
sistema carcerário. Uma minoria participa. Não dá para dizer que todas
as ações de queimar ônibus e agressões a agências bancárias foram
promovidas pelo PCC, várias delas foram espontâneas. Quando a
Brasilândia, bairro na zona norte de São Paulo, foi um dos focos da
primeira onda de ataques do PCC, eu ainda trabalhava lá. Todos sabem
quem são os traficantes. Eles nem são do PCC. O PCC presta serviço de
proteção a esses traficantes e sua estrutura no bairro deve ser de
cinco a dez homens. Aquele medo generalizado não fazia sentido real.
Foi uma questão construída pela própria sociedade, que, em paralelo à
cultura da violência, cultiva a cultura do medo. Quando a violência
chega à sua porta, se torna medo. É a outra face da mesma moeda.

ARede • A adesão ao crime compensa?
Cara • Claro que não, porque mesmo ela esbarra nas questões
estruturais da sociedade. No Brasil, a barreira sócio-econômica é tão
rígida que um criminoso não tem ascensão social. O Marcola recebe R$ 70
mil por mês, mas vai continuar na cadeia. A clivagem sócio-econômica
considera, inclusive, o domínio dos bens culturais e faz com que, mesmo
que você consiga muito dinheiro, se for de determinada cor, usar
determinado tipo de vocabulário, continua “pobre”. A promessa do crime
é uma promessa não cumprida, a não ser no caso da adrenalina. O nível
de aventura é grande, mas a possibilidade de ascender socialmente é
limitada. Porque o Brasil teve uma evolução nos direitos políticos, uma
evolução considerável no acesso a direitos sociais – há mais acesso a
educação e cultura, embora não tenha havido evolução na qualidade dos
serviços. Mas os direitos civis, que deveriam ser os primeiros a serem
respeitados, principalmente o direito à vida, não são. Há um déficit
enorme em relação a uma determinada população, composta principalmente
por homens, negros e moradores de periferia. Essa clivagem social
encontra na violência sua mais forte expressão. Precisamos construir
alternativas efetivas para os jovens, para que tenham de fato
oportunidades iguais. E isso não acontece na criminalidade.

ARede • Você pode sair da pobreza, mas ela não vai sair de você?

"A saída seria enfrentar a
desigualdade social"
Cara • Quando o hip hop constrói um discurso de orgulho de
periferia, a sociedade começa a ver a periferia de outra forma, começa
a ver que, se as pessoas têm orgulho, é porque ali está acontecendo
algo diferente. Quando a sociedade começa a produzir filmes como “O
Invasor” — interessante porque propõe um diálogo intenso entre elite e
periferia — ou mesmo outros muito criticados, como “Cidade de Deus” e
“Carandiru”, significa que a questão da violência está na ordem do dia.
A saída política seria assumir as causas dessa violência, enfrentar a
desigualdade social. Não adianta ficar remediando ou distensionando o
conflito, temos que enfrentá-lo.

ARede • O que seria enfrentar isso?
Cara • O Brasil não pode dizer que viveu uma experiência de
confrontar, de fato, sua desigualdade sócio-econômica. Se a periferia e
a favela assumissem a maneira como sofrem a violência social e
enfrentassem isso de maneira organizada, a sociedade seria diferente;
99% das pessoas que moram na periferia, na favela, vão para o asfalto,
todos os dias, para trabalhar, voltar para casa, lutar para ganhar R$
500,00 por mês, quando muito. Não vão para mudar a lógica do asfalto.
As coisas só vão melhorar quando a periferia, a favela, se tornar ator
político de fato. A gente fica sempre contendo a tensão, como faz o
sistema político partidário, como o próprio PT acabou fazendo. Em um
estudo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, concluímos que,
para cumprir esse direito, o país teria que aumentar os investimentos
em educação para 10% do PIB. Hoje, investe-se de 4% a 4,7%. Haveria
recursos para alcançar esse percentual, em três anos, se criássemos um
imposto progressivo, que incidisse sobre o 1% mais rico da população. E
isso é possível, porque a elite brasileira é elite econômica em
qualquer lugar do mundo, os ricos brasileiros são muito ricos.

ARede • Como está, hoje, a discussão sobre políticas públicas de juventude?
Cara • Temos três grandes linhas em debate. Com a primeira,
pode-se fazer um paralelo com a idéia do grupo de risco e do
comportamento de risco. Essa linha trata o jovem como um problema,
quase como alguém que tem que ser controlado, ter uma educação mais
rígida, com um intuito ocupacionista, como se jovem ocioso fosse
equivalente a jovem criminoso. É a idéia da mente vazia, oficina do
diabo. É uma perspectiva estimatizante, um discurso mais conservador.
Outro grupo, composto principalmente por OnGs ligadas a fundações
empresariais, trata o jovem como uma solução. É o discurso do jovem
protagonista, uma espécie de releitura de 1968, quando os jovens foram
o grande vetor de mudanças. É quase como se ele fosse um ser à parte,
que não sofre pressão dessa sociedade e nem é reflexo dela. A crítica a
essa linha passa, entre outros argumentos, pela consideração de que
1968 foi um momento na história e a história se constrói por
oportunidades. A geração de brasileiros que hoje tem entre 15 e 29 anos
não teve oportunidade de mudar o regime autoritário, porque cresceu em
um regime democrático. Essa linha superestima ações como o
voluntariado, como se esta fosse a nova expressão da politização
juvenil. De fato é, mas é uma pequena parte, afinal não são todos os
jovens que podem ser voluntários. A terceira visão coloca o jovem como
sujeito de direitos e defende a criação de políticas e o
estabelecimento de direitos para este grupo etário, que tem
problemáticas sociais específicas e que imerso em uma cadeia de
vulnerabilidade. Para superar isso, os próprios jovens devem participar
do desmonte dessa cadeia. Assim como as crianças tiveram direitos
garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a idéia é ter
direitos da juventude, até o acesso à vida adulta.

ARede • E essa visão evoluiu também?

"E com a internet,
pode-se acelerar
o tempo de
alfabetização
funcional"
Cara • Está hoje em um ponto maior de maturidade, que é não
criar políticas específicas, mas trabalhar, dentro das políticas
universais, as especificidades dos jovens. Isso já se reflete em uma
publicação que o Conselho Nacional da Juventude vai lançar em novembro,
e que vai trabalhar de maneira articulada os temas da juventude. O
objetivo é que ela se torne uma referência  para a construção de
políticas públicas para a juventude. Nela, a gente propõe uma
articulação inovadora entre as temáticas de juventude. Em uma câmara de
trabalho, tratamos das políticas universais tradicionais e articulamos
todas elas: trabalho, cultura, educação e tecnologia da informação,
considerando que tecnologia da informação é uma maneira contemporânea
de articular as três políticas universais. A outra câmara temática são
as políticas universais relacio­nadas a interesses mais específicos do
período juvenil: a qualidade de vida, da saúde, do acesso ao meio
ambiente, do lazer e do esporte. E, por último, são as políticas
emergenciais, que são as políticas de vida segura, que consideram
segurança pública, direito à vida plena e a valorização da diversidade,
considerando que os jovens são mais vulneráveis no que diz respeito aos
seus direitos de vida. Vamos lançar a publicação nos dias 28, 29 e 30
de novembro, no Seminário Nacional de Políticas Públicas de Juventude.

ARede • Como os projetos de tecnologia para inclusão social podem contribuir?
Cara • Uma coisa a se refletir é que, para a geração atual de
jovens, um dos maiores desafios é o analfabetismo funcional. A maior
parte dos jovens tem um domínio muito baixo de língua portuguesa e de
conceitos matemáticos básicos. Tanto na questão de cultura quanto na de
educação, que são direitos universais e subsidiam a entrada no mercado
de trabalho, a tecnologia da informação tem um papel fundamental. Para
escrever e para ler, você precisa ter interesse na leitura e na
escrita, e há muito mais interesse por aquilo que está na linguagem da
internet, na forma que a internet articula a informação, ou na
necessidade que você tem de estabelecer contatos no Orkut, no MSN. Por
mais que se crie outra linguagem, como se cria, você tem que dominar a
base dessa linguagem, que é universal, é a escrita na língua
portuguesa. Assim, com a tecnologia da informação e a internet, pode-se
ter uma facilidade maior de aprendizado, acelerar muito o tempo de
aprendizado, de alfabetização funcional. Em paralelo, o domínio básico
de tecnologias da informação é praticamente uma condição de acesso ao
mundo do trabalho. Como o cobertor econômico está muito curto, como o
mercado de trabalho se desestruturou, o jovem de periferia está
disputando vaga com o jovem de classe média, que antes entrava em
cargos semi-gerenciais e, hoje, disputa vagas de recepcionista. E o
jovem de periferia concorre em uma possibilidade desigual com o jovem
que fez escola particular, que tem computador em casa, fez aula de
inglês.


www.campanhaeducacao.org.br/
— Campanha Nacional pelo Direito à Educação

www.unesco.org.br/pesquisaspub/index_html/mostra_documento
– Pesquisas da Unesco sobre violência e políticas públicas para a
juventude

www.acaoeducativa.org.br/ — Site da Ação Educativa