Mais Brasil na tela da TV
Este mês entra em vigor a política de cotas de conteúdo audiovisual nacional na TV paga. Glauber Piva, diretor da Ancine, fala sobre as medidas necessárias para estimular a indústria brasileira, que agora tem mercado garantido.
Lia Ribeiro Dias
ARede nº 84 – setembro de 2012
COM A ENTRADA em vigor da lei das cotas de conteúdo audiovisual brasileiro na TV paga, a partir do início deste mês de setembro, começa a se formar, de fato, um novo e importante mercado para produtores e programadores de filmes, séries, programas infantis e animação. Pela nova Lei de Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), que passa a valer para a TV paga, a programação em horário nobre, infantil e adulto, tem que exibir conteúdo brasileiro. Além disso, a partir de novembro, os pacotes de TV por assinatura deverão apresentar um canal de conteúdo nacional a cada três de espaço qualificado, até o limite de 12 canais obrigatórios.
Para atender à nova demanda de programadores e empacotadores por conteúdo brasileiro, o mercado audiovisual precisa ampliar e profissionalizar a produção. E como o objetivo da lei também é valorizar a produção regional e independente, essa profissionalização tem de atingir as distintas regiões do país.
Contribuir para a valorização do conteúdo nacional e regional são atribuições da Agência Nacional de Cinema (Ancine), que tem papel duplo: é o órgão regulador do mercado audiovisual e é também o agente de fomento. Cabe à agência distribuir, por meio do lançamento de editais, os recursos do Fundo Setorial do Audiovisual e da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), que foi fortalecida com a lei do SeAC. Só este ano, as operadoras de telecomunicações recolheram para a Condecine R$ 800 milhões, dos quais poderá ser usada a metade em 2012.
O diretor da Ancine, Glauber Piva, conta qual é a expectativa em relação ao novo mercado que se forma para o audiovisual brasileiro e fala das ideias para uma política de fomento aos produtores e programadores. As diretrizes gerais dessa política são uma atribuição do Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual, que tem representantes do Ministério da Cultura, da Ancine, dos agentes financeiros e da sociedade civil.
Em setembro, começa a valer a política de cotas da Lei da TV paga, que é de implantação gradual. Qual é a expectativa da Ancine?
Glauber Piva – Nossa expectativa é a melhor possível. A gente percebe que o setor audiovisual caminha para uma profissionalização mais qualificada. Também mais desconcentrada, porque há muita demanda por produção brasileira. Isso vai exigir dos produtores agilidade e qualidade dos projetos, o que é relevante. Mas também exige do Estado, da Ancine, agilidade na análise dos projetos, qualidade das políticas de fomento e sobriedade na sua atividade regulatória.
Nossa grande preocupação é colocar a lei em funcionamento sem muitos solavancos, respeitando as características do mercado, sem abrir mão do rigor regulatório que a lei nos determina. Encontrar esse balanço, esse ponto de equilíbrio é a grande busca que a Ancine faz, valorizando a produção brasileira e independente. Esse talvez seja o pilar central do ponto de vista da Ancine, e que nos parece que o mercado está assimilando bastante bem.
É possível estimar o impacto dessa nova configuração de TV paga na produção de conteúdo?
Piva – Dá para estimar, mas de maneira muito preliminar. Na área de produção, aumentou muito a demanda por novos projetos, o que estimula uma reorganização do mercado, com surgimento de novas empresas e fusão de outras. No mercado de programação, temos visto demanda muito grande e o surgimento de algumas programadoras. Na Ancine, apareceram novas empresas no período de registro de programadoras, que se encerrou semana passada (segunda semana de agosto). Algumas nos surpreenderam. Percebemos que o mercado de programação brasileiro está aquecido e se preparando para novos modelos de negócio.Para a Ancine, dois desafios são centrais. Nossa capacidade regulatória passa a ser cada vez mais testada e exige de nós cada vez mais qualidade. São inteligências que precisamos cada vez mais entender. Entender o mercado de TV paga, entender as demandas da programação, uma atividade importante. Temos uma segunda tarefa que é o fomento à produção.
A Ancine tem, agora, um volume muito maior de recursos para gerir. O que muda em relação à metodologia anterior?
Piva – Temos um histórico. A Ancine sempre fez o incentivo via Lei do Audiovisual, um aporte médio de R$ 135 milhões por ano, nos últimos três anos. Já no Fundo Setorial do Audiovisual, o aporte era de 90 milhões/ano, com recursos da Condecine. Este ano já fizemos edital do Fundo Setorial, juntando recursos 2011 e 2012, no total de R$ 205 milhões. No ano, a arrecadação da nova Condecine (a configuração das contribuições mudou com a Lei do SeAC, que atinge as operadoras de telecom) foi da ordem de mais de R$ 800 milhões. Mas o que o Fundo Setorial terá para gastar em 2012 são R$ 400 milhões, além dos R$ 205 milhões da Lei do Audiovisual. Teremos, portanto, R$ 605 milhões. É um volume significativo. A arrecadação de R$ 800 milhões para aportar no setor audiovisual é inédita na história do país.
Como liberar esses recursos?
Piva – A primeira coisa é que não podemos nos contentar com esse volume, porque isso é pouco para o amadurecimento e a profissionalização do setor. A grande tarefa do Estado não é amealhar recursos, mas fazer uma gestão eficaz. E como o problema é complexo, apenas soluções complexas podem atender às nossas necessidades. Para isso, é preciso buscar vários tipos de soluções. Não podemos pensar o fomento audiovisual apenas pela obra.
Tradicionalmente no Brasil, nas últimas duas décadas, o tipo de fomento foi feito sempre tendo como objeto a obra. Hoje é preciso pensar a obra – filmes, documentários, animação, séries –, mas é preciso ir além. Precisamos estimular o desenvolvimento de projetos. Estimular que antes de ser efetivamente feitas, as obras passem por um processo longo e intenso de pesquisa de roteiro, de linguagem, de locação, episódios-pilotos. Isso é tão importante quanto fomentar a produção da obra em si.
Por que?
Piva – Porque o Brasil carece de uma produção audiovisual mais desenvolvida. Precisa de desenvolvimento de projetos. Pelo modelo de produção atual, o cara tem uma grande ideia e busca recurso sem necessariamente qualificar o projeto. E, muitas vezes, perde em capacidade de comunicação, capacidade de aceitação de sua criação no mercado. Investir no desenvolvimento de projetos é investir na qualidade artística e comercial daquilo que está sendo proposto.
Que outras mudanças você considera necessárias?
Piva – Precisamos pensar na qualidade do que estamos produzindo em termos de animação. O setor produtivo de animação precisa ser estimulado. Estou falando de obra, mas também do arranjo produtivo por trás do projeto de animação. Podemos pensar em várias coisas, desde uma linha específica de animação até o estímulo a um modelo de produção que seja colaborativo para produzir mais e melhor. Outra deficiência hoje, no audiovisual brasileiro, é produção para crianças. Precisamos qualificar e estimular mais a nossa produção para a infância. Me pergunto se devemos ter uma linha específica do audiovisual para a infância, combinando cinema com televisão e internet. É preciso pensar.
Outra possibilidade a ser avaliada: projetos multiplataformas, que já nasçam pensados para várias plataformas e possibilidade de licenciamento posterior. Outras questões importantes que devem estar na pauta. Talvez tenhamos a oportunidade inédita de fazer uma política de fomento que combine com formação. Formação de técnicos, direção, roteiristas. Também com qualificação de gestão das empresas. Ouvimos muita reclamação, que falta expertise na gestão de projetos ou nas empresas propriamente ditas. Mas também falta produção executiva e técnicos aqui ou ali.
Pela lei, uma parte dos recursos do Fundo Setorial deve ser aplicada para o desenvolvimento do audiovisual regional. Como enfrentar esse desafio?
Piva – São 30% dos recursos do novo Fundo Setorial do Audiovisual a ser destinados aos produtores e programadores do Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Com esse recurso, a lei estimula a valorização de nossa diversidade regional e cultural. O Fundo precisa atender a isso, sem abrir mão das demandas do mercado e do consumidor. E como fazer isso sem que se termine por colocar recursos em empresas de Rio de Janeiro e São Paulo que abriram empresas nessas regiões, o que não seria valorizar a diversidade regional? Temos de pensar várias alternativas, como parcerias de empresas mais experientes do Rio e São Paulo com produtoras regionais. Uma espécie de coprodução nacional, em que haja uma espécie de transferência de tecnologia para outros centros ainda em desenvolvimento. Essa lógica cabe para essas regiões, mas a preocupação também deve ser estendida para a região Sul. Não à toa, hoje existe um grupo de trabalho entre Ancine, o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) e produtores dos três estados da região Sul para pensar soluções específicas para esse mercado. E também por que não pensar em um programa para Minas e Espírito Santo, que não são citadas na lei, mas têm um desempenho inferior na captação de recursos no Fundo Setorial e Lei do Audiovisual? Outra solução é desenvolver uma política de crédito às empresas, com o estímulo a um cartão Fundo Setorial do Audiovisual, que ajude as empresas do setor a se organizar e profissionalizar a gestão.
Até agora, o Fundo Setorial estava mais focado na ampliação das salas de cinema. Continua?
Piva – Como as soluções são complexas, e o cinema é a grande plataforma de lançamento e estruturação do audiovisual, estamos trabalhando para que o parque cinematográfico seja expandido. Hoje é exíguo, mas em plena expansão, principalmente com o programa Cinema Perto de Você, que oferece recursos baratos para o empresário abrir sua sala de cinema, a partir de determinadas condições. Continuaremos trabalhando isso. Estamos combinando duas coisas: expansão do parque exibidor cinematográfico com a expansão da presença da produção independente da TV paga. Essas duas coisas vão dar um balanço muito grande e vão resultar em formação de público e diálogo com a formação do gosto cinematográfico.
A Ancine vai alterar a estrutura para lidar com a nova demanda?
Piva – A Ancine está fazendo edital de concurso para 82 servidores, não é especificamente em função da nova lei, mas para substituir terceirizados por concursados. Vamos ter um pouco mais de capacidade de operação. É importante destacar que o Fundo Setorial não é da Ancine. Existe um Comitê Gestor composto por representantes do governo e da sociedade civil. Quem define as linhas e os caminhos é o Comitê Gestor. Isso que estou apresentando são hipóteses, mas há várias possibilidades sendo pensadas. Além disso, o Fundo Setorial, para ser operado, precisa de agentes financeiros. Hoje, o principal é o BNDES, em parceria com o BRDE; a Finep foi agente financeiro da primeira fase até o ano passado. Admitimos a possibilidade de trazer outros agentes financeiros. É importante para agilizar o acesso aos recursos, estimulando que mais instituições tenham inteligência para o audiovisual.
Hoje, a maior fragilidade da produção nacional está em qual segmento?
Piva – Tradicionalmente, a produção para TV no Brasil foi feita de maneira concentrada, o que inibiu a valorização das diversidades cultural e regional nas telas. É uma realidade que a nova lei nos obriga a transformar. Em TV, a produção brasileira ainda tem de aprender a produzir com a agilidade que a TV impõe. O parque produtivo tem necessidade dessa agilidade. Precisa aprender a fazer, independentemente das políticas do Estado, com qualidade, o que interessa ao usuário, agilidade e preço cobrado pelo mercado. Acho que esse ainda é o grande desafio.
A partir da reestruturação desses mercados, como você vê a possibilidade de exportação de produtos audiovisuais brasileiros?
Piva – Com muito otimismo. Hoje, temos duas iniciativas bastante relevantes de estímulo à circulação do produto audiovisual brasileiro no exterior. O programa Cinema no Brasil e o ABPI-TV, com o programa Brazilian TV Producers. Eles fazem um trabalho bastante interessante com apoio da Ancine e da Secretaria do Audiovisual, com qualificação dos produtores. Esse intercâmbio internacional já tem aproximado as produções brasileiras dos programadores estrangeiros, no caso da TV. Mas o caminho para trilhar é grande. Com mais recursos e exigência de mais qualidade na produção, a perspectiva é positiva. Mas teremos que trabalhar todos juntos.
Alguns programadores estrangeiros falam da falta de conteúdo disponível para atender às cotas da lei. Um exemplo citado foi na área de programação infantil. Como lidar com essa questão?
Piva – A lei tramitou por quatro anos e faz quase um ano que foi sancionada. Ou seja, tanto programadores, quanto produtores, tiveram bastante tempo para se organizar. A Ancine está sendo bastante parcimoniosa na regulação e na fiscalização. Queremos realmente ser mais um instrumento de indução e estímulo do que de perseguição, mas estamos atentos. Seremos parceiros dos programadores que demonstrarem boa vontade, iniciativa empresarial para contratar produção brasileira e idem em relação aos produtores. Mas o mercado precisa ir atrás dos produtores para cumprir as cotas, e tenho certeza de que eventuais problemas serão superados.
O público vai perceber de imediato a mudança na programação, com mais conteúdo nacional?
Piva – O consumidor vai perceber que tem mais produção brasileira na TV. Acho que em pouco tempo achará natural e saudável, porque é uma forma de o Brasil se reconhecer nas telas. Essa é a grande questão. Ao valorizar a produção independente brasileira, estimulamos a diversidade cultural brasileira e a organização de um novo setor econômico no país. Além disso, o grande benefício é que colocamos o audiovisual no território dos direitos. O audiovisual passa a transitar em um território em que o direito do consumidor é valorizado, os direitos culturais são valorizados, e isso vai ser percebido pelo telespectador. Ele vai acompanhar o cumprimento das cotas, estará evidente no site da Ancine e das empresas.
A TV paga, falando a nossa língua
O poder de compra do brasileiro cresce e, entre os principais desejos de consumo, figura a TV por assinatura paga – um luxo até pouco tempo atrás. Empresas e governo acreditam que esta é a década da virada. Em 2011, 21,2% das casas tinham TV paga. Projeções do Ministério das Comunicações sugerem que em 2014 o número será de 70%. De olho no crescimento de usuários, o governo aprovou, em 2011, a Lei 12.485, de Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), que redefine as regras para o serviço de TV paga. O novo texto uniformiza a atuação das operadoras, não importando se oferecem TV por satélite, cabo, IP etc. Também amplia a concorrência, pois permite que concessionárias de telefonia entrem nesse mercado.
Outra novidade é a exigência de mais conteúdo brasileiro na programação. Até hoje, grande parte dos programas exibidos nos canais de TV paga são produzidos fora do país. Em termos econômicos, significa que o Brasil paga para importar conteúdo cultural, perdendo a oportunidade de gerar empregos e valorizar a cultura nacional. Para garantir a colaboração dos canais de TV, a Lei do SeAC prevê uma forma gradual, em três fases, de inserir conteúdo brasileiro “qualificado” na programação. O termo qualificado, apesar de parecer relacionado a qualidade, quer dizer simplesmente material audiovisual que não seja noticiário ou programa esportivo. Isto é, filmes, séries, animações, documentários – justamente o que o país menos produz.
O conteúdo deve ser inserido na grade da seguinte forma: a partir de 2 de setembro, o horário nobre da programação deve ter pelo menos 1 hora e dez minutos de conteúdo nacional nos canais qualificados (todos menos os de esporte e jornalismo). A partir de 12 de setembro, começa a correr o segundo ano de aprovação da lei e, então, o tempo passa para 2h20 semanais. Em 12 de setembro de 2013, atinge-se a obrigatoriedade máxima, de 3h30 semanais.
Além da quantidade de conteúdo audiovisual produzido no Brasil, a lei exige canais programados por empresas nacionais nos pacotes oferecidos pelas distribuidoras, a partir de novembro. A regra segue a mesma lógica de implantação: deve haver um canal brasileiro a cada nove de espaço qualificado no primeiro ano; um canal brasileiro a cada seis de espaço qualificado no segundo; e um canal brasileiro a cada três de espaço qualificado, com o limite de doze, a partir de setembro 2013. Desses doze, dois devem ser independentes, sem relação com distribuidora. Um desses dois independentes não pode ter relação com empresa de radiodifusão, motivo pelo qual foi apelidado de “superindependente”. Se tudo correr de acordo com a lei, a TV por assinatura nacional vai ganhar um sotaque tropical. Demorou. (Marina Pita)