Entrevista – Marcos Mazoni – Um novo mercado (livre) de trabalho

Marcos Mazoni, presidente do Serpro, fala sobre a política de desenvolvimento de software livre no governo federal.

Introduzido no governo federal como tentativa de política de governo, no início do primeiro governo Lula, o software livre foi motivo de grandes embates internos, programas de migração dos desktops (nem todos concluídos) e um visível quase abandono do projeto coletivo – embora muitas áreas da administração direta e estatais continuassem trabalhando para desenvolver plataformas livres. Com a reativação do Comitê Interministerial de Software Livre (CISL), em 2008, voltou-se a colocar o soft­ware livre como política de governo, mas com foco no desenvolvimento de sistemas estruturantes e de novas plataformas de trabalho para momentos de migração tecnológica.

“Quanto mais sistemas web tivermos e quanto mais os sistemas web trabalharem com geração de relatórios em padrões abertos, mais nós libertamos os desktops da necessidade de um tipo de sistema operacional específico”, diz Marcos Mazoni, presidente do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e coordenado do CISL. Nesta entrevista, ele conta que novos desenvolvimentos em plataforma aberta estarão disponíveis para download no Portal do Software Livre Brasileiro.

ARede – Qual a estratégia do governo federal para a área de software livre? 
Marcos Mazoni
– No comitê, no final do ano passado, definimos alguns macro-objetivos, como trabalhar na padronização de documentos, na migração para aceitar o padrão ODF nos diferentes ambientes do governo federal. Outro objetivo é a implantação de ferramentas que dizem respeito ao escritório eletrônico, o Expresso. Estamos expandindo o Expresso no governo federal, onde será utilizado tanto pela administração direta como pela indireta. E vamos continuar atuando nos sistemas estruturadores, que serão desenvolvidos em ferramentas baseadas no software livre. Nossa idéia é a seguinte: quanto mais sistemas web tivermos e quanto mais os sistemas web trabalharem com geração de relatórios em padrões abertos, mais libertamos os desktops da necessidade de um tipo de sistema operacional específico. Nossa estratégia não é obrigar a migração, mas dar condições para a migração tranquila. 

ARede – Em 2003, 2004, tentou-se, em alguns ministérios, fazer a migração para software livre no desktop, na ponta. O que levou a essa mudança de enfoque na política de soft­ware livre dentro do governo? 
Mazoni
– Desde que era presidente da Companhia de Processamento de Dados do Estado do Rio Grande do Sul, sempre acreditei que, no lugar de obrigar uma mudança, deveríamos dar condições para que a mudança acontecesse de forma tranquila, nos momentos importantes — atualização tecnológica, migração de versões. Se alguém migrar de um produto de desktop do XP para o Vista é uma migração, não é uma mera evolução. Então, esse é o momento bom de fazer a migração com o software livre. Mas o ambiente de trabalho dessa pessoa tem de ser o menos impactado possível. Essa tem de ser uma preocupação central nossa, da área de tecnologia

“Nossa estratégia não é obrigar a migração, mas dar condições para a migração tranquila”

ARede – Essa visão de começar a migração pelo ambiente de trabalho reduz as reações negativas dos usuários à mudança?
Mazoni
– Eu acho que facilita. O usuário de tecnologia da informação não precisa ter o mesmo debate que a gente, ele quer usar, e com facilidade. Tem um debate ideológico? Claro que sim. Software livre tem um debate ideológico com o software proprietário. Software livre trabalha com o conceito de utilização universal do conhecimento. O proprietário, de agregação particular. Não estamos fugindo do debate ideo­lógico, estamos somente dizendo que, para fazer essa migração em seu ambiente de trabalho, as pessoas não podem ter prejuízo do seu trabalho. 

ARede – Em que sistemas estruturantes vocês estão trabalhando agora? 
Mazzoni
– Um é o Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), que todo o governo usa. Até o final do ano vamos ter uma versão nova de interface do Siafi. Estamos fazendo a migração nos geradores de relatórios em todos os sistemas que dizem respeito à arrecadação no país, para que fiquem independentes de plataforma. Há situações específicas. O Banco do Brasil, por exemplo, está fazendo todas as suas agências multiplataforma. A Caixa Econômica Federal (CEF) está trabalhando suas agências multiplataforma. Os sistemas de controle de demandas do governo, os sistemas de controle de obras públicas, o próprio controle do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Todos esses sistemas precisam estar preparados para serem independentes de tecnologia de desktop. Estamos trabalhando em todos os sistemas que são de responsabilidade do Serpro. E outros órgãos, com suas áreas de TI, estão trabalhando na reorganização desses sistemas. 

ARede – Qual o sistema mais avançado?
Mazoni
– É o de correio eletrônico. Nós temos um produto pronto. O Expresso iniciou na Companhia de Informática do Paraná, a Celepar. Havia uma solução já implantada em software livre, o Direto, que foi fechada. A partir daí, tivemos de fazer uma opção para evoluir. Então resolvemos — e acho que este é um aspecto importante — que não adianta só desenvolver em software livre, é preciso desenvolver e criar comunidades, ter uma regra de múltiplos atores para cada solução. Senão, mesmo sendo baseado em tecnologia livre, fica dependente de um único ator, um único fornecedor. O Expresso vem da comunidade do e-Groupware, cuja principal base está na Alemanha, mas tem desenvolvedores no mundo todo. Usamos essa ferramenta e criamos uma versão brasileira, com correio eletrônico e workflow, muito mais robusta do que o Exchange, o Outlook e o próprio Lotus Notes, muito usado no Brasil, tanto em governos estaduais quanto federais. Hoje, o Paraná tem 160 mil usuários do Expresso. Trouxemos a plataforma para cá. Com a força que o Serpro tem e em parceria com a Dataprev, a Itaipu Binacional e a CEF, criamos um modelo de governança, como no Linux. Essas equipes se reúnem todo mês, decidem qual é o cronograma de melhoria e evolução do produto, dividem tarefas e publicam a última versão consolidada. Em função de clientes importantes como a Presidência da República, encurtamos cronogramas combinados com a comunidade, como, por exemplo, certificação digital em token, acesso via celular nas diferentes tecnologias, inclusive wap. Temos mais de 20 mil usuários no governo federal e estatais, Serpro e Dataprev (já implantados) e CEF (em implantação). Mais de 90 órgãos públicos dos três níveis participam do desenvolvimento. No modelo de governança, participam esses órgãos federais, mais os governos da Bahia, do Pará e do Paraná. Até o final de 2009, o Expresso vai se consolidar no governo federal. 

ARede – O que isso pode representar em aumento de produtividade e redução de custos? 
Mazoni – No governo do Paraná, onde há 160 mil contas, significou uma economia de R$ 50 milhões. Sem contar a parte de hardware, porque soluções como Lotus Notes exigem servidores regionais – o que não é o caso do Expresso, uma solução web. A economia, no nosso caso, pode passar dos R$ 70 milhões, R$ 80 milhões. Além da produtividade que permite, por ter um conceito de presença, de localização – o usuário pode acessar a plataforma pelo celular, por qualquer máquina ligada na web. Logo mais terá comando de voz, que está sendo integrado com uma suíte de comunicação de voz, uma central de telefonia sobre IP, onde o Expresso passa a ser o catálogo telefônico. Esse trabalho está sendo desenvolvido pelo pessoal do Serpro de Porto Alegre junto com uma equipe do Paraná. Nosso escritório de Florianópolis, que se transforma agora em um pólo de desenvolvimento, já tem a telefonia baseada em IP, em software livre, usando Expresso como sua suíte de comunicação. Queremos, até o final do ano, que 100% do Serpro fale por dentro da rede, usando o Expresso com toda essa complexidade de conceito de localização. Posso me comunicar teclando no Expresso, posso fazer uma chamada a um celular ou fixo, deixar um recado escrito ou falado, dizer que não quero ser localizado. Também, posso chamar as pessoas para um bate-papo instantâneo, sem escrever e-mail. 

ARede – Qual outro projeto é relevante nessa fase de mexer nos sistemas estruturantes? 
Mazoni
– É o software que gera software.Nossa ferramenta de desenvolvimento, o Demoiselle, é uma homenagem a Santos Dumont. A evolução do 14 Bis foi um aviãozinho chamado Demoiselle, que ele considerou a completa realização de seu experimento de voar em um aparelho mais pesado que o ar. Quando foi convidado pelo governo francês a patentear o Demoiselle (seria uma patente francesa), Santos Dumont publicou as especificações do avião nas revistas técnicas da época, em 1907, e escreveu: “É possível copiar, é possível alterar, é possível melhorar, mas não é possível registrar patente, porque é um bem da humanidade”. A primeira licença GPL de que se tem notícia! Então, o nome de nossa ferramenta é uma homenagem a um cidadão brasileiro que no início do século passado já pensava o que as pessoas do soft­ware livre pensam hoje, que a evolução pertence à humanidade. O Demoiselle é baseado em uma ferramenta livre que vem do Paraná, o Pinhão. Fizemos muitas melhorias e modificações e criamos, para o Serpro, uma ferramenta unificada de desenvolvimento de software. Todos os nossos sistemas novos, como o do Siafi, serão gerados a partir do Demoiselle. Temos 20 projetos em andamento. O Demoiselle tem um conceito de gerar artefatos e códigos que podem ser reutilizados em outras soluções. Queremos aumentar muito nossa produtividade. 

ARede – O Demoiselle será aberto ao público?
Mazzoni
– Será aberto para a sociedade de maneira geral, no portal do Software Público Brasileiro. Tanto nosso software gerador de software estará aberto, como vários de nossos artefatos. Isso vai gerar uma abertura do mercado de contratação do governo federal para empresas menores, porque ninguém mais vai precisar comprar uma ferramenta para gerar produto. Isso também vai acelerar o processo de desenvolvimento, inclusive deles, porque vão usar nossos artefatos. Para nós, as grandes vantagens, além de baratear o custo, são a padronização e a integração de produtos usados nessa grande estrutura que é o governo federal. Hoje, tenho 13 sistemas diferentes de orçamento, com oito tecnologias diferentes, o que aumenta muito o custo de manter e operar. 

ARede – O que representa, para jovens que estão se formando no software livre, ter acesso a essas ferramentas e poder fornecer para o setor público?
Mazoni
– Nas universidades, temos formação de profissionais da engenharia, da tecnologia da informação, análise de sistemas, tecnólogos. São esse que vão estar no campo da análise de requisitos, os chamados analistas de sistemas. A carência que o país e a sociedade mundial têm é da geração de código. Precisamos de mais programadores. Se tivéssemos mais programadores no Brasil, estaríamos até atendendo demandas externas. O que é isso? É o cara que gera o código. E nós estamos apostando na geração de código Java, nesta ferramenta. Eu, particularmente, sou fã de trabalhar tanto com Phyton quanto com PHP, mas tivemos que fazer uma opção e escolhemos o código Java. A possibilidade que a gente tem, nos telecentros e nos mais diferentes centros de formação fora do mundo acadêmico, é de ter uma força de trabalho para geração de código que vai poder, com essas ferramentas a custo zero, fazer trabalhos para o governo e para empresas privadas. A Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento trabalha no sentido de reformular normas para que possam ser contratados só não sistemas totais, mas componentes desses sistemas como, por exemplo, uma solução de checagem de CPF. O mercado do governo seria então aberto a pequenos projetos desenvolvidos por essas pessoas em formação nos mais diferentes cantos do Brasil e não necessariamente no meio acadêmico. Nossa ideia é ir construindo um novo mercado de trabalho, de alta qualidade e baixo impacto ambiental, para que as pessoas possam ter emprego e renda a partir do software livre.


Marcos Mazoni, 48 anos, foi presidente da Celepar, do Paraná. Trabalhou na Procergs, do Rio Grande do Sul, na Procempa, de Porto Alegre, e na antiga Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT). Um dos precursores dos sistemas de informática em software livre no Brasil, coordenou o 1º Fórum Internacional de Software Livre, em 2000. Na Celepar, promoveu inúmeros avanços, entre eles, a adoção do Programa de Software Livre, que possibilitou o desenvolvimento de soluções e produtos reconhecidos em âmbito nacional e internacional. Está presidência do Serpro desde maio de 2007.