Banto, implementador do Gesac,
anda o país inteiro dando oficinas. Para ele, as pessoas devem
renunciar ao que parece fácil e “aprender a
aprender”. Verônica Couto
Para Banto, ou Rafael Gomes, quem
quiser realmenter interferir socialmente, mudar as coisas, no processo
de inclusão digital, vai ter de enfrentar e desconstruir o discurso
dominante que, segundo ele, prega o “apenas use, não pense”. Na sua
opinião, as pessoas devem “aprender a aprender”. Renunciar ao que
parece mais fácil e à idéia de que basta apertar um botão para ser
feliz. Em vez disso, ele quer que as comunidades assumam a dor e a
delícia de se apropriar dos conhecimentos. Um pouco como ele mesmo fez.
“Aprendi a mexer com tecnologia na rua, nas santas efigênias da vida,
com os amigos”.
Banto é um dos 20 implementadores sociais do Gesac-Governo Eletrônico
Serviço de Atendimento ao Cidadão, que percorrem o país em oficinas
técnicas para os 3,2 mil pontos de presença do programa. O papel desses
educadores é ajudar as comunidades a conhecer e usar a cesta de
serviços oferecidos pelo Gesac. Na prática, fazem mais do que isso:
disseminam a cultura do software livre, estimulam o trabalho em rede,
tentam convencer diretores de escola a abrirem os laboratórios de
informática à comunidade, apóiam a formação de jornais comunitários,
etc.
Como o Gesac atende a mais de um programa – Casa Brasil (ITI/MCT),
Pontos de Cultura (MinC), telecentros da sociedade civil, escolas da
rede pública —, os seus implementadores acabam construindo pontes entre
as várias iniciativas. Para Banto, os impactos positivos dos projetos
seriam maiores se eles trabalhassem realmente juntos, de forma
articulada. Em São Paulo, por exemplo, o implementador avisa que muitas
antenas devem ser remanejadas de escolas públicas, porque um programa
do governo estadual dará a elas outra opção de conectividade. Há dois
meses, ele tenta obter o mapa de outros projetos na região, que
poderiam ser beneficiados, mas ainda não conseguiu.
A figura do implementador está prevista no edital do Gesac, vencido
pela Vicom, empresa da Comsat internacional. Os contratos com esses
profissionais, terceirizados pela Vicom para a consultoria Stefanini,
ainda não foram assinados – porque eles não concordaram com os termos.
Dentro do Minicom, considerou-se, recentemente, a possibilidade de
dispensar essa exigência no próximo edital. “Mas sem implementadores,
não vai dar certo”, garante Banto.
ARede • Desde quando você trabalha no Gesac?
Banto • Há cerca de um ano, a convite do Antônio Albuquerque
(coordenador, que deixou o programa em 2005). Vim porque o edital do
serviço previu a figura dos implementadores sociais. Depois de um mês
de ambientação, para conhecer o projeto, fomos para a nossa primeira
atividade, em Teresina (PI), a Oficina Estadual de Multiplicadores do
Piauí.
ARede • Há uma formação, um curso, para o implementador?
Banto • Tem sim, duas capacitações. Mais do que isso, há, na verdade,
alguns critérios para contratar um implementador, que foram
considerados, principalmente, nas primeiras contratações. Boa parte tem
vínculo com movimentos sociais e é ligada à democratização dos meios de
comunicação. É um perfil bacana para o Gesac, porque, hoje, o programa
oferece todas as ferramentas para comunicação através da internet.
Desde e-mail até VoIP. Outro critério era conhecimento de software
livre.
ARede • O serviço de VoIP já está operacional?
Banto • Já. O problema é que o satélite tem seus prós e seus contras,
ou seja, algumas restrições técnicas. Todos os serviços são em software
livre, menos VoIP e multicast, porque os fornecedores dizem que não há
solução para essa plataforma. De fato, no caso do multicast, o Linux
suporta áudio, mas não vídeo, e não há alternativa. Mas, até o fim do
ano, a Vicom/Comsat quer migrar o multicast para plataforma aberta.
ARede • Qual o papel dos implementadores sociais do Gesac?
Banto • O Gesac tem parceria com outros Ministérios – para o Fome Zero,
com a Defesa, a Cultura, etc. E, nesses projetos, colocou antenas de
satélite, um servidor e, junto com isso, uma cesta de serviços. Passado
um tempo, percebeu que os serviços não estavam sendo utilizados. Os
serviços eram e-mail, hospedagem de sites (a “Pousada”), a lista de
discussão, um jornal coletivo feito pelas comunidades (a “Teia”), o
Rau-TU (perguntas e respostas), um sistema de controle de versões (CVS)
– para administrar arquivos e programas criados de forma
descentralizada, um escritório (com ferramentas para trabalho em
grupo). Além de outras coisas, como o Wiki, que a gente usa, mas não é
oficial. O Gesac é um processo. A gente vai lendo e relendo, e criando
novas soluções. O Wiki, agora, vai entrar no pacote de serviços
oficiais. Muitos pontos estão em escolas, onde a galera pode escrever
sua própria história usando Wiki.
Mas boa parte dos parceiros não sabe como usar essas ferramentas. Por
isso, o edital de 2004 previu as oficinas e a figura do implementador,
para potencializar os pontos de presença, apresentando esses serviços.
O implementador sai rodando o Brasil, vendo quais são as dificuldades,
buscando soluções, e organizando oficinas locais, regionais e estaduais
sobre os serviços e sobre software livre. Por exemplo, o pessoal quer
fazer um jornal comunitário – a gente dá oficina de Scribus (sistema de
editoração para Linux). Quer fazer uma página, nós temos um serviço de
hospedagem, explicamos como é a “Pousada”, e damos uma oficina de HTML.
Também conversamos sobre conselho gestor ou comércio eletrônico, em
locais onde há uma economia solidária. O implementador tem esse papel
de instigar.
ARede • Vocês são designados para regiões específicas?
Banto • No meu caso, estou com a região centro-oeste do estado de São
Paulo. Mas isso não é muito respeitado, porque eu, por exemplo, viajo o
país todo. Vou dar uma cobertura, porque uso o software livre há muito
tempo. Já estive no Mato Grosso, na Bahia, no Maranhão, Minas Gerais,
Piauí, São Paulo, Rio de Janeiro. Mas fico mais em Campinas, Guarulhos,
Mauá, Nuporanga, Ribeirão Preto, Sumaré.
É muito louco. Aqui em Guarulhos, por exemplo, terceira maior
cidade do estado, não chega conexão rápida (ADSL), só a antena Gesac.
Em Campinas, também há lugares onde não chega. No município de
Eldorado, onde existe um quilombo na comunidade de Ivaporunduva, na
cidade toda, o único lugar com conexão rápida é no quilombo, pela
antena Gesac. A luz elétrica só chegou agora. Na maior parte dos
lugares onde eu fui, a luz chegou há poucos meses, nesse projeto Luz
para Todos (do governo federal).
ARede • Como a comunidade pode conseguir que um implementador vá dar uma oficina?
Banto • A gente visita, primeiro, os projetos dos parceiros – MST
(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), Casa Brasil, Banco do
Brasil, etc. Depois, mesmo quando não é parceiro, a gente vai porque o
projeto tem uma proposta de software livre ou de inclusão digital, e
usa o espaço para ajudar as comunidades. Como acontece? Como aconteceu
no Casa Brasil, em Guarulhos e em Mauá. Eles ficaram sabendo que eu era
o implementador da área. Ligaram, pediram uma oficina. A gente vai,
visita, e faz um plano de trabalho para o mês. Uma equipe, em Brasília,
dá o suporte para os implementadores em campo e organiza a logística. O
Ministério aprovando, a gente começa a trabalhar no mês seguinte.
ARede • O que você tem visto por aí? Os projetos trazem benefícios efetivos nas comunidades?
Banto • Tem de tudo. Alguns são muito avançados, como a Casa de Cultura
Tainã (em Campinas), onde acontecem mil coisas. Outros estão
desligados. Agora, temos um sistema que acompanha o nível de utilização
do ponto de presença. Se estiver baixo, é um dos critérios de visita. A
gente chega lá e pergunta: “Por que o ponto está parado? Quer saber
como funciona? O computador está quebrado, vamos pôr para funcionar?
Ah, só tem um computador? Então o Gesac pode tentar conseguir mais um”.
Em São Paulo, por exemplo, várias escolas estão ingressando no programa
Intragov, do governo do estado, e recebendo outra conexão. E não usam
mais a antena Gesac. Outros pontos tiveram problema técnico. Em uma
escola de Campinas faltava um roteador. Ainda falta, vamos tentar
resolver. Noutro, a conexão estava muito lenta e desanimava o professor
a levar os alunos para o laboratório. Aí, precisa ver se a conexão está
lenta por causa de configuração do servidor – se tiver Proxy, fica
lento mesmo. Há vários motivos para a subutilização ou não utilização.
Já outros pontos vão muito bem. No Ceará, o pessoal toca notícia o
tempo todo na Teia, há bastante tempo. São bem organizados, o processo
está avançado. No Paraná, um amigo implementador diz que vai visitar as
escolas, e as pessoas já estão esperando fibra óptica, não querem mais
saber de satélite, e fazem um monte de coisas. Em Minas Gerais, também
há parcerias importantes, muitos laboratórios com Linux. Noutro
extremo, estão os lugares onde só há um computador – mas é muito longe,
onde não chega nada, e o ponto é a única conexão. Vamos desligar? Não.
A gente busca a parceria do Banco do Brasil e tenta conseguir mais um
computador.
ARede • Dá para avaliar qual seria a principal barreira, quando os projetos não avançam?
Banto • As pessoas desconhecem as tecnologias, desconhecem o básico.
Sem esse espaço de oficina, o telecentro não vai funcionar. Ou então,
as pessoas só vão acessar Orkut e MSN. A oficina é uma forma de
incrementar. Outra forma é sentar na frente no programa e ir
aprendendo. Não é difícil. As pessoas pensam que é um bicho de sete
cabeças. O nosso maior problema, na inclusão digital, é desconstruir um
discurso que se prolonga há décadas. É o discurso do “somente use”.
Quem quer, realmente, interferir socialmente, no processo de inclusão
digital, vai bater com isso, que é desconstruir esse discurso. Vai ter
de discutir – o que é esse fácil? Esse fácil vai deixar você
dependente. Nós queremos você autônomo, independente. Vai doer, é
lento, vai exigir esforço. E o educador precisa entender, também, a
diferença de velocidade de aprendizado de cada pessoa. Precisa romper
um monte de coisas. É doloroso, demora.
Mas, quando a comunidade aprende a aprender, desenvolve-se rapidamente.
Os alunos pegam qualquer programa, vão mexendo, fica fácil. A lógica do
software proprietário impede isso. Porque a lógica dele é: você só
aperta aqui, que a gente faz tudo. Quando a pessoa vai lidar com outra
ferramenta, tem dificuldade. Quem usa Windows e vai mexer com Linux
enfrenta um problema. Há quem diga nas oficinas, de brincadeira: se
mudar a cor do mato, o burro passa fome. No navegador web, a opção de
digitar o endereço é a mesma, a de parar é a mesma, a de atualizar é a
mesma. Só porque mudou a localização ou a cor do botão, a pessoa se
perde. Quem mexe com editor de texto livre desde o começo, aprende a
entender a lógica do programa e se vira bem com qualquer um.
ARede • Você se lembra de algum episódio em que a apropriação tecnológica tenha acontecido e onde não?
Banto • Numa oficina em Guarulhos, recente, montei minha grade de
atividades, e no último dos três dias, não precisei fazer mais nada. A
galera aprendeu tudo. As perguntas eram focadas. Por exemplo, queriam
saber como fazer, com HTML, um site interativo para RPG. Expliquei que
não dava, que era necessário um programa dinâmico, como o PHP. Quando
vi, eles já estavam com as páginas abertas, mostrando como programar em
PHP. Noutros lugares, não é assim. Por exemplo, numa oficina de lista
de discussão, depois de um mês, não veio nenhuma mensagem. Nesse caso,
temos de fazer uma autocrítica. As pessoas nunca viram essa ferramenta.
Ela aparece, e aí? O que eu faço com isso na minha vida, como isso pode
me ajudar? A questão é a da apropriação mesmo.
No caso do Gesac, existem os implementadores da área, que vão visitar
os pontos. E, em geral, são pessoas da comunidade, que têm vontade de
aprender e incentivam. Nos lugares onde não há essa pessoa, um
animador, às vezes, o laboratório fica muito subutilizado. Nesse
sentido, alguns dos seviços do Gesac são justamente para procurar
ajuda. Se você tiver dúvida, manda e-mail para o implementador, entra
no Jabber (para troca de mensagens instantâneas), manda mensagem no
Rau-Tu, liga no 0800, ou telefona para a gente, que a gente vai fazer
uma visita. A idéia é que as comunidades usem os recursos de
comunicação. E que o implementador preencha esse vazio. O conselho
gestor também é uma coisa legal.
ARede • Você tem visto muitos conselhos formados?
Banto • Não. Vi dois, na Casa Brasil. Mas, em alguns lugares, não
precisa, porque já existe outra forma de organização. Em Nuporanga
(SP), numa escola, a coordenadora é superanimada, tem uns educandos que
ficam agitando, a diretora deixa o laboratório aberto. E as coisas
simplesmente acontecem. Mas falta muito isso. O papel de um monitor,
implementador, que fique próximo ou diariamente no local. Se esperamos
que o telecentro tenha a perspectiva de mudança das coisas, é
necessário um animador de festa e que domine a tecnologia. Porque não
adianta ter as idéias e não saber como fazer.
ARede • E há muita gente dominando as ferramentas para dar conta dessa demanda?
Banto • Poucos. Por isso, fico viajando para cima e para baixo. É uma
coisa nova. Além de ser nova para quem trabalha com tecnologia, para
quem trabalha com inclusão digital também. Poucos grupos têm um projeto
político-pedagógico. Tem gente que monta um laboratório, coloca acesso
à internet, e pronto. Mas já são muitas experiências que, agora, vão
incorporando a questão do software livre. Uma pessoa faz oficina, dá
para a outra, que faz oficina também, e assim por diante. Esse
descontrole social é fantástico.
ARede • As iniciativas se articulam entre si ou, por exemplo, com rádios comunitárias?
Banto • Muito pouco. Um ou outro caso, como na Bahia, onde eles têm um
trabalho bom de rádio. Todas as ferramentas do Gesac são para criação
de uma rede. Desde o correio até VoIP, para que todos os pontos de
presença se comuniquem. Mas é um processo que se constrói aos poucos.
Essa rede não vai ser feita de um dia para o outro. Mas a gente
instiga. Há casos extremos. Escolas em que os diretores trancam o
laboratório. A gente conversa, tenta convencê-los a abrir. Se não dá,
desvincula o projeto. Manda para outro lugar. Porque o Gesac custa
caro. Isso já aconteceu muito.
ARede • Soube da idéia que surgiu no Minicom de não incluir, no próximo edital do Gesac, a obrigação de ter implementadores?
Banto • O sucesso do Gesac depende dos implementadores. Seria um desastre. Não vão fazer isso, a não ser que o projeto acabe.