Entrevista: Cláudio Prado
Prado, coordenador de Políticas Digitais do Ministério da Cultura, é
chamado de “o velho” pelos jovens que participam do programa Cultura
Digital – seu objetivo é implantar uma rede de produção de multimídia e
espaços de reciclagem nos Pontos de Cultura (veja a reportagem “A rede
vai aonde a cultura está”, no número 1 d’ARede).
Com 61 anos, Prado é mais velho que a maioria das pessoas que
trabalham com ele. Uma sintonia de idéias os colocou no mesmo tempo e
lugar. Militam pela descentralização – logo, pela diversidade – da
produção cultural. Criam formas de apropriação da tecnologia
pelos brasileiros excluídos, com o uso de software livre e de
computadores reciclados pelo MetaReciclagem (veja a página 10). Nos
anos 70, Prado produzia festivais de rock e circulava nos meios da
contracultura – de acordo com o dicionário, subcultura que rejeita e
questiona valores e práticas da cultura dominante da qual faz
parte. Participou do tropicalismo, que “colocou tecnologia na música
brasileira”. Hoje, quer “colocar a tecnologia na cultura” e
democratizar o acesso aos bens culturais criados no contexto digital.
Também batalha para convencer seus jovens colaboradores de que vale a
pena estar dentro do governo, para criar espaços públicos – nem
estatais, nem privados, mas apropriados pelos cidadãos – para a
cultura. O inimigo é o desgaste causado pela política econômica, que
desviou 50% do orçamento de R$ 480 milhões do Ministério da Cultura
para fazer superávit primário. Não há somente conversas sérias nessa
roda, no entanto. Quando o encontram, moços e moças perguntam ao
parceiro: “E aí, velho, vamos sair de balada?” Patrícia Cornils
![](https://www.acervo.arede.inf.br/wp-content/uploads/2005/05/entrevista1.jpg)
ARede –
Como se explica esse movimento que mistura cultura, software livre, internet?Cláudio Prado – Estamos partindo para a terceira geração, a terceira
onda da inclusão digital. A primeira trazia a compreensão equivocada de
que sem informática as pessoas não seriam ninguém. Valorizava o acesso
ao computador desde o ponto de vista da informática. A segunda é
a onda da internet e do software livre, é a geração que está aqui. Ela
criou um conceito polêmico, o de que não há possibilidade de inclusão a
não ser com software livre. Essa onda trabalha com a internet em banda
estreita, com texto. A terceira onda é a nossa proposta, cujos
paradigmas são o uso do software livre e a necessidade de uma política
pública de banda larga.
ARede – O que fazer com software livre e banda larga, para apoiar a inclusão social?
Cláudio Prado – Nosso modelo pretende dar condições para que as pessoas
gerem e editem sua produção multimídia e a coloquem no ar – na
ponta da banda larga, portanto, colocamos um estúdio multimídia.
Além disso, tem a produção de software, a programação, que também
utiliza linguagens. Esses cinco tipos de linguagens – texto, imagem,
som, imagem em movimento e software – são intercambiáveis. Um
locus (local) de inclusão é um espaço onde seja possível se alfabetizar
nessas linguagens. Essa é a essência da terceira geração. Essas novas
linguagens são os meios de produção da era digital. E o
componente político por trás dessa era é que a tecnologia digital é
essencialmente anárquica. Ela elimina o intermediário que, no comércio
e na distribuição, é a essência da realidade capitalista.
ARede – Você pode dar um exemplo concreto?
Cláudio Prado – Um exemplo é música, mas isso é verdade para qualquer
outra dessas linguagens. Gravar uma música é transformá-la em
bits e bytes. Mas para se transformar em um produto, um objeto
industrial, ela volta ao sistema analógico e o que acontece é de
um ridículo monstruoso. Imagine caminhões levando troncos para uma
fábrica de celulose, outros que levam celulose para fábricas de papel,
outros transportam químicos para fazer plásticos que, por sua
vez, serão transportados para as fábricas onde a música chegou pela
internet para ser impressa em CDs. Mais toneladas de gasolina,
horas de trânsito e fumaça vão transportar tudo isso para
distribuidores e lojas de discos. Pela banda larga, com um clique, tudo
chega diretamente a quem quiser ouvir. Inclusive o que jamais chegou,
por ser inviável, porque a diversidade não está contida nesse
sistema. Esse sistema é um funil perverso e a banda larga é a sua
antítese. O brasileiro que toca viola no sul do Maranhão, para
“ser alguém” na música, vem penar no eixo Rio-São Paulo, cair na mão de
uma gravadora, no funil que elimina pessoas e que também pode ser
chamado de “mercado”. Com banda larga, ele poderá disponibilizar sua
produção da forma que escolher – de graça ou recebendo por ela. A banda
larga elimina os caminhões e estimula a diversidade. Sonhamos com
a possibilidade de fazer vazar os recursos represados no Fust e usá-los
somente para banda larga. O fato de o fundo ter crescido tanto, em
volume de recursos, paradoxalmente dificulta sua liberação. É
necessário uma barganha política para apagar o que há lá e começar tudo
de novo – e vai valer a pena.
ARede • E qual a importância do software livre nesse processo?
Cláudio Prado • É importante entender a história do software livre. Ele
existe porque um hippie maluco, chamado Richard Stallman, precisou,
quando era pesquisador do MIT (Massachusetts Institute of Technology,
um dos principais pólos de tecnologia dos EUA), do código-fonte do
sistema operacional de uma impressora da Xerox. Stallman foi
candidamente pedir à Xerox que liberasse o códigopara modificá-lo
e usar a máquina em determinada pesquisa. E a Xerox disse não, com uma
candura capitalista recíproca, porque o que eles vendiam dependia de
segredos contidos naquele código-fonte. De posse do código,
qualquer um poderia fazer uma impressora Xerox.
Richard Stallman rodou a baiana e decidiu construir um sistema
operacional aberto – uma encrenca universal, algo difícil, complicado,
impossível pela lógica capitalista. O preço de desenvolvimento e o
esforço são monstruosos. A proposição de Stallman era quixotesca, mas
ele acreditou que não era o único sonhador e encontrou outros
malucos delirantes que se dispuseram a construir um sistema
colaborativo na internet. Em 13 anos, eles criaram uma instituição da
era digital, que não pertence a ninguém e ameaça efetivamente a
Microsoft. Hoje, existe um sistema operacional consistente, que pode
ser baixado gratuitamente da rede, sem que isso seja considerado
pirataria.
ARede – Até onde vai a influência dessa iniciativa?
Cláudio Prado – A primeira implicação é o fato de que qualquer
idéia pode ter sua viabilidade digital própria, a partir de matrizes
universais que não pertencem a ninguém. Imagine se o alfabeto fosse
patenteado ou protegido por direitos autorais. O alfabeto aparece hoje
na forma de software e linguagens, e a tendência é patentear tudo isso.
ARede – E qual é a alternativa?
Cláudio Prado – O digital pode ser uma extraordinária possibilidade de
democratização do acesso, mas é enxergado pelo sistema analógico, que
quer manter o funil, como uma ferramenta da pirataria. É preciso criar
um novo modelo de gestão, para que todos os criadores de multimídia
possam viver de sua produção. Quem está interessado no funil
prefere colocar um cadeado no digital. Não há novo modelo de gestão sem
se flexibilizar a idéia de direito autoral, com o uso de licenças como
as do projeto Creative Commons (veja a página 50). O copyright,
na forma atual, reserva todos os direitos. Seu objetivo é proteger o
autor. Na prática, no entanto, ele faz a produção cultural desaparecer
de circulação e elimina a possibilidade de as pessoas verem
coisas – em nome de uma defesa autoral que não tem possibilidade de
render nenhum centavo para o autor. De novo, é o interesse do funil que
prevalece, é ele que defende o direito autoral do jeito que está.
ARede – Como se dá, na prática, a superação das barreiras da exclusão, nas comunidades de baixa renda?
Cláudio Prado – São duas as grandes barreiras: a idéia de que o
aparato tecnológico é caro, inacessível, e a idéia de que é muito
difícil, é coisa só para quem tem muito estudo. Descobrimos, porém, que
em uma comunidade qualquer, se desmontamos um computador com um
grupo de pessoas, uma parte delas, principalmente as crianças, descobre
em um átimo que aquilo é uma máquina simples, um Lego de 15 ou 20
peças. Isso derruba a exclusão do “é muito difícil”, porque quem
faz a primeira pergunta, para encaixar a primeira peça, se inclui.
Ninguém precisa estudar anos para entender e usar um computador,
não há necessidade de se formar, como em uma escola analógica. Também
pode-se desmistificar o caro, porque, a cada geração, os preços de
tecnologia caem de forma vertiginosa. Há um ou dois anos, uma câmera
digital ou um telefone celular custaria, cada um, US$ 500. Um
celular de ponta é um estúdio multimídia: pode produzir e publicar
áudio e vídeo. Hoje, custa mais ou menos o mesmo que um tênis de
marca. Os dois são objetos de desejo e consumo. Essa fronteira entre o
consumo e o ativismo é nova, criada pelo mundo digital.
Para Prado, o computador é mais simples do que parece.