Entrevista – O importante é ler


José Castilho Marques Neto, diretor-presidente da Fundação Editora Unesp, conta as novidades no mercado de livros eletrônicos e alerta: “Um aparato tecnológico não transforma uma pessoa em leitora”.






Os livros eletrônicos podem ser um meio mas não são o principal agente na formação de leitores. Áurea Lopes

ARede nº59, junho 2010 –Todos os 28 campi da Universidade Estadual Paulista (Unesp) – e o restante do mundo! – agora têm disponíveis os livros resultantes da produção acadêmica da instituição, para ser baixados, lidos na tela ou impressos, de graça. A Fundação Editora Unesp foi pioneira na oferta de livros eletrônicos no Brasil. Em março deste ano, lançou o selo Cultura Acadêmica, com 44 títulos inéditos em formato PDF.

O site do programa já tem 17 mil usuários cadastrados e 30 mil downloads. Mas a editora não para por aí: até o final do ano, também vai comercializar 58 títulos sob demanda. O leitor faz o pedido online e recebe pelo correio a obra impressa. As duas iniciativas ocorrem na gestão de José Castilho Marques Neto na presidência da Editora e decorrem de sua entusiástica percepção da tecnologia como ferramenta de democratização de acesso à leitura. No entanto, diz ele, leitores se fazem com políticas públicas de inclusão, professores preparados, famílias que estimulem o prazer de ler.

“O livro em papel não vai acabar”, garante Castilho, convencido de que, mesmo no formato digital, as funções do editor de conteúdo – e das casas editoras – vai sobreviver. Ele já contou até 16 diferentes suportes eletrônicos para texto (do iPad ao Kindle e muitos outros), mas não tem pressa para mergulhar nesse mercado. “Está tudo sendo inventado”, adverte, “e o mundo acadêmico nos ensina a ter a paciência de esperar pelas definições. Nós só demos os primeiros passos.”

Recente pesquisa realizada pela Câmara Brasileira do Livro mostrou que 77 milhões de brasileiros não têm o hábito de ler. O livro digital pode contribuir para formar leitores?
José Castilho Marques Neto – Eu acredito bastante nessa possibilidade, porque a tecnologia facilita e democratiza o acesso à leitura. Hoje, quando se fala no direito à leitura, obviamente se está falando no acesso às novas tecnologias como um direito também. No entanto, temos ainda muito a fazer, em outras áreas básicas, para desenvolver leitores. Um aparato eletrônico não vai transformar uma pessoa em leitor. Se você der um dispositivo de leitura eletrônica a uma pessoa que não tem o prazer da leitura, ela não vai fazer nada com aquilo. Não vai ser estimulada a ler só porque tem um aparelhinho diferente na mão. O computador, a internet, são ferramentas importantíssimas para quem já é leitor. Ou dentro da estratégia de construção de leitores, mas segundo um projeto pedagógico consistente, para formar leitores. E, para formar leitores, é preciso o professor que orienta, a família que dá o exemplo, políticas públicas de bibliotecas acessíveis, em locais prazerosos. O hábito é desenvolvido pela própria leitura. Por isso, é preciso oferecer leitura, de todas as formas, em papel, digital… e as bibliotecas têm de estar preparadas para isso. Para oferecer o que o leitor quer ler.

O que existe, hoje, em termos de livros digitais?
Castilho – Temos muito pouco, mas já estamos vendo algumas iniciativas importantes, como o movimento internacional do Google, de digitalização de acervos públicos. Aqui no Brasil, a Livraria Saraiva criou um programa de venda de livros digitais online, do qual a Fundação Editora da Unesp participa. Também temos algumas editoras exclusivamente de livros digitais, mas tudo isso representa zero vírgula alguma coisa do mercado editorial.

Como é o Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, da Fundação Editora Unesp?
Castilho – A Unesp foi a primeira universidade brasileira a oferecer livros digitais gratuitos. O programa começou dentro da Editora Unesp, que tem como missão exatamente buscar leitores. Ao contrário de outras editoras comerciais, nós trabalhamos para atender o leitor e não necessariamente para satisfazer o autor ou as exigências do mercado. A partir do momento em que nós recebemos os textos oferecidos por professores, sobre pesquisas interessantes, nas mais variadas áreas, a nossa obsessão é de que esse conteúdo chegue ao leitor da melhor maneira: editado, paginado, revisado, ou seja, trabalhado do ponto de vista editorial e gráfico. O projeto editorial, que já está consagrado no mundo do papel, se estendeu ao ambiente digital. Em março deste ano, foi criado o selo Cultura Acadêmica, que lançou 44 títulos inéditos feitos para o formato digital. São obras nas áreas de Ciências Humanas, Ciências Sociais e Aplicadas, Linguística, Letras e Artes. Estão todas disponíveis para download gratuito no site www.culturaacademica.com.br. Hoje, já são quase 17 mil usuários cadastrados, com cerca de 30 mil downloads. Isso representa uma média de 1.500 a 2.000 downloads por título.

Qual o modelo de livro digital mais viável para o Brasil?
Castilho – Eu participo dessa discussão desde o ano 2000. Nessa época, em um congresso internacional de editores, um representante da Microsoft disse que, em 2014, as bibliotecas, como nós as conhecemos, iriam se tornar charmosos objetos antigos. Que só existiriam livros digitais, as consultas seriam online. Agora, depois de todos esses anos, há mais dúvidas do que certezas. Só temos certeza do óbvio: que o livro digital é importante, que veio pra ficar e que a convivência com o livro de papel vai continuar. Entre as dúvidas, estão os desdobramentos da tecnologia, por exemplo. A fase atual é de experimentação. Na última conta que eu fiz, havia pelo menos 16 aparatos para leitura eletrônica. E isso tudo é lançado no mercado como se fosse definitivo. Mas definitivo, por enquanto, na área da leitura, é só o livro em papel. Existe muita especulação, experimentos, lançamentos, mas por enquanto ninguém sabe como vai ser, o que vai acontecer nesse mercado… Por isso, não precisamos nos desesperar em definir agora uma forma de participação no mercado de leitura digital, com receio de que o livro em papel vá acabar, porque não vai. Muito pelo contrário, nunca se leu tanto. Só estão surgindo suportes diferentes. As coisas ainda estão sendo inventadas. E nós temos de ter tranquilidade para avaliar o que vem pela frente.

Por que a editora escolheu o formato PDF?
Castilho – Nós passamos um bom tempo discutindo sobre as tecnologias disponíveis, possíveis, mais adequadas, se seria melhor produzir para o Kindle, para o iPad… Mas aí resolvemos parar de discutir e fazer, até como uma forma de colaborar com a discussão. Decidimos por fazer as publicações em PDF, que é o que nós sabemos fazer, pode ser visto na tela de uma máquina da faculdade e é fácil de imprimir. Eu acho que a vivência acadêmica – muitas vezes criticada pela lentidão dos processos, o que não é mentira! – neste caso está sendo positiva. Está nos ajudando, neste projeto, a ter paciência para aguardar o amadurecimento do conceito de livro digital.

Fazer livros eletrônicos no mesmo formato dos impressos não é subaproveitar o potencial dessa mídia?
Castilho – Como eu disse, nós demos o primeiro passo. Estamos fazendo um teste não só de leitura de livro digital, mas da produção  de um novo modelo de negócio. É claro que as possibilidades dessa mídia são infinitas e vai chegar um momento em que nós vamos ter de fazer escolhas. Eu acredito que, quando você tem uma página escrita na sua frente, você tem uma relação com esse texto, com o autor e com você mesmo. Você interage com o texto e aquilo volta para você. Hoje, existem instrumentos que podem ampliar essa relação. Você clica em uma palavra, entra em um site, que leva para outro… É importante essa mobilidade? Sim, para quem quer fazer esse tipo de viagem. Mas há os que desejam fazer viagens mais curtas. Ou aqueles cujo limite é a própria subjetividade, não os caminhos que surgem com os hiperlinks. Isso é uma questão conceitual. Estamos falando sobre o conceito de leitura que o leitor tem, sobre o direito e a autonomia de cada leitor. Por mais tecnologia de que se disponha, a leitura vai continuar sendo, do meu ponto de vista, um ato individual, pessoal. Mesmo que eu desfrute da tecnologia, por exemplo, passando um email para o autor, trocando ideias em uma rede de relacionamento com pessoas que estão lendo o mesmo livro… eu vou continuar lendo individualmente. Mas será possível fazer escolhas e isso é ótimo. Então, nós demos apenas o primeiro passo, que é ficar dentro desse contexto leitor e texto, no ambiente digital. Eu acho que é uma forma boa de começar, com aquilo que nós conhecemos.

No programa de download gratuito, como ficam os direitos autorais?
Castilho – Nós respeitamos o direito autoral do escritor e entendemos que tudo que é acordado com o autor deve ser obedecido. Por isso, fizemos um contrato em que o autor cede os direitos para distribuição gratuita. Então, a editora não cobra pelo livro, mas também não pode remunerar o autor. Em especial porque estamos falando da área de publicações acadêmicas, predominantemente pesquisas que têm financiamento público. Dessa forma, a remuneração se traduz em benefícios indiretos que a publicação traz para o autor, como visibilidade, crédito de publicação científica.  Hoje, as publicações em meio eletrônico já são reconhecidas como produção científica pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Naturalmente, esse formato só é possível porque há um investimento da Pró-Reitoria de Pós-Graduação (Propg), que não tem a mesma lógica comercial da Editora Unesp.

Qual a sua avaliação sobre o impacto do download gratuito nas vendas da editora?
Castilho – O programa de livros gratuitos é um braço editorial da Editora da Unesp, não é toda a editora que funciona nesse modelo, que, por sinal, está sendo testado. Amanhã, podemos nos dirigir para um ou para outro caminho. Está aberta a bolsa de apostas. Uns, como eu, acham que a distribuição gratuita vai aumentar a nossa visibilidade, aumentar a circulação de todos os nossos livros, gratuitos e pagos. Mas há uma outra possibilidade, que nós vamos oferecer dentro de dois meses: a venda sob demanda. A editora recebe o pedido online, faz a impressão por demanda e entrega ao livro em papel na casa do comprador. Vamos oferecer 150 títulos, que a Saraiva vai comercializar inicialmente. Mas não temos contrato de exclusividade com a livraria e até pretendemos, a partir dessa iniciativa, construir a nossa própria experiência de venda direta.

O processo de impressão e venda sob demanda não encarece o livro?
Castilho – Hoje, não mais. O livro impresso sob demanda vai ter o mesmo preço da livraria. A impressão digital já chegou a um nível de evolução que permite fazer pequenas tiragens a um custo acessível. Até o final do ano, nós teremos 58 títulos para venda sob demanda – além dos 44 títulos para download gratuito. Outro benefício desse sistema é a possibilidade de atender leitores em todos os pontos onde chega o correio. Se pensarmos na própria Unesp, nós não poderíamos manter uma livraria em cada um dos 28 campi da universidade.

Como é o processo de edição de um livro digital? Há alguma diferença em relação ao livro em papel?
Castilho – Nesse nosso formato, o processo é igualzinho. Tem a produção do texto, a preparação, a revisão, as ilustrações, a composição da página, a capa… tudo igual. Nós queremos que o livro digital tenha o mesmo padrão de qualidade do livro em papel. Até porque, no nosso caso, o foco são os trabalhos acadêmicos. Desde o início do programa, ficou muito claro que a proposta não era, simplesmente, reproduzir o banco de teses da Unesp. Nós fazemos o trabalho de editora em cima desses textos. Tratamos o material de modo a torná-lo mais atrativo para o leitor, interagimos com o autor e extraímos daquele texto a sua melhor forma gráfica, ou digital, para passar a mensagem para o leitor.

As novas tecnologias abrem possibilidades para as pessoas publicarem e divulgarem suas próprias produções. Isso muda paradigmas no mundo editorial?
Castilho – Não há dúvida de que a tecnologia atual favorece a produção. Hoje é bastante fácil alguém ir a um birô e fazer 500 cópias de um livro que escreveu. Ou escrever um livro e postar em um blog. Mas não é a mesma coisa que entregar esse texto para uma editora profissional. Até por esse crescimento da oferta, cada vez mais vai ser preciso ter pessoas com competência para separar aquilo que é uma produção satisfatória do que não é satisfatório. Com um olhar profissional. Trabalhar os conteúdos é uma função que eu não acredito que venha a ser descartada. Que as pessoas estão escrevendo, postando nos seus blogs, claro que estão! É outro nicho, um movimento natural, dentro do cenário da inclusão digital, da democratização da comunicação, do acesso às tecnologias.

Os livros eletrônicos vão seguir o caminho dos celulares, que incorporaram múltiplas funções?
Castilho – Eu acredito que sim. E já tenho visto muitas pessoas colocarem documentos para ler no Kindle. Isso mostra novamente que as possibilidades ainda estão surgindo. E que também nós, editores, temos de tomar cuidado para não nos deixarmos influenciar pela ansiedade e pela pressão dos marqueteiros e vendedores de
hardware e de software. Porque todo dia tem alguém querendo vender um dispositivo novo. Eu acho que nós temos de nos concentrar na questão do conteúdo. Não adianta ter um equipamento com sofisticadas funções, pois não é só isso que vai estimular a leitura.

José Castilho Marques Neto é diretor-presidente da Fundação Editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e secretário-executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura.

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Do inglês Portable Document Format (formato portátil de documento): um padrão aberto para representar documentos de maneira independente do aplicativo.