Entrevista – O movimento popular quer a primeira divisão

O coordenador do Centro de Profissionalização de Adolescentes (CPA) Padre Bello, Flariston Francisco da Silva, quer que as entidades comunitárias saiam da “segunda divisão” do terceiro setor e passem a ter poder de decisão.

Verônica Couto

O terceiro setor avança, mas deve
enfrentar uma fratura interna, que separa, de um lado, grandes
institutos e fundações, e, de outro, as organizações do movimento
popular. A avaliação é de Flariston Francisco da Silva, coordenador do
Centro de Profissionalização de Adolescentes (CPA) Padre Bello, e que
dedicou a vida a se tornar uma liderança comunitária.

Ele adverte que, como no campeonato brasileiro de futebol, o terceiro
setor ainda se divide em primeira e segunda divisão. Nesta última, as
entidades de base comunitárias, que continuam distantes das mesas em
que se definem os critérios de aplicação dos recursos. Para conquistar
a participação nas decisões, ele defende a abertura desse debate, ao
lado da profissionalização crescente das entidades. A ponte ligando
universidades e movimento popular, diz ele, também deve ser
reconstruída.

Nesse sentido, Flariston começou, este ano, um MBA em Gestão de
Projetos Sociais, da Fundação Instituto de Administração (FIA/USP), com
bolsa da universidade (30%) e recursos do banco J.P. Morgan e da ACJ
Brasil. O educador Antônio Carlos Gomes da Costa também o incluiu no
grupo de 39 líderes comunitários que fizeram, em março, imersão de uma
semana para apoiar a criação de uma fundação – baseada na ação de
“líderes para formar líderes”.

A formação de Flariston se deu nas
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da igreja católica, onde, em São
Mateus, na zona leste de São Paulo, atuou desde os 13 anos. E onde
conheceu a pedagogia de Paulo Freire e a Teologia da Libertação. Com o
esvaziamento das práticas populares da igreja, no final da década de
80, Flariston se engaja, de vez, na causa da criança e do adolescente.


ARede •
Um educador, um militante, como você se define?

Flariston •
Sou uma liderança comunitária. E a ação educativa é um
componente da definição de líder comunitário, assim como a de gestor de
projetos, ações e grupos é outro.


ARede •
Como foi a sua formação?

"Os conhecimentos e tudo mais
que se conseguisse acumular, a
serviço da transformação da
sociedade".

Flariston •
A parte mais importante talvez tenha sido nas Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) da igreja católica. Por volta dos 13 anos, foi
um divisor de águas. Ali, eu inicio a experiência de coordenar grupos
de adolescentes, de representá-los junto à comunidade. Além disso, foi
importante ter sido capacitado numa metodologia libertadora, e sendo
respeitado em outras instâncias de representação da comunidade. Muito
do que acumulei na minha história, o conjunto de princípios, valores, e
técnicas para coordenar e para ser gestor e educador, tem raízes nesses
primeiros anos.

Recordo a aproximação das CEBs com as então chamadas Comunidades
Universitárias de Base (CUBs), principalmente a partir do grupo da PUC
(Pontifícia Universidade Católica-SP), com professores como Maria
Estela Graciani e Jair Militão da Silva, entre outros, que buscavam
fazer uma ponte entre academia e os grupos de base, tendo como
referência o educador Paulo Freire. Havia uma base teórica na Teologia
da Libertação. Aconteceu aí, na minha adolescência, a identificação do
Cristo revolucionário e de uma proposta revolucionária, que foram
determinantes no início de um projeto de vida. O que se desenhava, para
mim, é que os conhecimentos e tudo o mais que se conseguisse acumular
precisariam estar a serviço da transformação da sociedade e das
realidades de injustiça. Esses são os princípios fundamentais que
começavam a se formar. Estive ligado às CEBs e à Pastoral da Juventude
durante toda a década de 80. Porque a década de 90 traz outro marco – o
Estatuto da Criança e do Adolescente (de 13 de julho de 1990).


ARede •
Não existia o CPA?

Flariston •
Não. Na época, era CPT-Centro Profissional do Trabalhador.
Em 1993, fui convidado para participar de um grupo que deveria fazer o
redesenho do CPT, vinculado a uma entidade da igreja católica – a Ação
Comunitária Paroquial Jardim Colonial. A diretoria questionava se o CPT
havia se distanciado da sua missão original, de formação para a
cidadania, tendo a capacitação técnica (principalmente na área de
mecânica) como oportunidade de o trabalhador ingressar no mercado de
trabalho. Um dos padres da diretoria chegou a afirmar: “se é para
ensinar os jovens a descascar ferro, é melhor fechar”.

Reescrevemos o projeto e, para nossa surpresa, no início de 94, a
prefeitura de São Paulo o aprovou na íntegra. A idéia era triplicar o
número de jovens atendidos (cerca de 500, atualmente), multiplicar a
equipe (40 pessoas, hoje), e trazer a ênfase para a cidadania. O CPT
havia nascido para trabalhadores adultos, e nós iríamos radicalizar o
foco com jovens e adolescentes. Por isso, a sigla mudou para CPA –
Centro de Profissionalização de Adolescentes. Reconstruímos a
metodologia e reduzimos a dependência financeira do poder público, de
100%, em 94, para, atualmente, cerca de 50%, com outros parceiros.
Mantendo a perspectiva de influenciar políticas públicas de e para a
juventude. Como ação estratégia, atuamos em rede com a Pastoral do
Menor e com outras organizações para o fortalecimento do Fórum de
Defesa dos Direitos da Criança de São Mateus.


ARede •
Como é a relação com os financiadores?

Flariston •
A cada dia é mais complexa. No início, a ação das empresas,
institutos e fundações era, em grande parte, como um balcão de
aprovação de financiamento. Poucos discutiam a concepção dos projetos e
a formação de redes com as organizações. Mas sempre acreditamos que, se
estivermos seguros da nossa missão e nossa metodologia, podemos nos
relacionar com qualquer parceiro. O CPA pauta-se por trabalhadores
vivenciando um processo coletivo de construção de conhecimento, em uma
relação de igual e na perspectiva de transformação social, sob uma
ótica de classe, que considera essa transformação necessária para os
trabalhadores. No caso do Senai, por exemplo, ele se estrutura a partir
da necessidade da indústria, o que não impede a parceria, porque os
nossos princípios estão preservados. Também no meio empresarial,
tivemos parceiros como o Instituto C&A, Fundação Abrinq, o Comitê
Betinho dos Trabalhadores do Banespa. E fomos aprendendo a dialogar com
esses espaços e a fazer parte de uma rede. Percebemos que as entidades
que passam a estar nos bancos de dados e nas cabeças dos financiadores
têm mais oportunidades. E eles também foram amadurecendo a atuação em
redes entre eles.


ARede •
Quais são esses princípios, de que vocês não abrem mão?

"É preciso colocar em rede as
diferentes ações de inclusão
digital".

Flariston •
Uma ação pedagógica que busca não só competências
produtivas, mas que se preocupa com competências pessoais, relacionais,
cognitivas e empreendedoras, inclusive no sentido de governar a sua
vida, sua cidade, de se sentir sujeito da sua história. Sempre pautado
em valores como a ética e a solidariedade. Isso significa trabalhar com
pequenas turmas e grupos em roda, o que é determinante para que os
jovens possam acreditar em si mesmos e se sintam sujeitos do seu
processo social. É um pré-requisito de gestão. Conhecemos uma
consultora no Instituto C&A, que, ao nos apresentar para o J.P
Morgan, parceiro desde 99, chamou atenção para o que o banco deveria
buscar em parceiros não-governamentais: os três Is – I de idéias; I de
instituição – seus princípios e práticas; e I de indivíduos – porque,
se não houver indivíduos que façam as coisas acontecerem, não basta ter
idéias e nem instituição.

Esse diálogo nos mostrou que devemos nos qualificar na concepção de
idéias; na elaboração de projetos que expressem com clareza as nossas
intenções, e na capacidade de produzir resultados. Nossos esforços têm
sido para buscar essas competências, sem perder as nossas
características básicas. Ou seja, não incorporamos técnicas nem
metodologias em detrimento dos nossos princípios. Por exemplo, o
processo de seleção da equipe envolve experiência na área, mas
prioritariamente visão de mundo, militância e compromisso histórico com
a causa da organização. Já tivemos muitas brigas com parceiros que
exigiam a contratação de pessoas com curso superior. Mudamos as regras
deles. A coordenação não é sinal de poder hierárquico, é a
responsabilidade de colocar todo o time a par das questões para
decidirmos juntos. Por isso, as decisões são tomadas de forma mais
lenta. Temos convênio com a prefeitura de São Paulo há 12 anos, e
sempre conseguimos fazer prevalecer o nosso modelo. Outro exemplo
clássico foi com a Fundação Abrinq e com HP, no programa Garagem
Digital. Passados três anos, o Garagem Digital que a Fundação Abrinq e
a HP replicam, hoje, por exemplo, no Ceará, preserva seu modelo de
origem, mas tem muito do que foi construído dentro do CPA. Por exemplo,
o Garagem previa somente os módulos de formação dos jovens. Incorpora,
no CPA, a idéia do acesso livre da comunidade e a preocupação de a
inclusão digital contribuir para o desenvolvimento local. Criamos, no
CPA, as Rodas de Inclusão Digital, que também foram levadas para as
experiências do Ceará.

As Rodas são uma metodologia de mobilização local de atores sociais e
de OnGs, da iniciativa privada e de governo que se preocupem com
inclusão digital. Encontros mensais, que fazem com que haja,
continuamente, o mapeamento do que existe de inclusão digital naquela
localidade. Na troca de experiências, é possível conhecer o que o outro
faz e indicar ações conjuntas. Em São Mateus, há OnGs conectadas na
internet; quase todas as escolas estaduais têm computador; as
municipais ainda não se sabe, porque não estão em rede com as
estaduais, que também não falam com a rede das OnGs.

A Casa dos Meninos, ligada ao Instituto Lidas, está mapeando as
iniciativas e as estruturas para inclusão digital na região – escolas,
telecentros municipais, infocentros estaduais, teleCEUs (telecentros em
Centros Educacionais Unificados), OnGs – há sete centros de
qualificação profissional, além daquelas com projetos autônomos. Nada
disso se comunica. É preciso colocar em rede, discutir, trocar
metodologias. Podemos descobrir que há escolas com laboratórios
fechados, por falta de monitores, e centros de capacitação com jovens
prontos para atuar como educadores.


ARede •
Por que os programas de inclusão digital são relevantes?

Flariston •
Cumprem um papel fundamental. Primeiro, garantir aos jovens
o direito de acessar a tecnologia, como elemento determinante para o
seu desenvolvimento. A segunda questão é refletir com o jovem sobre
toda ação de inclusão digital – qual a potencialidade e para que serve
o acesso à tecnologia. Exatamente, porque é determinante no mundo, o
jovem deve analisar o que é que tem a ver com o seu projeto de vida.
Por isso, não basta dispor só de equipamentos; a internet deve estar
presente.

Procuramos não ser meros usuários com entendimento ampliado. Mas
considerar a tecnologia no que diz respeito a conteúdos, com os quais
posso contribuir, a partir da minha visão do mundo e do meu
entendimento, para me tornar produtor. Assim como posso ser produtor na
perspectiva da geração de renda. Daí se desdobram ações de
empreendimentos, como a Cooperjovem. Embora alguns jovens se aprofundem
mais na informática, todos no CPA, independente de estarem no curso de
mecânica ou de eletricidade, vão passar por um processo de inclusão
digital. Por um lado, porque acreditamos que é uma linguagem que deve
estar incorporada a qualquer área profissional; e, por outro, para
qualificar a sua relação com o mundo.


ARede •
As metodologias do CPA estão sistematizadas e disponíveis?

Flariston •
Menos sistematizadas do que gostaríamos. Mas avançamos na
qualificação dos serviços. Entre 1999 e 2002, tinha-se a impressão de
que o CPA estava jogando legal, mas na segunda divisão das OnGs. Como
no futebol, a segunda divisão não tem holofotes, nem recursos. Então
resolvemos: precisamos ser campeões, e jogar na primeira divisão. O
banco J.P. Morgan pagou uma consultoria e apoiou um processo de
formação e planejamento interno, envolvendo toda a equipe, para
repensar o CPA e nossa prática.


ARede •
Como se renovam as lideranças?

Flariston •
Desde então, fazemos um investimento interno continuado. A
formação de lideranças acontece, principalmente, dentro do CPA, mas em
diálogo constante com os movimentos sociais. Fazemos muitas reuniões –
duas ou três vezes na semana, com função de articulação interna e de
formação. Uma vez por mês, não atendemos jovens e passamos o dia
inteiro com toda a equipe para planejamento, avaliação e capacitação.


ARede •
Não há muita baixa? Os jovens se formam e saem para tocar seus projetos individuais?

"As organizações de
base comunitária estão
distantes do poder de
decisão".

Flariston •
Isso é natural, mas, nos últimos 12 anos, conseguimos uma
baixa rotatividade. Claro que é um desafio, porque a busca de
sustentabilidade continua. Você precisa criar condições  para o
desenvolvimento pessoal. E são pouquíssimas OnGs que conseguem, hoje,
apresentar um plano de carreira, uma proposta de desenvolvimento
pessoal, profissional, de ganho financeiro a longo prazo. Para isso,
muitas vezes, é preciso comprar briga dentro da própria organização,
para assegurar patamares salariais.

Mesmo junto a empresas, institutos ou órgãos de governo, deve-se pensar
na questão dos custos dos projetos sociais de qualidade. O governo cada
vez está fazendo menos, mas, quando olha para as OnGs, olha na sentido
de que conseguiremos fazer mais, com um custo menor e, ao mesmo tempo,
com garantia de qualidade. As empresas também trazem uma lógica, que
não é a governamental – do Estado mínimo, mas é a empresarial que, se
não é ter lucro, é como produzir mais com custo menor. E como se
concilia essa perspectiva com a necessidade de manter a equipe? Muitas
vezes, transfere-se para a OnG a responsabilidade de gerar renda ou
captar recursos para complementar os custos.


ARede •
Pode-se dizer que as OnGs, hoje, são vitais para execução de
políticas públicas em áreas em que o Estado ainda não criou,
historicamente, infra-estrutura para dar conta das demandas?


Flariston •
Sim. E acho que as OnGs também devem se qualificar, para
poderem, cada vez mais, discutir em um novo patamar; rever e
estabelecer novos marcos legais, novas formas de contratos. E 
também para ter projetos mais qualificados, pautados cada vez mais em
dados de pesquisa, cada vez mais focados em produzir resultados
concretos. À medida que as OnGs avançam nessa direção, podem desfazer a
imagem de meras executoras daquilo que o Estado não quer e a empresa
privada não vai fazer.

Eu vejo o movimento crescente, em institutos e fundações, para
qualificar a sua área de investimento social e, a partir daí,
qualificar as relações com as OnGs, que também aprofundam sua
capacitação. Contudo, em cidades como São Paulo, ainda verifico uma
distinção. Há um terceiro setor, que eu colocaria entre aspas,
organizado e fortalecido, nas áreas de investimento social das
empresas, dos institutos e fundações. Fortalecido a ponto de falar em
nome de terceiro setor da sociedade – que não é governamental e nem tem
fim lucrativo. Mas a grande massa de organização de base comunitária
ainda está distante da definição de políticas públicas. Longe das mesas
de decisão e do direcionamento dos recursos, públicos ou privados. Esse
direcionamento, quando extrapola a mesa do governo, vai para outra
mesa, onde está o terceiro setor das empresas e institutos e fundações.
Isso significa um filtro no acesso aos recursos, que não chegam, em
quanto deveriam, a quem está executando o serviço. O filtro atua no
volume de recursos e também no para que, por que, para quem, para onde.
Esse é um desafio que está colocado.