Entrevista – O país precisa de uma imprensa popular

O jornalista Raimundo Pereira, que denunciou, em reportagem da “Carta Capital”, a manipulação feita para a divulgação do caso “Dossiê” durante as eleições, defende o apoio de partidos de esquerda a um projeto alternativo de mídia.


O jornalista Raimundo Pereira,
que denunciou, em reportagem da “Carta Capital”, a manipulação feita
para a divulgação do caso “Dossiê” durante as eleições, defende o apoio
de partidos de esquerda a um projeto alternativo de mídia.

Lia Ribeiro Dias e Verônica Couto

Com experiência de quatro décadas de jornalismo e passagem pelos
veículos mais importantes da imprensa alternativa — “Opinião” e
“Movimento” —, o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira conseguiu ter
uma intervenção muito relevante na recente campanha eleitoral para
presidente da República. Ele denunciou, na reportagem “A trama que
levou ao segundo turno”, publicada na “Carta Capital”, dia 13 de
outubro, um grande golpe da mídia, que escondeu fatos para apoiar a
candidatura Alckmim.

Raimundo e o jornalista Antonio Carlos Moura fizeram uma precisa
apuração dos fatos relacionados à divulgação das imagens do dinheiro
que seria usado para tentar adquirir um dossiê que incriminaria pessoas
ligadas aos tucanos no esquema de superfaturamento de ambulâncias,
conhecido como Operação Sanguessugas. Na tentativa de compra do dossiê,
duas pessoas ligadas ao PT — Gedimar Passos, ex-agente da Polícia
Federal (PF) que trabalhava na área de informação da campanha do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e Valdebran Padilha, empresário
de Mato Grosso — foram presos em São Paulo, e o dinheiro (R$ 1,75
milhão), apreendido.

A reportagem mostra como a mídia se concentrou apenas em uma ponta da
história — a origem do dinheiro —, abandonando a outra — o envolvimento
de pessoas ligadas aos tucanos na Operação Sanguessugas. Revela que o
delegado da PF Edmilson Bruno, que “vazou” as fotos do dinheiro
apreendido, obteve as imagens de forma irregular e ainda pediu aos
repórteres para dizerem que as fotos tinham sido roubadas. Nenhum dos
veículos, que tinham em mãos a gravação do pedido do delegado,
denunciou a combinação.

A reportagem-denúncia da “Carta Capital” não teve espaço na grande
imprensa, mas foi repercutida à exaustão por blogs na internet e via
e-mail. Nesta entrevista à ARede, Raimundo Pereira analisa o papel da
mídia ligada às grandes empresas de comunicação, e conta como imagina
um veículo de imprensa com expressão nacional, relacionado com projetos
do movimento popular. Além de colaborador da “Carta Capital”, Raimundo
Pereira é diretor do portal “Oficina de Informações”, publica a revista
“Reportagem” e os fascículos “Retrato do Brasil”.


ARede •
Em que medida a mídia comunitária pode contribuir para uma imprensa popular no Brasil?

Raimundo Pereira •
As novas tecnologias criam possibilidades de
comunicação popular, na medida em que o processo de produção se torna
mais barato. Na “Oficina de Informações”, formos de certa forma
pioneiros em entender as novas tecnologias e trabalhar com a internet,
na perspectiva de dar mais voz ao movimento popular. Mas esses projetos
se dão de forma mais ou menos anárquica, não têm organicidade, são
muito pulverizados. Precisamos dar um corpo à imprensa popular.


ARede •
Como fazer isso? Pela articulação, em rede, dos projetos de
comunicação comunitária com os projetos de mídia alternativa (na falta
de outra palavra), como a revista “Carta Capital” e o site “Carta
Maior”?


Raimundo •
A “Oficina de Informações” foi criada em 1997. Nesses dez
anos, adquirimos mais experiência em trabalhar com internet, em tentar
fazer um site com atualização diária. Agora, estamos tentando
reformular. Uma das coisas cruciais é o projeto se apoiar nos projetos
populares organizados. O semanário “Movimento”, editado na década de 70
até o início dos anos 80, foi um jornal desse tipo, de sucursais, de
correspondentes, tinha vinculação com os movimentos populares, e era um
canal para os partidos, então clandestinos, se expressarem. Claro, o
contexto era outro, da ditadura. O país se democratizou, mas, para
termos uma sociedade democrática mais avançada, precisamos de um novo
sistema de imprensa popular, onde o povo, mesmo com ideologias
diversas, se sinta representado e participante.


ARede •
Qual era o objetivo do projeto da “Oficina de Informações”?

Raimundo •
Como vários de nós tinham experiência de mais de 20 anos de
acompanhamento da conjuntura, do dia-a-dia, decidimos produzir um site
com acompanhamento diário dos fatos, além de fazer a revista
“Reportagem”. O objetivo era esse, organizar a informação. Uma
debilidade grande da imprensa popular é que seus projetos de
comunicação são localizados. O movimento popular se junta e tem
propósitos específicos, preocupações específicas, em torno de um
bairro, de um sindicato. Nossa experiência é o contrário, é tentar ver
a conjuntura nacional e mesmo internacional como um todo. Se você
acompanha o movimento, a informação dessa forma como a que estamos
tentando fazer, você não se ilude, quando vem uma campanha como a do
mensalão, que dizia: “O PT é o partido mais corrompido”. Aquilo foi uma
criação da direita, que se aproveitou de problemas reais. Mas o que foi
feito foi manipulação.


ARede •
Você não acredita que seja possível, a partir dos projetos de
mídia comunitária, articular uma imprensa popular de expressão mais
nacional. É isso?


Raimundo •
Tenho participado de debates sobre esse tema junto com o
movimento sindical. Uma das coisas que tenho discutido é que não acho
possível somar os projetos existentes de maneira linear. Pode haver 500
jornais sindicais e não vamos ter uma imprensa popular nacional
importante, que acompanhe as decisões políticas. Para se ter uma
imprensa popular nacional de expressão, é preciso criar um núcleo
apoiado pelos partidos com expressão popular — PT, PCdoB e PSB.
Precisaria um conselho político onde esses três partidos estivessem
representados; apoio político a uma iniciativa dessas. Imagino que essa
iniciativa deve reunir experiências concretas. Por exemplo, Mino Carta
(editor da revista “Carta Capital”) é uma figura importante. O pessoal
da “Caros Amigos” tem uma série de iniciativas. Eu falo do campo
profissional. Movimentos comunitários e populares têm centenas de
publicações, mas não se pode imaginar que coisas que são muito
específicas e não encararam o problema político da informação no país
vão se justapor e criar algo de uma nova qualidade. Porque a
preocupação política nacional e internacional, da cultura nacional e
internacional, da ciência, deve ser a matéria-prima de uma publicação
que vá ganhar a opinião pública popular. Tem que ser criado um fórum
onde bons jornalistas e  intelectuais vejam, nessa publicação, uma
coisa de qualidade, da qual queiram participar. Eu sugeriria contar com
o que já existe e que, nesse período, não entrou na onda da imprensa
das grandes empresas contra o governo Lula.


ARede •
Como uma iniciativa dessas deve se articular com o movimento popular, para não ser uma coisa só de intelectuais?

Raimundo •
O jornalismo ainda é o dia-a-dia. Nós fizemos aquela
experiência de 1984, com o jornal diário “Retrato do Brasil”. Vendemos
4 mil cotas, o lançamento reuniu figuras de peso do campo democrático.
Estavam lá Ulisses Guimarães, do PMDB, Hélio Bicudo, do PT. Naquela
época, praticamente não existia a internet. Hoje, as novas tecnologias
e a internet permitem fazer jornalismo diário de qualidade, com muito
menos recursos. Pode-se começar com algo menor, mas que procure se
conectar com outros núcleos, por meio da rede. Você manda informação
para esses núcleos e deles também recebe informação. Mas é essencial
criar um foco de unidade porque as milhares de iniciativas individuais,
como os blogs, são muito fragmentadas.


ARede •
Você citou experiências de diários como o “Jornal da República”
e o “Retrato do Brasil”. Agora, temos outra experiência de jornal
popular, com outro viés, que é o “Brasil de Fato”. Nenhum alcançou uma
ampla massa de leitores. Você crê que mudaram as condições para que uma
nova iniciativa tenha mais chances de sucesso?


Raimundo •
A primeira questão é os partidos terem uma visão melhor
sobre a política de comunicação. Política e jornalismo popular de alta
qualidade, jornal partidário de alta qualidade. A solução possível está
aí. Os partidos precisam enfrentar essa questão, fazer essa costura
para juntar condições e mobilizar a sociedade. Vai-se ganhando por
círculos de pessoas. O sujeito gosta de ler, começa a mostrar o que
está lendo, o amigo lê e gosta.


ARede •
Em reportagem na “Carta Capital”, você e Antonio Carlos Moura
mostram como os jornais “Folha de São Paulo” e “O Estado de São Paulo”
e a TV Globo publicaram as fotos do dinheiro apreendido em São Paulo —
que seria usado para a compra de dossiê sobre os sanguessugas. Eles
esconderam dos leitores que o delegado pediu que dissessem que as fotos
foram roubadas. Por que?


Raimundo •
Os jornalistas se escoram em uma idéia de liberdade de
imprensa que é um desastre. Depois de divulgar uma coisa que
corresponde a interesses, eles dizem que aquilo é um fato, que todo o
fato tem que ser divulgado, como se os fatos se apresentassem nas
páginas de jornais por si. Assim se montou a campanha de divulgação das
fotos do dinheiro, sem revelar como as fotos foram obtidas, e a eleição
acabou indo para o segundo turno. Talvez se deva fazer um inventário
mais preciso do episódio. Porque os grandes responsáveis são o
patronato da mídia que banca isso, mas os próprios jornalistas também
são responsáveis.


ARede •
Em sua reportagem, você estranha o fato de o Jornal Nacional do
dia 29 de setembro não ter noticiado o desastre do avião da Gol,
concentrando sua cobertura nas fotos do dinheiro. A reportagem mereceu
uma carta, publicada como matéria paga, assinada pelo diretor-executivo
de jornalismo da TV Globo, Ali Kamel. As explicações dele o convenceram?


Raimundo •
Nós tínhamos encaminhado as questões por escrito, mas não
foram respondidas sob a alegação posterior de que as premissas eram
falsas. Nós provamos que não eram. Dissemos que a Globo, como o
restante da imprensa, só estava investigando uma ponta do caso, a do
PT, ignorando a ponta tucana. Que optou por não publicar duas
reportagens sobre o envolvimento dos tucanos, que a Bandeirantes
divulgou a notícia da queda do avião antes de o Jornal Nacional entrar
no ar. A maior crítica que fizemos ao Kamel foi de que ele ouviu o
áudio relativo ao vazamento das fotos e ignorou. Mas ele fez uma
confissão de culpa, ou de irresponsabilidade, ao não desmentir aquela
frase fatal — “não nos interessa, para nós ela não existe”,
referindo-se à fita que comprovava que o roubo das fotos do dinheiro
era mentira.


ARede •
Depois da redemocratização, talvez este seja o momento em que a
mídia mais tomou partido abertamente, com opiniões saindo das páginas
dos editoriais e avançando pelo noticiário. O que aconteceu?


Raimundo •
O jornalismo é escolha de fatos para serem divulgados, os
fatos existem concretamente. Tem gente que acha que tudo pode ser feito
na imaginação, eu acredito que a verdade é concreta. Se você prende
alguém, ou você tinha um mandado do juiz, ou não tinha. No caso da
prisão de Gedimar Passos e Valdebran Padilha, ou o mandado era de
Cuiabá ou do delegado Edmilson Bruno. Concretamente, você pode
esclarecer esse fato.


ARede •
Por que, apesar de todo o poder que a mídia tem, especialmente a televisão, não conseguiu derrotar o presidente Lula?

Raimundo •
A influência da mídia tem limite. Estou convencido de que
essas coisas não se mudam só nesse plano ideológico. A vida social não
é determinada só ideologicamente, há uma questão material concreta. Se
tivesse se combinado a crise política interna com uma crise da economia
internacional, acho que Lula teria enfrentado momentos mais difíceis.
Os defeitos do governo foram minimizados por uma conjuntura
internacional muito favorável, que permitiu ao Brasil aumentar
enormente suas exportações, num momento que estava reorganizando sua
política cambial. Outro ponto importante para se analisar é que a
campanha da mídia, principalmente da mídia impressa, tem alcance
limitado. Eles escrevem para eles mesmos. Já vi pesquisas que me deram
a impressão de que os grandes jornais têm um público que pensa como
eles. O leitor da Folha é tucano. A Veja piora e aumenta a circulação
porque tem um público que gosta da leitura. Mas há limites, porque eles
falam para eles mesmos também. Assim como a oposição não pode achar
que, se fizer imprensa só pelo campo ideológico, vai fazer coisa
melhor. É preciso combinar a luta no campo ideológico com bom
jornalismo. Você tem que, no campo popular, construir uma alternativa
de imprensa que dispute o leitor.


ARede •
Lula praticou a política tradicional de apoio aos meios de
comunicação, da grande mídia, etc. Mesmo assim, não foi poupado.


Raimundo •
A política do governo nessa área foi essa de “precisamos
acertar”. Não dá para chegar ao poder com a política de apaziguamento
em relação a esse pessoal, governar e levar as coisas para frente. Você
não toma o poder efetivamente, se você eleger o presidente e ele ficar
manietado, tendo que fazer pequenas coisas. Estou falando de mudar o
país mesmo. Para mudar o país, tem que mudar a cultura política, ter um
movimento cultural. Nas condições em que o PT chegou ao poder,
representando um movimento de massas com 20 anos de história, de luta,
ele tinha uma situação excepcional para mudar o país. Mas faltou
perceber a mentalidade conservadora que se expressa nessa imprensa que
continua sendo comprada. Acho possível uma alternativa a esse
jornalismo, desde que se entenda o jornalismo como parte da cultura
política. A vitória de Lula, nos termos em que ocorreu, teve alguma
relação com o movimento criado na internet, nos blogs, de apoio à sua
candidatura, de combate à oposição.

www.oficinainforma.com.br – Oficina de Informações

www.cartacapital.com.br – Carta Capital