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entrevista – Saúde: a mobilidade amplia o conhecimento

Saúde: a mobilidade amplia o conhecimento

O uso de dispositivos móveis facilita a transmissão de informações online e dá acesso a bancos de conhecimento
Texto   Fatima Fonseca | Fotos   Douglas Garcia

 

ARede nº 92 – julho/agosto de 2013

A primeira disciplina de Telemedicina foi criada no Brasil, há 16 anos, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Dentro dessa área, têm sido desenvolvidos conteúdos utilizando diferentes meios de comunicação. Da computação gráfica, que permitiu aos designers criar o Homem Virtual, programa utilizado para o aprendizado de saúde com imagens 3D, de forma dinâmica e simples, ao uso do tablet, o vasto repertório apoia iniciativas de ensino a distância e leva orientações sobre saúde também para as pontas. Um entusiasta do uso das tecnologias interativas para disseminar o conhecimento, o médico Chao Lung Wen, chefe da disciplina na FMUSP, trabalha, em paralelo à criação de conteúdos para a área acadêmica, desenvolvendo cursos voltados a medicina preventiva para estudantes e professores da rede pública. Ao mesmo tempo, atua, com sua equipe, em aplicações para colocar o que chama de “nuvem do conhecimento” nos dispositivos móveis.

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Que avanços a tecnologia, particularmente a móvel, trouxe, tanto para o meio acadêmico, como para a ponta?
Chao Lung Wen – Estamos em um momento muito bom. A evolução das tecnologias interativas e a melhoria do sistema de comunicação abriram um precedente, que é uma pessoa poder levar educação e assistência no bolso. Tivemos um importante crescimento das unidades móveis, seja em forma de smartphones, seja de tablets, ou de acesso à informação e à comunicação online. Nunca houve um precedente histórico dessa forma e, o mais importante, a custo acessível. Essas evoluções nos levam a repensar em como aplicar as coisas de forma eficiente em vários segmentos – não só na saúde terapêutica, mas na saúde da prevenção, na de estímulo à qualidade de vida e, sobretudo, na saúde como formação humana. Sou um defensor do uso das tecnologias para cada profissional que desenvolve uma ação importante. E tem também um segmento importante, de formação de uma rede móvel para os gestores.

O que é essa rede móvel para gestores?
Chao – Por exemplo, as reportagens têm mostrado que o Brasil nunca teve tantos acidentes de moto. Nesse caso, é preciso considerar a densidade na quantidade de motocicletas, a densidade de veículos e outro fator, o estreitamento das faixas (onde havia três faixas virou quatro e, em alguns casos, cinco), espremendo os veículos, o que contribui para gerar acidentes. Um dos cursos que vamos montar em julho e agosto, em parceria com as secretarias de Saúde e de Segurança Pública do Estado de São Paulo, vai orientar os gestores a construir projetos para reduzir acidentes com motociclistas e atropelamentos.

Como a rede e os dispositivos móveis serão utilizados?
Chao – Estamos envolvendo nesse trabalho também o Corpo de Bombeiros. O piloto prevê que dois ou três bombeiros tenham tablets e conexão 3G. Eles vão aos pontos onde há os maiores registros de acidentes para fazer a documentação do local, seja em foto, vídeo ou por meio de um testemunho. A partir daí, será gerado um acervo, que servirá, no curso, para estimular a discussão com os gestores sobre a realidade, as evidências e as recomendações. E então serão elaborados projetos para a redução de riscos. Além do curso, o Corpo de Bombeiros também poderia ter o tablet com 3G para fazer documentação e registro dos acidentes em ação pericial ou de cuidados, para evitar novos acidentes. O uso de dispositivos móveis permite identificar as condições ambientais e definir uma ação específica.

A área de telemedicina da FMUSP está desenvolvendo também um curso com o uso de tablets para os profissionais que trabalham como agentes da família.
Chao – Temos cinco atividades em andamento. O primeiro curso, dedicado a médicos e enfermeiros do Sistema Único de Saúde (SUS), é voltado para atenção integral à saúde do idoso. Com duração de 18 semanas, tem como finalidade atualizar os profissionais dessa área. O segundo curso é o Jovem Doutor. Por meio da educação interativa a distância vamos formar monitores de telecentros e do programa Acessa São Paulo ou de laboratórios de informática de escolas públicas em 28 temas da saúde. Esse é um aspecto importante, porque estamos pensando sobre o novo potencial dos telecentros. Com o esvaziamento desses espaços, defendemos que sejam transformados em escolas temáticas de saúde para as comunidades. Adicionalmente, oferecemos pelo menos 10% das vagas para pessoas com deficiência física. As pessoas – por exemplo, paraplégicos – poderiam aprender e se tornar tutores, pois é um modelo de educação a distância. Então teriam uma oportunidade profissional, difundindo pela internet a estratégia de programas de saúde nas comunidades e usando as estruturas dos telecentros e dos laboratórios de informática das escolas.

Como vai funcionar o curso para melhorar o atendimento ao idoso?
Chao – Nesse caso não é um curso para o gestor, mas focado nos profissionais que atendem, como os da atenção básica ou da rede secundária, aqueles que fazem ações relevantes com os idosos. O foco é a atualização do manejo clínico, porque, muitas vezes, lidar com a saúde do idoso é difícil. O idoso, assim como a criança, tem uma condição física e mental diferente. Outro foco é como lidar com idosos com diabetes, hipertensão, osteoporose. Tem também a questão da saúde mental. Dois problemas que afetam a vida de um idoso e pouca gente se dá conta são a depressão e a saúde auditiva. Por exemplo, será que o idoso deixa de ter convívio social porque ficou deficiente auditivo? O fato de não ter convivência social gera depressão, então, vai se dar medicamento antidepressivo em vez de resolver o problema da recuperação auditiva. A outra parte é desenvolver atividades que deem independência funcional e mental, promovendo a independência intelectual e física. 

Os outros três cursos vão focar qual público? Além dos meios comuns para o ensino a distância, como computadores e videoconferência, também serão usados dispositivos móveis?
Chao – O terceiro curso é o de orientação a gestores sobre acidentes de moto e atropelamentos. É um curso para ajudar os gestores a construir projetos de qualidade e exequíveis, que possamos encaminhar ao Ministério da Saúde e para os quais possamos solicitar recursos. O objetivo é adotar melhorias para reduzir os riscos de acidente e atropelamento, o que otimiza o sistema de saúde. O quarto curso em formatação é em relação à dengue. O controle da dengue está cada vez mais difícil porque o controle de vetores não teve sucesso efetivo. Trabalhamos agora no manejo clínico, com o objetivo de habilitar cada vez mais os profissionais da saúde a fazer os manejos em pronto atendimento e depois criar métodos para o acompanhamento domiciliar. Por exemplo: um paciente que passou por atendimento em pronto socorro e vai para casa, a família acha que a febre caiu e melhorou. Às vezes, é preciso ver outros sinais, porque, no caso da dengue, não ter febre não quer dizer melhora; o paciente pode estar entrando em uma condição de choque, pode ter um colapso cardiovascular. Tentamos trabalhar até a criação de dispositivos, chamados tags da dengue, que seria a unidade instrucional, com tudo que há de informações importantes sobre a dengue e um ponto de contato para formar uma rede de apoio.

Neste caso, qual a função do dispositivo móvel?
Chao – Como não sei qual a capacidade de conectividade das instituições que vão compor a rede, para garantir que tenham os materiais, a ideia é colocar nos dispositivos móveis as informações relevantes: manejo clínico, conduta, orientação na casa. A partir do dispositivo móvel, criaríamos os pontos de conexão pelo teleambulatório. No pronto atendimento ou no hospital haveria o tablet com o conteúdo. Se o profissional quer algo rápido, tem três minutos de vídeo que ensinam; se tem dez minutos, conecta via internet com o dispositivo e vai marcando pontuação. A ideia é ter um sistema completo, com conteúdo, acessibilidade 3G e senha para interligar com uma rede de locais de excelência para orientar o profissional.

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E o quinto curso?
Chao – É o projeto do e-care do autismo. No início deste ano, foi publicada uma portaria definindo que todas as pessoas com autismo terão atendimento como as pessoas normais. A ideia é criar um teleambulatório. As pessoas começam a se familiarizar e, na medida em que tenham uma dúvida, uma dificuldade, podem consultar o sistema central, onde se faz a orientação. Queremos juntar educação e teleassistência e, em um ano, familiarizar todo o sistema de saúde com o autista.

Para todos esses cursos já existe conteúdo para tablet e outros dispositivos móveis?
Chao – Trabalhamos no conceito da educação interativa. Em princípio, todos esses cursos estão em um site vinculado, os ambientes interativos de aprendizagem. Já temos computação gráfica e vídeo. A questão do uso de tablet não está 100% equacionada porque precisamos conversar com os gestores, seja o Ministério da Saúde, seja a Secretaria Estadual da Saúde, para adquirir um lote de tablets em que será embarcado o conteúdo. Queremos levar para os governos a iniciativa do programa do tablet da saúde como integrante de uma bandeira, a do Programa de Acessibilidade Digital à Saúde. Se conseguirmos fornecer para cada um dos profissionais de saúde um dispositivo que facilite o acesso a uma nuvem do conhecimento, aí funciona. O que não vale é produzir um monte de conteúdos e os profissionais não terem meios para acessar.

Esses cursos são restritos aos profissionais do Estado de São Paulo?
Chao – Como universidade, nós temos interesse em difundir esse conhecimento para o país inteiro. A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo também tem visão de colaboração, embora o objetivo primeiro seja otimizar o serviço de saúde no estado. As instituições de outros estados podem utilizar esses conteúdos. Estamos totalmente abertos e dispostos a ajudar as universidades de todos os estados para que desenvolvam sistemas semelhantes em suas regiões.

O conteúdo do projeto Homem Virtual, por exemplo, está disponível para outras universidades?
Chao – Há universidades que pediram para fins de graduação. O Homem Virtual é um projeto que usa a computação gráfica para explicar sobre saúde de uma forma visual, dinâmica e simples. É uma expressão intelectual, uma produção artística e científica e pode ser utilizado não só na formação dos profissionais de saúde e dos alunos da graduação, mas em outras ações em museus, espaços de ciência. Uma das boas formas de enraizar saúde em uma comunidade é criar uma cultura. A outra ação são as TVs por internet, em conceitos chamados Minuto Saúde e Três Minutos que Facilitam a sua Vida. A internet hoje é mais estratégica para a gente do que a própria TV digital; permite construir uma base, uma estação e vários lugares do país podem acessar.

Esses sistemas requerem infraestrutura de rede com qualidade. O que as operadoras oferecem atende a essa demanda?
Chao – O Brasil precisa investir em infraestrutura de comunicações como uma das grandes prioridades estratégicas, a chamada modernização das infovias. A Índia encontrou, no lançamento de um satélite só para a área de saúde, uma das estratégias da política nacional de saúde. Eles viram a telemedicina como uma forma de amplificação dos serviços de saúde. O Brasil precisa pensar nisso, em um satélite que poderia ser compartilhado por três grandes áreas: segurança nacional, educação e saúde.

As redes da RNP, como a Redecomep e a Ipê, não seriam uma alternativa?
Chao – A RNP está fazendo seu esforço, mas não é suficiente. Em vários lugares, especialmente na região Amazônica, a RNP compra comunicação satelital. Uma das grandes estratégias é uma iniciativa em conjunto formando o conceito de dutovias. O que está acontecendo? Você pode ter várias cidades comprando pequenos links, várias iniciativas dispersas. Assim como a Sabesp constrói grandes dutos para levar água, poderia haver uma junção entre governo, operadoras de telefonia e iniciativas públicas, gerando um raciocínio de planejamento: como levo dutos de conexão, para quais locais e a partir desses locais faz-se as redes de distribuição de eficiência. Hoje, apesar de existir várias iniciativas, acabam concentradas em locais que já têm demanda. Por isso, o conceito das infovias devia ser uma estratégia nacional. A educação e a saúde deveriam andar em conjunto com a segurança nacional, porque se juntarmos a segurança com a educação e a saúde teremos a questão da nacionalidade, dos valores.

As redes 4G vão contribuir para a disseminação dessas iniciativas na área de saúde?
Chao – Do ponto de vista tecnológico, sim. Têm boa performance, são 30 vezes mais velozes. Potencialmente e tecnologicamente, ajudariam muito. Minha preocupação é: onde será feita a distribuição, como será feita e em quanto tempo? Não adianta desenvolver 4G, que tem todo o potencial, sem saber qual é a política de expansão e a cobertura. Outra questão é o preço. Quando isso estiver equacionado, eu consigo dizer se a 4G se aplica ou não (na telemedicina), porque, em muitas regiões do país, provavelmente nem 3G tem. Nas minhas estratégias de telemedicina eu sempre crio o conceito duplo: o funcionamento isolado com o funcionamento conectado. Quando eu falei do tablet, por que eu quis fazer o conteúdo embarcado? Na zona rural, não há nem 2G. Com o sistema embarcado, eu posso trabalhar com aquele conteúdo e a cada 15 dias ir até um posto com banda larga, onde coloco o meu tablet, sincronizo e recarrego.

Existem dados sobre redução nos custos da saúde pública com ações preventivas?  
Chao – Essa é uma área de pesquisa de 20 anos. Qualquer número que eu fale pode estar subdimensionado. Vamos pegar a região Amazônica. Um paciente em São Gabriel da Cachoeira que precise fazer um ecodoppler levará duas semanas em um barco para chegar a Manaus; e três semanas para voltar, porque estará contra a correnteza. Ou a Força Aérea Brasileira vai resgatar o paciente ou paga-se uma passagem de avião, ida e volta. Qual seria o custo só com transporte? Outro exemplo está relacionado à saúde do idoso. Se houver uma ação para evitar que o ambiente domiciliar tenha tapete que escorregue e quinas, e fizer o idoso ter uma coordenação motora, vamos reduzir muito o índice de quedas. Uma pessoa que cai e precisa colocar uma prótese de fêmur, entre a cirurgia, prótese e reabilitação, deve gastar de R$ 50 mil a R$ 60 mil. Se as ações preventivas evitarem a queda de cem pessoas, a economia é de R$ 50 milhões. A telemedicina pode ter outro papel, de orientar os pacientes. Estudos mostram que 50% dos insucessos terapêuticos ocorrem porque as pessoas não tomaram os medicamentos corretamente. O paciente não entendeu o que o médico falou e tomou errado. No caso das medicações hipertensivas, que o governo fornece para os pacientes para controlar a pressão alta e evitar o AVC, em média apenas 30% são usados corretamente, 70% se joga no lixo.

Essa ação orientando sobre a medicação pode ser feita por meio do programa de TV que o senhor citou? Está funcionando em canal aberto?
Chao – Estamos trabalhando com o canal saúde do IPTV da USP e discutindo internamente na Faculdade de Medicina como montar a TV saúde com esses conceitos: Minuto Saúde e Três Minutos que Fazem a Diferença. Isso significa explorar esse lado – em pequenas atitudes, fazer grandes mudanças na saúde. Por meio da telemedicina e da telessaúde, podem ser feitas ações que fazem a diferença. Se conseguíssemos mudar o índice de perda do anti-hipertensivo, de 70% para apenas 40%, qual seria o efeito em cadeia, com a prevenção de problemas renais e outros? Uma vez o pessoal de TI me perguntou quanto vale a telemedicina no Brasil. Eu disse que vale, no minimo, R$ 10 bilhões ao ano. O governo federal injeta mais ou menos R$ 60 bi ao ano em saúde, pelo Ministério da Saúde, os municípios devem injetar mais ou menos R$ 30 bi ao ano, o setor privado deve injetar mais ou menos uns R$ 40 a R$ 50 bi. São R$ 140 bilhões. Vamos supor que a gente consiga melhorar a eficácia em 10%, são R$ 14 bi. Vamos supor que eu quero R$ 7 bi de volta e R$ 7 bi eu injeto. A função da telemedicina é otimizar o sistema de saúde em até 20%, eu coloquei em 10%. Isso é só para dar uma ideia de que o uso dos meios tecnológicos em teoria representa um processo estratégico entre R$ 8 bilhões e R$ 10 bilhões no país, revertendo o equivalente para a sociedade.

Como está o Brasil em relação a outros países, na telemedicina?
Chao – Eu diria que nas altas tecnologias o Brasil está avançando, mas tem um gap, porque as nossas bases de tecnologia de comunicação estão aquém. Por outro lado, a importação de alguns equipamentos ainda é cara, sobretudo os usados em cirurgias robóticas e para telemonitoramento de gestante de alto risco. Há algumas pequenas pontas de excelência, mas em termos de implantação estamos atrasados. Na área de políticas públicas de saúde ou para a atenção primária, o programa Telessaúde Brasil e o Jovem Doutor, estão entre os maiores e os mais originais do mundo. Mas, na telemedicina de ponta, precisamos de mais investimentos. 

Chao Lung Wen é chefe da disciplina de Telemedicina da FMUSP, desenvolve cursos e pesquisas em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo e coordena o Núcleo Técnico Científico de São Paulo do programa Telessaúde Brasil Redes, do Ministério da Saúde.

Nota: Entrevista produzida originalmente para a revista Wireless Mundi, nº 10, junho de 2013 – www.wirelessmundi.inf.br

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