entrevista > Murilo Machado
Sem rosto, de todos, por todos
Novos tempos exigem novas formas de resistência e manifestação política. Por isso os Anonymous estão dispostos a descobrir e romper os limites do ativismo em rede.
Texto Rafael Bravo Bucco | Fotos Robson Regato
ARede nº 98 – maio/junho de 2014
Um coletivo sem centro nem periferia, sem líder nem liderados, que se constrói e destrói em alta velocidade, que não existe como organização, não se posiciona em nenhum ponto do espectro político tradicional, e não tem um método de ação em suas diversas operações. Mais fácil definir pelo que não é, o Anonymous surgiu como diversão no fórum online 4Chan e se transformou em sinônimo de ativismo hacker – apesar de reunir um monte de outras características.
Os Anons se definem assim: “somos uma ideia, uma ideia que não pode ser contida, perseguida, nem aprisionada. Nós somos legião”. O movimento global, que de tempos em tempos sacode a internet, mostra todo seu dinamismo no Brasil desde 2011, pelo menos. Foi nessa época que o pesquisador Murilo Bansi Machado começou a observar as ações dos “anons” locais.
Nesse período aconteceram operações, como são chamadas as ações tocadas pelos hackers, contra empresas que boicotaram o Wikileaks e contra as organizações Globo. Hoje, os anonymous que falam ptBR estão em todo lugar na rede. Uma busca rápida nos permite encontrar centenas de páginas, perfis em redes sociais e vídeos publicados por anons ou sobre essa ideia. “Durante as manifestações de junho, alguns hubs anonymous tiveram mais acessos e seguidores do que grandes veículos de comunicação”, ressalta Machado. Os pesquisador está lançando o livro Anonymous Brasil – Poder e Resistência na Sociedade de Controle (EDUFBA, 135 páginas, R$ 25), resultado do mestrado em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC.
Hubs com diferentes vozes, muitas vezes dissonantes, que defendem a liberdade na rede, a transparência de dados de governos e empresas e a privacidade sagrada dos usuários. Durante a campanha pelo Marco Civil da Internet, nichos anons se manifestaram a favor, outros foram contra a aprovação da nova lei. Às vésperas da Copa, parece haver uma disputa entre os que apoiam e os que acham o evento péssimo para o país. Mas não é nada disso. O dissenso está na raiz dessa ideia. O debate é permanente, e o que determina o sucesso de uma operação é a adesão. Onde isso vai dar, impossível dizer. A única certeza é de que quem participar terá uma experiência política única, permanecerá no anonimato, e terá grandes chances de encontrar “lulz” no fim do túnel. Sim, lulz, termo usado como sinônimo de diversão. Pois o humor também faz parte dessa história, como explica Machado, a seguir.
Por que pesquisar os Anonymous?
Murilo Machado – Eu queria pesquisar algum tema que tratasse de política e internet, tecnopolítica. As relações entre política institucional e movimentos sociais da rede, a forma como os movimentos usam a rede, qual a relação entre os velhos movimentos sociais e a rede, e os novos movimentos sociais que surgem depois usam a rede. Comecei com o Movimento
Zapatista, do México. Conforme as novas tecnologias se desenvolviam, os zapatistas se apropriavam para fazer mobilização em rede. Assim cheguei aos anonymous. Em 2011, eles tinham acabado de se tornar referência mundial em ativismo hacker e em movimento distribuído
pela rede.
Você é hacker?
Machado – Gosto muito de mexer com criptografia, softwares, aplicativos e sistemas livres, uso Linux há muito tempo, mas não sou um hacker.
Na sua pesquisa, você ouviu muitos anonymous. Como encontrá-los e como ter certeza de que eles eram mesmo anons?
Machado – Anonymous não é um grupo, então é muito difícil dizer quem é, quem não é. É diferente de uma associação, em que a pessoa paga uma mensalidade, às vezes nem vai, mas é um integrante associado. O que faz dos anons um coletivo é a adesão, a forma como as pessoas vão tomando conhecimento das ações e vão participando por conta própria. Eu encontrei os anons em ações dos Anonymous. Tanto presenciais, quanto na rede. Me internei em alguns canais de IRC, na busca e no monitoramento de páginas do Facebook e perfis de Twitter que determinados nichos estavam controlando. Estabeleci uma ligação de confiança e comecei a conversar com essas pessoas. Isso é muito difícil porque o anonimato é a regra. Conversei pessoalmente com duas pessoas, de todas as que eu entrevistei, e foram mais de vinte.
Eles mudam frequentemente de nome na internet. Pode ter acontecido de você falar com a mesma pessoa, achando ser outra?
Machado – Quando você conversa por meses, consegue entender quem é aquela pessoa. As conversas mais sérias que fiz foi por meio de comunicador instantâneo. Então tinha uma senha e um e-mail, que me permitiam saber com quem eu estava falando. Com as outras pessoas que encontrei, conversei para saber coisas pontuais.
Já tentaram definir a ética hacker, um jeito de ser e agir comum entre os hackers, como meritocracia, empoderamento e busca por conhecimento. Os anons seguem o mesmo pensamento?
Machado – O Steven Levy escreve um livro clássico chamado Os Heróis da Revolução, em que enumera as características da ética hacker em uma época em que isso era uma grande novidade. Ele estava olhando para um cenário muito específico, que eram os hackers de
software e hardware, em 1985. Ele pegou o espírito dos pioneiros. Outros autores, principalmente Gabriella Coleman, grande pesquisadora sobre hackers, vão dizer que existem vários nichos, e cada um vai jogar o jogo que prefere. Para Levy, os espíritos mais fundamentais são a liberdade da informação, o empoderamento do cidadão por meio da tecnologia e a meritocracia. A maior parte dos coletivos anons acha a transparência fundamental. A informação tem de ser livre mesmo. O empoderamento também. As pessoas devem saber se proteger. Quanto mais gente usar software livre, melhor. Quanto mais pessoas se protegerem por meio de criptografia, melhor. São definições com as quais os anons trabalham, principalmente o nicho ativista hacker. E isso é importante dizer: Anonymous não é só ativismo hacker, é muito mais.
O que é Anonymous?
Machado – É muito difícil definir. Essa coisa chamada Anonymous é uma marca usada por muita gente, e por muitos grupos, para fazer ações políticas na rede e fora da rede. É um grande guarda-chuva com o qual eles se protegem. Anonymous é multiplicidade, heterogeneidade e é potência. Uma potência sobre a qual não se tem qualquer controle. É isso que torna esse coletivo forte e fraco ao mesmo tempo. Fraco porque você não tem, do ponto de vista da organização política tradicional, uma liderança que não deixa a peteca cair, que vá colocando as coisas no rumo. Por outro lado, um ambiente absolutamente distribuído, sem qualquer centro de controle ou núcleo geográfico, pode ser muito forte por ser difícil de apreender. É muito complicado um indivíduo assumir o controle ou capturar essas pessoas. Você consegue prender meia dúzia – e eles são presos todos os dias, no Brasil e no exterior, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Mas, se você prende um, aparecem dez.
O Brasil tem prendido anons?
Machado – Houve casos, mas as coisas não são divulgadas. Ao contrário do que acontece nos EUA e na Europa, onde está sendo interessante dizer “nós prendemos hackers, anonymous, lulzsec”. Aqui ainda não se faz isso. Muitas pessoas são presas por crimes cibernéticos, mas não há uma campanha sistematizada.
O Brasil vê os Anonymous como ameaça terrorista, como acontece nos EUA e na Europa?
Machado – O Estado brasileiro, não sei dizer. A gente tem poucas pistas. Conversei com muitos anons que sabem que estão sendo monitorados pela Polícia Federal. Não sei se a PF sabe que eles sabem. Mas, o que eu vejo aqui, principalmente na grande imprensa, é um discurso mais ou menos repetido do que vem de fora. O Brasil é um celeiro de bons programadores, tem um movimento de transparência hacker gigante, referência internacional. Porém, muitas vezes, quando a gente usa a palavra hacker, está falando daquele comedor de criancinhas que vai roubar a sua senha, entrar na sua conta bancária. Esse ainda é o hacker no imaginário popular. Seria importante a gente compreender que o papel do hacker é fundamental em uma sociedade como a que a gente vive hoje.
Os anons são de esquerda ou de direita?
Machado – A noção de direita e esquerda não faz o menor sentido para esse pessoal. Existem pessoas mais politizadas, e outras menos. Entre as mais politizadas, o que está sendo discutido é sistema de representação, pós-política, pós-partido. Entre os anons, não faz a menor diferença. Consegui identificar pessoas com pensamento ideologicamente opostos trabalhando na mesma ação. O anonimato os une fortemente. Outra coisa em comum é o “lulz”, embora com menos força. Se você fizer uma coisa bem feita, tudo bem. Mas, se for divertida, aí você chegou no céu. O lulz está no princípio dos anons. É legal fazer as coisas para que sejam, também, engraçadas. Outra coisa em comum é a defesa da liberdade da expressão, especialmente na internet. Foi assim com a Cientologia nos EUA [os líderes dessa religião vinham coibindo na Justiça a publicação de textos na web]. No Brasil, em relação aos meios de comunicação, eles são questionados também. Na #OpGlobo houve um debate sobre tirar ou não o site da Globo no ar, pois era imprensa. No movimento internacional, quem fez atos em relação à imprensa foi retaliado. São alguns princípios básicos, mas nada garante que sejam intocáveis e não possam mudar.
Houve conflitos entre os anons, com um grupo retirando apoio a outro, especialmente sobre protestos contra a Copa do Mundo. O que significa esse tipo de cisão?
Machado – O Anonymous é um coletivo distribuído. Suas ações políticas são como uma espiral, uma hora estão em alta, outra em baixa. Quando eu escrevi meu livro, eles estavam quietos, mas já previa que em algum momento voltariam. Em junho, o pessoal foi pra guerra de novo. Isso acontece porque os princípios ali dentro são mutantes. O coletivo se faz e se refaz. Não tem diretrizes centrais para o caso de que, se alguém sair da norma, seja punido. Não existe isso. Falar em cisão reduz muito o que são os Anons. É outra conformação política. O que aconteceu ali é algo que já aconteceu várias vezes na vida do coletivo, que é uma tomada de posição. Ali todos são anons, e existe o consenso de que vai haver divergências, que quem discordar não deve ficar quieto. Nas duas operações que analisei houve controvérsias. Foi só o negócio começar que já veio gente de diversos nichos para debater, questionar. Em uma rede distribuída, heterogênea, e que se vale de uma multiplicidade de atores, do anonimato, para agir politicamente, o dissenso é a regra. O comum é a gente pensar que dissenso é problemático, que quando você tem isso em uma base de partido político, como vai controlar? Como fazer as pessoas seguirem as determinações centrais? Em movimentos em rede, a dissidência é boa, é interessante, vem gente nova, com gás novo, que pensa diferente, e isso não é um problema.
Quantos anonymous existem no Brasil?
Machado – Impossível dizer. Não tem quem fale em nome do coletivo para dizer quem é e quem não é. Existem pessoas com mais experiência, conheci gente que se envolveu antes mesmo de o movimento se tornar forte no Brasil. Pessoas que se empenharam na construção de nichos, em criar grupos de discussão, e em certo momento cansaram. Conheço pessoas que entram esporadicamente, que quando tem uma ação que acham que vale a pena vão lá e dão sua contribuição, como derrubar um site ou ir para a rua. E não precisa ser brasileiro. Muitos brasileiros ajudam em operações globais, que têm grande adesão. O que faz uma operação ter sucesso ou não é a adesão. Ninguém precisa de permissão para propor uma ação, só que se essa ação não for interessante, não vai ter adesão, e você vai ficar ali no escanteio. Algumas ações se tornam nacionais ou globais. A operação do Megaupload teve adesão massiva. A operação em apoio ao Wikileaks foi forte.
As operações são espontâneas, surgem rapidamente e terminam rapidamente também…
Machado – Sim, e essa é a ideia. Você fazer uma ação rápida, pontual, e se dispersar. É o contrário da máxima do trabalhador industrial. Não é “Uni-vos!”. É “Dispersem-se!”. Quanto mais você se dispersa, mais difícil que seja encontrado, capturado.
Os Anons agem em rede, uma rede sem centro, distribuída. Qual a vantagem?
Machado – Essa rede evolui e se constrói. O fato de não ter nós centrais faz com que se reinvente a todo momento. Uma rede distribuída hoje é diferente de uma rede distribuída daqui a um mês. Tanto que nessa espiral dos anons, quando eles voltam a seu ápice, voltam com um jeito de agir diferente, com ideias diferentes.
O ativismo deles chega na rua, e importa se chega ou não à rua?
Machado – Existem diferentes interpretações entre os anons. Muita gente acha o ativismo de rua essencial. Fui falar em alguns lugares sobre os anons, um desses lugares foi Belo Horizonte. Conversei com um grupo de pessoas, anons, que ignoravam o ativismo hacker. Diziam que não era importante, que o que importava era conversar com as pessoas e chamar para a rua. Diziam usar a internet para se comunicar, marcar encontros. Tomavam cuidado com rastros online, mas achavam importante fazer as pessoas ocuparem os espaços públicos. E já tive contato com outros, daqui de São Paulo, que acham legal ir para a rua, mas que não veem sentido em ir para a Av. Paulista, levantar uma placa, ocupar uma faixa, de um lado a polícia, do outro, os manifestantes parados. Preferem expor dados dos corruptos ou mostrar que os bancos estão pouco se lixando para a segurança dos dados.
Ao ir para a rua, o anonimato é colocado em xeque.
Machado – Você perde o anonimato. Mesmo assim, boa parte das pessoas vai com a máscara. Tem um vídeo muito legal, de um pessoal de Minas Gerais, que estava indo para uma manifestação. Um deles com máscara. O policial então pede para se identificar. Ele mostra o RG, o policial pede para retirar a máscara, ele se recusa, passam a debater. Depois de vários minutos, o anon pede para virarem a câmera, retira a máscara e o policial permite que siga. Com a máscara, ele volta a ser filmado e repete que apesar da identificação, o que importa é o anonimato, que une a todos. Ou seja, indo para a rua, corre-se o risco de perder o anonimato, mas tenta-se mantê-lo.
O Marco Civil foi um exemplo do dissenso. Entre os anons, uns apoiaram, outros disseram que era uma forma de ampliar o controle sobre os usuários da rede.
Machado – Eu vi um vídeo engraçadíssimo de um sujeito dizendo que, aprovado o Marco Civil, seria instalada a censura no Brasil e o Facebook iria acabar. Não, não vai acabar. Mas nada o impediu de fazer o vídeo e expressar sua opinião como anon. Em muitos nichos houve um debate qualificado. Depois do Marco aprovado, há uma preocupação grande quanto à guarda de dados. Se existem dados armazenados, existem brechas para acessar esses dados. Existem N formas de se manipular esses dados, e uma simples lei limitando o que pode ser feito não vai ser suficiente. Não é suficiente há muito tempo. Muitos anons são hackers da velha guarda, que trabalham desde a década de 1980. Nessa época, corporações já tinham bancos de dados gigantescos, com base na fatura do cartão de crédito conseguiam deduzir que uma mulher estava grávida. Big data não é novidade, e não é novidade o modo como as corporações analisam os dados.
Como se dá o agir político dos anons?
Machado – Identifiquei quatro formas principais, de um universo muito mais complexo. Primeiro, o anonimato é uma forma muito importante de se manifestar politicamente porque vivemos em uma sociedade de controle cibernético. Mais do que uma forma de o bandido escapar da polícia, é uma forma de as pessoas se protegerem. Nas organizações tradicionais é comum dizerem que não temos nada a temer. Se você não tem nada a temer, mostre a sua cara. Os grandes líderes mostraram sua cara. Mas não se trata disso agora. O modo como as coisas operam hoje é diferente. Outra característica é a evangelização, termo que peguei emprestado do software livre, que é você levar a ideia, a causa, adiante, mas não de maneira dogmática. No caso, a ideia levada adiante é uma ideia de dispersão e dissenso. Vamos lutar contra o sistema. De que forma? Escolham. Só tenham cuidado com as identidades. A terceira forma foi o poder da rede distribuída. É importante não criar núcleos de poder, não ter alguém que fale mais alto, que direcione para um caminho. É comum você ouvir gente da velha esquerda dizer que os Anonymous são um movimento de direita. Tudo bem, eu vi gente de direita ali. Mas essa percepção não faz sentido para eles.
Por fim, e o mais importante, são as possibilidades que essa não-organização traz para as pessoas. A grande coisa é você entrar em contato e fazer da sua experiência política o que você quiser, sem depender de uma voz. A possibilidade de agir politicamente, sem se identificar com nenhum partido, sem estar a fim de entrar para uma ONG. Essas pessoas querem agir politicamente. De que forma? Não sabem. Mas encontram mecanismos para isso. Se disso sairão grandes revolucionários, não dá pra dizer.