Entrevista

Fecha-se o cerco à pedofilia


ARede nº43 Dezembro de 2008 – A crescente exploração sexual de crianças e adolescentes — altamente potencializada pelo uso da internet — tem gerado preocupações em todo o mundo. Há dois meses, a União Européia anunciou o investimento de 55 milhões de euros em um plano de combate à pedofilia na web. No Brasil, embora muita coisa ainda precise ser feita no âmbito da prevenção e da educação, avanços recentes sanaram deficiências legais e tornaram o país uma referência internacional. Dia 25 de novembro foi sancionada, pela presidência da República, a Lei 11.829/08, que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tornando crimes a aquisição e a posse de material pornográfico infantil. Poucos meses antes, em julho, um acordo histórico e inédito no mundo foi assinado com o Google, estabelecendo a cooperação da empresa estadunidense com investigações feitas no território brasileiro.

Por trás dessas conquistas está o empenho do professor de Direito Thiago Tavares Nunes de Oliveira, presidente da SaferNet Brasil, primeira organização social do Hemisfério Sul dedicada a defesa e promoção dos direitos humanos na Sociedade da Informação. Nesta entrevista, concedida durante a realização do 3º Congresso Mundial de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, realizado no Rio de Janeiro, de 25 a 28 de novembro — onde a SaferNet, a Secretaria Especial de Direitos Humanos e a Polícia Federal assinaram um Termo de Cooperação para recebimento de denúncias pelo Disque 100 —, Oliveira traça um panorama do enfrentamento aos cibercriminosos no país.

ARede – Qual é o cenário da exploração sexual pela internet, hoje, no Brasil?
Thiago Tavares de Oliveira – A SaferNet recebe uma média de 2.500 denúncias por dia de crimes ou violações aos direitos humanos na internet. O Orkut é o principal canal de distribuição virtual de material pornográfico. Em outubro, as denúncias registradas pela SaferNet mostraram um aumento de 77% em relação ao mesmo período do ano passado. Para se ter uma idéia do volume, só nesse mesmo mês, foram 5.589 denúncias de pornografia infantil, entre um cardápio de outros itens em que o mais próximo dessa quantidade de denúncias é incitação ao crime, com 1.410 registros. Desse total, 4.678 denúncias foram de páginas do Orkut e 911 de outros sites. Também houve um aumento de 107% na publicação de páginas com conteúdos de pornografia infantil no primeiro trimestre deste ano, em comparação com o mesmo período de 2007. Mas temos que lembrar que esses são os conteúdos que circulam pela web aberta. Grande parte das trocas de arquivos e comunicações criminosas acontece via as redes P2P, que permitem que duas pessoas se conectem diretamente, uma ao computador da outra.

ARede – Como é o trabalho da SaferNet?
Oliveira –
Somos uma organização social sem fins lucrativos, fundada em 2005. Criamos a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, que desde 2006 tem uma parceria com o Ministério Público de São Paulo, com o qual assinou um Termo de Mútua Cooperação Técnica, Científica e Operacional. Com base nas denúncias recebidas pela central, a SaferNet gera relatórios técnicos de rastreamento e notícias-crime. Em maio e em julho deste ano, a CPI da Pedofilia utilizou os dados da SaferNet para pedir a quebra de sigilo telemático de mais de 22 mil páginas do Orkut.

ARede • O senhor integrou o grupo de trabalho da CPI da Pedofilia que formulou a Lei 11.829/08. O que muda com a nova legislação?
Oliveira •
As punições ficaram mais rigorosas. Vai ser possível prender pessoas que assediam crianças em salas de bate-papo, sites de relacionamento e MSN. A lei diz que “aliciar, instigar ou constranger uma criança, por qualquer meio de comunicação, a praticar um ato libidinoso, passa a ser crime passível de pena de um a três anos de reclusão”. Penas semelhantes serão aplicadas para quem facilitar ou induzir o acesso de crianças a material pornográfico ou as levar a se exibir de forma sexualmente explícita.  Quem  produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente pode pegar de quatro a oito anos. Agora também haverá condições reais para prisões em flagrante. Antes, a polícia não podia agir. Nas duas maiores operações da Polícia Federal no Brasil, quando foi localizado farto material em vídeos, fotos, mas não dava para dar voz de prisão porque a posse não era crime. A primeira, Carrossel 1, em dezembro de 2007, mobilizou 600 policiais federais, que cumpriram 103 mandados de busca e apreensão em 14 estados e só três prisões. Na Carrossel 2, em agosto deste ano, 650 policiais, com 113 mandados em 18 estados, fizeram duas prisões. A operação foi deflagrada, no mesmo dia, em mais sete países. Na Espanha, houve 121 prisões; na Grécia, 28 e nos outros países, 60 prisões. O Brasil, que foi o país coordenador dessa ação global, fez apenas cinco prisões. Todos esses estavam fazendo troca de arquivos via P2P.

ARede • A polícia brasileira está aparelhada para essas ações?
Oliveira •
Não. Falta estrutura física, faltam recursos humanos. A quantidade de inquéritos é muito grande para o número de delegados, gentes, escrivães. É preciso criar uma delegacia especializada em crimes cibernéticos em cada dependência da PF. Só existe uma unidade, em Brasília, para atender todo o país, com três delegados e oito agentes. À parte essa deficiência, em São Paulo, todas as denúncias encaminhadas ao Ministério Público com indícios de crimes se transformaram em investigações ou inquéritos policiais. Desde que a Safernet assinou um termo de cooperação com o MP de São Paulo, contabilizamos mais de 600 investigações iniciadas pelo MP, a partir de nossas denúncias. E mais de 200 encaminhamentos à Justiça, como ordem de quebra de sigilo, entre outros. Os números mais expressivos estão em São Paulo, sede dos grandes provedores.

ARede • Como foi o acordo com o Google e quais os resultados?
Oliveira •
A negociação foi difícil. Quando constatamos que 90% da denúncias se referiam a material veiculado no Orkut, procuramos o Google, que sequer respondia a nossos contatos. Chegamos a protocolar sete representações no MP contra a Google Brasil. Depois, quando o acordo finalmente se viabilizou, o Google passou a enviar automaticamente as denúncias apontadas pela Safernet e a remover o conteúdo e preservar os dados para investigação. Desde a assinatura do acordo, em 2 de julho, até 13 de novembro, quando fizemos o primeiro relatório, foram mais de 1500 casos confirmados, que tiveram o sigilo quebrado pela CPI. O acordo trouxe melhorias também na área de prevenção. O Google instalou filtros que dificultam uploads de imagens. Esses filtros conseguem bloquear cerca de 70% das imagens que os criminosos tentam publicar. E as páginas com pornografia, que antes levavam meses para sair do ar, agora são removidas em menos de 24 horas. O conteúdo é preservado por 180 dias e colocado à disposição das autoridades brasileiras.

ARede • A nova lei, que altera o ECA, também estabelece responsabilidades para provedores de acesso e operadoras de serviços de internet?
Oliveira •
Não. Esse é outro ponto a ser atacado. Provedores de acesso não são regulamentados no Brasil. Estão submetidos às determinações da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que valem para as concessionárias de telefonia fixa e móvel. Não existe resolução da Anatel que preveja, por exemplo, a preservação de logs, e tampouco mecanismos de cooperação entre as concessionárias e as autoridades. Essa é uma lacuna que será preenchida por um novo PL que será apresentado pela CPI da Pedofilia, dia 16 de dezembro. É um documento específico, resultado de um pacto feito pela CPI com provedores e operadoras. Estabelece a responsabilidade dos provedores na preservação e no fornecimento de dados para investigação pública.

ARede • O que é desejável, em termos de atuação dos provedores e operadoras?
Oliveira •
Uma conduta mínima foi definida no Termo de Ajustamento de Conduta, acordado entre as empresas o MP e a PF. O termo prevê um prazo de três anos para preservação de logs — hoje não há qualquer determinação legal sobre isso. Cada empresa preserva por quanto tempo quer. A Net, por exemplo, preserva por três meses; a Telefônica, por cinco anos. Outro ponto crítico é o tempo para fornecimento das informações para investigação. Durante as investigações da CPI, constatamos um prazo médio de dois meses para o fornecimento dos dados à polícia. Mais do que isso, não há um padrão para o armazenamento de dados. Cerca de 2/3 das informações colhidas pela CPI tiveram de ser descartadas por erros e inconsistências, inviabilizando as investigações. A proposta da nova legislação é que, em suspeitas de crimes virtuais contra crianças e adolescentes com risco eminente à vida, a informação precisará ser fornecida em duas horas; se não houver risco eminente, em 12 horas; e, se não houver risco à vida, em três dias. Foi uma negociação difícil, as empresas resistiram, mas depois perceberam que as medidas são necessárias. Não há como ter uma política no Brasil e outra política nos países estrangeiros, que são muito mais ágeis.

ARede • Como lidar com esse problema nos pontos de acesso público?
Oliveira •
Esse ainda é um grande desafio para o qual ainda não temos resposta. Hoje, no Brasil, 51% dos acessos são feitos de pontos públicos, coletivos. Nós não temos uma postura pró-ativa, não temos iniciativas em larga escala para informação e formação de monitores, não há orientação. Estamos engatinhando em relação a políticas intersetoriais com foco em prevenção. Em países como Inglaterra, Alemanha, França e Estados Unidos, os computadores acessados por crianças em pontos públicos têm filtros, monitores mais presentes, que ficam junto com os usuários. Os governos distribuem materiais de informação. Aqui, não existe nada em termos institucionais. Estamos engatinhando, em termos de políticas públicas. O combate à exploração sexual infantil ainda não é tema de discussão em sala de aula, ainda não existem estratégias públicas para atendimento das vítimas e tratamento psicológico dos agressores. Nesses avanços recentes, os primeiros passos foram dados pela sociedade civil organizada, não pelos órgãos públicos. A Safernet, por exemplo, tem uma cartilha de segurança na Internet, para download gratuito, que pode – e deve – ser amplamente divulgada.

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