Entrevista – TV digital: o que a gente tem a ver com isso?

André Barbosa Filho, assessor especial da Casa Civil, explica o que está em jogo na escolha do padrão de TV Digital para o Brasil.


As inovações tecnológicas
estão mudando o perfil do negócio tradicional da TV e do rádio, da TV
por assinatura (por cabo ou satélite) e mesmo das operadoras de
telefonia. Com a transmissão de informações no formato digital, cada
uma dessas redes vai poder oferecer novos serviços. Alguns exemplos:
internet na TV, cinema na linha telefônica, TV no celular. Nesse
cenário, o Brasil discute qual  modelo de TV digital adotar. Nesta
entrevista, André Barbosa Filho, assessor especial da ministra-chefe da
Casa Civil, Dilma Roussef, explica o que está em jogo, qual é o
interesse dos empresários de rádio e televisão, e relata os objetivos
do projeto do governo, chamado Sistema Brasileiro de TV Digital
(SBTVD).

Os resultados desse projeto serão entregues ao presidente da República
no dia dez de fevereiro de 2006, para que ele defina a tecnologia a ser
adotada pelo Brasil. Barbosa e outros integrantes do SBTVD defendem a
escolha de um modelo híbrido (misto) – para oferecer soluções de ponta
a quem puder pagar por um televisor digital e, ao mesmo tempo, levar o
sinal, por meio de um conversor, a quem só vai poder comprar um
televisor digital quando o preço cair. Para a indústria de televisores,
essa é uma questão importante, porque vai determinar quem poderá vender
no mercado brasileiro. Para operadoras de telecomunicações e grupos de
comunicação, como a Globo, significa a oportunidade de oferecer novos
serviços e o risco de sofrerem uma concorrência maior. E para a
sociedade? Se for adotado o modelo híbrido, mesmo os brasileiros de
baixa renda vão poder ter, além de um melhor sinal de TV, acesso a
serviços interativos, como governo eletrônico.
Patrícia Cornils

ARede – As inovações tecnológicas
conduzem à chamada convergência, que permite à rede de telefonia
transmitir vídeo, ao celular receber música e à TV digital transmitir
aplicativos com interatividade, por exemplo. O que vai acontecer com as
comunicações?


As demandas sociais devem
determinar as escolhas tecnológicas.

André Barbosa Filho –
Acreditamos que são as demandas sociais que devem
determinar nossas escolhas tecnológicas, ao contrário do pensamento
ainda presente na sociedade brasileira, e que acompanhou o processo de
privatização, segundo o qual é a inovação que determina o comportamento
e que, na prática, prioriza os interesses empresariais, uma posição
derivada das idéias de Schumpeter, o economista austríaco.

No caso da TV digital, os radiodifusores sabem que, com a digitalização
de suas redes, com as novas tecnologias, vão poder oferecer novos
serviços ao público, inclusive serviços interativos e de dados. Querem
fazer avançar seus negócios e têm preferência pelo sistema japonês.
Mas, apesar de o sistema japonês ser evoluído e tecnicamente muito bem
feito, ele atende até agora, principalmente, a interesses das
emissoras, sem levar em consideração o ponto de vista da inclusão
digital, ou da inclusão social.

Com o HDTV, ou a TV digital de alta definição, como é o padrão japonês,
vamos ter um processo elitizado de digitalização. Porque um televisor
de HDTV custa, hoje, uma fábula. Varia de US$ 1,5 mil até US$ 20 mil;
os set top boxes também são caros, na faixa dos US$ 500, tem até de US$
1,5 mil. No Brasil, a população que poderá ter acesso a essa
tecnologia, no curto e médio prazos, é pequena. Estamos falando, no
máximo, de 7% da população. Um contingente maior do que aquele que usa
a TV por assinatura – cerca de 3,6 milhões de domicílios –, mas ainda
assim muito pequeno. Então, não se pode pensar o Brasil, do ponto de
vista do desenvolvimento tecnológico, sem que se resgate a dívida
social; sem discutir contrapartidas sociais ou os investimento das
empresas que vêm explorar comercialmente as oportunidades do país.


ARede –
Quais são os interesses sociais que estão sendo considerados no
projeto do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), desenvolvido pelo
governo?


André Barbosa Filho –
Em um rápido resumo, o SBTVD é um trabalho
coordenado pelo CPqD, que tem a Finep, do Ministério da Ciência e
Tecnologia, como braço administrativo. Foram montados 22 consórcios com
73 universidades que, em dez de dezembro, vão apresentar o seu
trabalho. É o maior projeto integrado universitário do Brasil, fora o
Genoma. Já gerou, até hoje, 80 inovações. Número que, para um país
latino-americano, é muito alto em relação a registros de domínios e de
patentes.

Quais pedidos foram feitos pelo governo aos parceiros para atender as
demandas sociais? Primeiro, universalização. A gente quer que todo
brasileiro que tem uma televisãozinha de 14 polegadas, colorida ou
preto e branco, com antena interna, receba sinal digital. Para isso, o
sistema precisava ser robusto, ter mobilidade e interatividade mínima
(que possa ter aplicativos residentes). E a universidade tem que
resolver esses problemas. Porque os sistemas internacionais que nos
ofereciam não pensavam nisso, porque a realidade deles não é assim.


ARede –
Quais os resultados ?

André Barbosa Filho –
Já foi produzida muita coisa. Nosso middleware é
o único do mundo que permite SDTV (SuperDefinition Televison, sistema
standard); oferecer, no mesmo canal, várias programações
(multiprogramação), aumentando a oferta de canais. O que para nós é
fundamental, porque permite fazer inclusão. Se você tiver
monoprogramação, vai manter os mesmos fatores atuais; como está
pensando em fazer, por exemplo, o rádio digital, hoje. A TV digital
multiprogramação vai permitir que você seja detentor ou não de um canal
integral (em que cabem 19 bits de conteúdo), que faça várias
programações naquele canal (reunir várias rádios comunitárias, por
exemplo), e, se for o caso, que ceda aquele canal para outros atores
diferenciados, dependendo da política e do modelo definido. É nisso que
estamos trabalhando agora.

Esse middleware e o set top box desenvolvido possibilitam uma
integração, na qual se faça, ao mesmo tempo, HDTV (High Definition TV,
sistema sofisticado, com imagens tridimensionais e interatividade) e
SDTV (SuperDefinition TV, com menos recursos). Isso é importante. É um
sistema híbrido, que aceita várias possibilidades: você pode usar
metade do canal para broadcasting, metade para serviços; 2/3 para
broadcasting, 1/3 para serviços; ou vice-versa. O consórcio pensou
maneiras diferenciadas para usar outros canais, de modo que você
conviva com tecnologia de ponta – para quem tem dinheiro para comprar
um televisor de plasma, um set top box sofisticado – e, ao mesmo tempo,
que a pessoa que tem só o sistema Standard(S), que é o que a maioria
pode ter, receba o sinal convertido. O usuário do sistema S, é verdade,
vai poder acessar alguns poucos serviços adicionais, como de governo
eletrônico, de banco, etc. O S é uma transição. Na Europa, está
servindo para oferecer TV digital para quem pode pagar HDTV e para quem
não pode. E, além do usuário, há o lado do produtor cultural. Quem vai
ter condições de desenvolver conteúdo para HDTV? Só grandes produtoras,
como a Casablanca e a TV Globo. Os demais ainda não podem.


ARede –
Que nível de interatividade existe no sistema S? Estamos falando de internet?

André Barbosa Filho –
Em alguns casos, sim. Por exemplo, onde não há
problemas de freqüência, fora das grandes regiões metropolitanas, onde
há pouca densidade populacional, você pode usar  internet. O CPqD
fez esse desenvolvimento, chamado BR Net, Banda Larga Net, agora em
testes. Nas áreas onde onde há problema de espectro, o mais barato
seria fazer por rádio. Mas fizemos uma outra proposta. Trabalhar com
internet e interatividade, através de sistemas integrados, usando
recursos, como a Europa fez no DVDH, onde você usa a rede telefônica
para fazer interatividade. Aí você não pode usar o padrão japonês. Tem
que usar o sistema europeu. Ou seja, estamos desenvolvendo inovações e,
ao mesmo tempo, usando sistemas internacionais. Não podemos fazer TV
digital só para conseguir a melhoria do sinal, ou só considerando o
interesse corporativo. Trata-se de uma concessão pública. Portanto, o
interesse social tem que ser levado em conta.


ARede –
O sistema híbrido, ao permitir melhorar o sinal, não contempla o interesse dos radiodifusores?

André Barbosa Filho –
Do ponto de vista do uso, do broadcasting e do
multisserviço dentro da faixa de radiodifusão, o europeu não está
incluído. Porque, no padrão europeu, é preciso usar o telefone para ter
interatividade, o que obriga as emissoras a fazerem acordo com a
operadoras de telecom. Já no padrão japonês, a interatividade e a
mobilidade são feitas dentro dos 19 bits, dentro da faixa de
radiodifusão. Ou seja, com o modelo japonês, o radiodifusor acredita
que está protegendo seu negócio, porque cabe a ele a decisão do que vai
levar dentro dos 19 bits.


ARede –
Então você acredita que, do ponto de vista do interesse social,
o modelo europeu, que recepciona o sistema híbrido, é o mais adequado?


André Barbosa Filho –
Neste momento, é o que nos oferece mais
possibilidades. Primeiro, não é proprietário; posso pegar as inovações
européias e utilizar no Brasil sem pagar royalties. Já o sistema
japonês é proprietário. O europeu, ao permitir desenvolvimento, pode
representar investimento no Brasil para centros de pesquisa. Soubemos
que a Comunidade Européia ainda dispunha de recursos residuais de um
plano de investimento em TV digital, que cobre até 2006, e fomos atrás,
com um projeto desenvolvido pelo CPqD, a pedido nosso, envolvendo
software para conteúdo. Agora, no dia 1º de novembro, estamos recebendo
uma comitiva, para discutir o financiamento de um centro de excelência
aqui no Brasil, em Campinas. Queremos desenvolver software de conteúdo
para o mercado internacional. Qualquer acordo que vier a ser feito com
sistemas integrados implica a possibilidade de uso das inovações
brasileiras. Ou latino-americanas, se fecharmos acordos com a América
Latina. Isso envolve o set top box, o middleware, o sistema integrado
de antenas, o projeto integrado de modulação, o codificador de vídeo,
os projetos em desenvolvimento e que vão ser entregues em dezembro – os
europeus acenam com a possibilidade de agregar nossas soluções a um
sistema internacional. Não é porque são bonzinhos. Eles querem
participar dos ganhos e investir em outros centros. Porque há uma
expectativa de que, nos próximos dez anos, a América Latina vai rodar
algo em torno de US$ 20 bilhões em conteúdo.

Agora, há a possibilidade de os representantes dos padrões japonês e
norte-americano oferecerem condições equivalentes ou melhores para
tentar ganhar o jogo. É isso que estamos esperando. O importante é que
a discussão seja aberta e clara.


ARede –
O que é essa indústria do conteúdo?

André Barbosa Filho –
Aqui se abre um novo capítulo, que é o da
indústria criativa, para municiar de conteúdo as plataformas digitais
que permitem a integração de informações, não mais lineares. Com a
integração, você pode ter imagens e sons superpostos, textos levados ao
longo da transmissão, a possibilidade de alteração desses conteúdos na
ponta, por isso chamada de open source (fonte aberta), tudo isso em
discussão. E não temos massa crítica para fazer esses desenvolvimentos.
Então, não podemos ficar de braços cruzados. Vou dar o exemplo da
Irlanda. Há 15 anos, era o chapéu roto da Europa. O governo irlandês
percebeu que podia investir em algo para o futuro, justamente a
indústria criativa, tocada por jovens de 14 a 30 anos que trabalham
individualmente, ou em dupla, criando e construindo  linguagens
digitais. Que rodam em plataformas digitais e podem ser
individualizadas ou podem ser incorporadas por empresas.

A Irlanda é um dos players mais agressivos por ter incluído, em sua
economia, a indústria criativa que gera programas modulares. Esses
módulos permitem a superposição de informação e a interatividade. No
caso da TV, a Inglaterra é que está na frente. A Granada Television e a
BBC estão investindo muito pesado no que consideram o diferencial da TV
digital, que é a conjugação entre a melhoria do sinal de TV e a oferta
de multisserviços. Nós temos, por objetivo, investir na indústria
criativa local. Vamos ter conteúdo mais barato com participação da
produção alternativa.


ARede –
No caso da TV digital, como conciliar as demandas sociais com
o calendário das emissoras, que querem a TV digital para a Copa de 2006?


André Barbosa Filho –
Os consórcios vão entregar seus projetos em 10 de
dezembro, e o CPqD terá dois meses para fazer a consolidação e entregar
a proposta com todos os elementos para o presidente da República tomar
a decisão: de usar o sistema brasileiro por excelência e adiar o acordo
com um padrão internacional, que não é o que quer o ministro das
Comunicações, Hélio Costa; ou de adotar um deles. Até lá, o debate vai
continuar. E ele é importante porque, ao expor outros argumentos,
diminui a chance de os radiodifusores pressionarem por uma decisão de
afogadilho na direção do que lhes interessa.