Capa – Inclusão de pessoas especiais: falta universalizar.

Sim, nós podemos.
Nós temos leis, políticas e tecnologias eficazes para suprir as necessidades
especiais. Só falta universalizar o atendimento. Existem os recursos, dos mais simples aos mais sofisticados. Agora precisamos colocá-los
à disposição dos 25 milhões de brasileiros portadores de deficiências.

Áurea Lopes

Se considerarmos o avanço das tecnologias assistivas e a evolução das teorias de cidadania e inclusão social, chegamos à conclusão de que, em 90% dos casos, a deficiência mais grave, seja física ou intelectual, não está nas pessoas. Mas na sociedade onde elas vivem. Falta infraestrutura física adequada para acesso de cadeirantes, faltam computadores equipados para cegos se conectarem à internet, falta tradução em libras nas telas de TV e de cinema, faltam recursos humanos capacitados para atender pessoas com comprometimento mental nos balcões de serviços públicos… só para citar alguns itens de uma longa lista. E não se trata de falta de recursos — que existem, dos mais simples e baratos, aos mais sofisticados. Trata-se de colocá-los à disposição dos 25 milhões de brasileiros que têm, pelo menos, um tipo de deficiência, segundo dados do Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O lado positivo dessa história é que, embora ainda não estejam amplamente difundidas e implantadas, as políticas públicas voltadas a pessoas deficientes aumentaram, nos últimos dois anos. Assim como também cresceu e se diversificou o leque de soluções para a inclusão de todo tipo de pessoa com necessidades especiais. O grande salto de qualidade na compreensão do que deve ser um mundo acessível a todos foi a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências, homologada pela Assembléia das Nações Unidas, em 2006, e assinada pelo Brasil, em 2007. No que diz respeito à Sociedade da Informação, o artigo 21 dessa Convenção vem complementar a legislação brasileira, estabelecendo pontualmente direitos antes não mencionados: acessibilidade para além do espaço físico, mas também no espaço digital; acesso a TICs, incluindo a internet; recursos de acessibilidade na televisão; acesso a livros eletrônicos em formato digital, entre outros. “Acabou o assistencialismo. Com a Convenção, passamos a ter direitos adquiridos”, comemora Marta Gil, coordenadora executiva da Amanky.

Portanto, o Brasil tem tudo o que é preciso para promover a inclusão social (por meio da inclusão digital): leis, políticas públicas consolidadas, produção tecnológica especializada, centros de pesquisa em acessibilidade. Mas, na prática, existem poucos pontos públicos de acesso à internet preparados para receber deficientes e os programas de governo ainda são incipientes ou estão em início de implantação.

O estado mais avançado nesse tema é São Paulo, onde 4 milhões de residentes apresentam pelo menos um tipo de deficiência física ou intelectual — o equivalente a 11% da população (Censo 2000 — IBGE). Os dois programas de inclusão digital, municipal e estadual, têm preocupações com as necessidades especiais, ações em andamento, e muito trabalho a fazer.

Na capital paulista, onde há 1 milhão de deficientes, a rede da prefeitura tem 310 telecentros, 90% dos quais com instalações adaptadas para receber deficientes. Desses, três unidades têm acessibilidade total. Uma na zona Sul, em parceria com o Instituto Efort; uma no Clube Escola Jardim São Paulo, zona Norte; uma na Associação da Casa dos Deficientes de Ermelindo Matarazzo, na zona Leste. Esses três telecentros têm computadores equipados com softwares para cegos (Orca, Dos-Vox, Virtual Vision, Jaws) e dispõem de acessórios como lupa eletrônica, boné com lente de aumento, extensores de mãos e de braços, teclado colméia, teclado de toque, impressora braille. Em outros 18 telecentros municipais, há uma máquina com o leitor de telas Virtual Vision, fruto de uma parceria da prefeitura com a Microsoft.

O programa Acessa São Paulo, do governo do estado, tem 612 telecentros. Por enquanto, apenas um, em parceria com a Associação de Deficientes Visuais e Amigos (Adeva), oferece algum recurso de acessibilidade: 11 máquinas onde roda o Virtual Vision estão disponíveis para a comunidade da associação. Além do acesso livre, a Adeva ministra cursos de informática básica para pessoas cegas e de baixa visão. Em outro telecentro, no Parque da Juventude, antigo prédio do Carandiru, em Santana, há cinco máquinas com Jaws para acesso livre. Esporadicamente, acontecem oficinas, como a oficina de linguagem de libras, criadas pelo monitor João Paulo da Silva, dentro da Rede de Projetos do Programa Acessa São Paulo. Aos 23 anos, o jovem professor de literatura conta que, quando começou como monitor, há dois anos, lia textos da tela, sentado ao lado das pessoas cegas: “Eu ajudava a fazer currículos, operações bancárias. As pessoas me davam suas senhas, pois precisavam de mim para ter acesso”.

A partir dessa vivência, João Paulo emplacou um projeto mais amplo. Já realizou uma oficina de manutenção de computadores para surdos no Acessa do Parque da Juventude. Como João Paulo, todos os monitores do Acessa SP são capacitados para atender pessoas com deficiências. O módulo 2 da formação de monitores é totalmente dedicado à acessibilidade. Em parceria com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, está sendo elaborado um dicionário de libras, que será distribuído para cada telecentro da rede. O portal do Acessa também prepara, para breve, um canal de acessibilidade com conteúdos interativos e colaborativos. Depois disso, só falta equipar os telecentros. Mas ainda não se fala em compra de programas ou de outros dispositivos de acessibilidade.

Modelo ressuscitado
No Distrito Federal, uma experiência modelo — e bem-sucedida — foi inaugurada em 2006, na cidade de Taguatinga. Mantido pela organização não-governamental Acessibilidade Brasil, com apoio de uma parceria entre os ministérios do Trabalho e Emprego e da Ciência e Tecnologia, um telecentro totalmente acessível gerou até uma metodologia que foi aplicada no projeto Gesac e pode servir como literatura de apoio para qualquer telecentro adotar práticas de acessibilidade (veja no final do texto). O telecentro de Taguatinga atendeu 5 mil pessoas. E durou um ano. “Fechou por falta de sustentabilidade. Eram 25 computadores, oito monitores e dois supervisores. Não tínhamos como sustentar essa estrutura”, diz Guilherme Lira, presidente da ONG.

Uma nova esperança renasce, agora, com o projeto DF Digital, que prevê uma rede de 72 telecentros. Silvio Roberto Sakata, subsecretário de Inclusão Digital, Inovação e Gestão da Infraestrutura do DF, informa que estão sendo desenvolvidos sistemas para atendimento a deficientes no Programa de Acessibilidade, que tem como base o modelo de Taguatinga. “Cerca de 5% das estações de trabalho de cada unidade atenderão deficientes. Em três meses estaremos funcionando”, estima.

Iniciativas isoladas
Algumas iniciativas isoladas oferecem acessibilidade digital. No setor privado, as fundações e institutos especializados costumam ter laboratórios de informática com acessibilidade, para pessoas que passam por tratamento. O projeto Informática e Educação em Necessidades Especial (Infoesp), das Obras Sociais Irmã Dulce, se destaca, no Nordeste. Coordenado pelo professor Teófilo Galvão Filho, o projeto atende gratuitamente pessoas da comunidade. Fundamentado na pedagogia de projetos, o Infoesp utiliza as tecnologias assistivas em duas frentes de atuação.

Uma educacional, para crianças deficientes a partir de oito anos, que tenham atraso na escolarização. “Utilizamos as possibilidades pedagógicas do computador no desenvolvimento cognitivo”, esclarece Galvão Filho. A outra frente de atuação são cursos de capacitação, com o objetivo de facilitar a inserção de deficientes no mercado de trabalho. São ministrados cursos de informática básica, de montagem e manutenção de computadores, entre outros. O Infoesp — que ganhou o prêmio Rainha Sofia de Reabilitação e Integração, em 2007 — desenvolve e utiliza as mais diversas e sofisticadas tecnologias para a inclusão digital de pessoas com todo tipo de deficiência. “Em 90% dos casos, encontramos soluções artesanais, baratas, em código aberto”, diz Galvão Filho.

O professor revela recursos simples utilizados no Infoesp que não necessitam de outra coisa senão mudar o posicionamento do hardware. “Temos um aluno que digita utilizando apenas uma mão. Em certa etapa de seu trabalho, ao usar determinado software que exigia que ele pressionasse duas teclas simultaneamente, ele descobriu sozinho que, se colocasse o teclado em seu colo na cadeira de rodas, poderia utilizar também a outra mão para segurar uma tecla, enquanto pressionava a segunda tecla com a outra mão”, conta. Outro aluno conseguiu usar o mouse para pequenos movimentos, em uma utilização combinada com um simulador de teclado, colocando o mouse em suas pernas, sobre um livro ou uma pequena tábua. Para uma aluna com comprometimento dos membros superiores, o teclado foi posicionado no chão — ela aprendeu a teclar com os dedos dos pés.

No âmbito público, há o programa de telecentros do Serpro, que tem uma rede de 300 unidades. Luiz Claudio Mesquita, coordenador de Estratégia de Inclusão Digital, conta que todos os telecentros do Serpro contemplam, obrigatoriamente, uma máquina com leitor de telas Orca, para ambiente Linux. Outro projeto público que levou em consideração usuários com necessidades especiais foi o Soluções de Telecomunicações para Inclusão Digital (STID), concebido e executado pelo Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CPqD) para o Ministério das Comunicações. Uma inovadora aplicação está funcionando, entre outras, nos telecentros das cidades de Bastos e Santo Antônio da Posse, no interior paulista.

Um sistema de identificação visual reconhece os usuários cadastrados. Quando uma pessoa que informou ser cega no cadastramento faz o login, automaticamente é acionado o programa de leitura de tela. Os deficientes auditivos contam com tradutores para linguagem de libras. “Estamos utilizando essas ferramentas para prestar serviços de e-gov como informações sobre aposentadoria, marcação de consultas, etc.”, explica Luiz Rolim, coordenador do projeto.

Telecentros acessíveis
A sistematização da experiência concreta de implantação do telecentro de acessibilidade total em Taguatinga (DF) resultou em um documento que pode servir como referência para gestores de centros de acesso digital coletivos interessados em melhorar a qualidade de atendimento ao público com necessidades especiais.

Em parceria com o Ministério do Trabalho e Emprego, a organização não-governamental Acessibilidade Brasil produziu a “Metodologia de Atendimento e Acesso a Pessoas com Deficiência a Telecentros”. O documento, que está disponível na íntegra, na internet (http://www.acessobrasil.org.br/index.php?itemid=876), traz registros da concepção, das etapas de criação e das metodologias utilizadas no telecentro de Taguatinga.

O texto aborda questões como: o que é um telecentro acessível; que formação devem ter os monitores que fazem atendimento a deficientes; de que forma devem ser atendidas as pessoas de acordo com as peculiaridades de cada tipo de deficiência; recomendações para infraestrutura física e logística; indicações sobre hardwares e softwares. Além das ajudas técnicas, o estudo traz depoimentos de monitores.