Sonhar é preciso. Para a sexóloga Maria Helena Vilela, diretora do Instituto Kaplan, a educação sexual só funciona quando integrada ao projeto de vida do adolescente.
Leandro Quintanilha
Agravidez na adolescência é um dos episódios de maior impacto social num país. Nessa situação, a menina, em especial em famílias de baixa renda, fica mais propensa a abandonar a escola. Assim, chegará à vida adulta sem qualificação profissional adequada, o que deve resultar em baixos salários e, de tempos em tempos, longos períodos de desemprego. É nesse contexto pouco promissor que vai criar o filho não-planejado. “E assim se perpetua a pobreza”, diz a sexóloga Maria Helena Vilela, diretora do Instituto Kaplan e idealizadora do projeto Vale Sonhar, que reduziu em até 80% o índice de gravidez precoce em comunidades dos três estados brasileiros onde atua.
O currículo de Maria Helena é extenso. Alagoana, separada e mãe dois filhos adultos, ela é enfermeira-obstetra formada pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), com especialização em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade São Paulo (USP), em Sexualidade Humana pelo Centro de Estudos de Sexualidade Instituto H. Ellis e em Psicodrama Aplicado à Educação pela Sociedade de Psicodrama de São Paulo.
Maria Helena dirige o Instituto Kaplan, entidade de assistência social e educação em sexualidade responsável pelo S.O.Sex, sigla para Serviço de Orientação Sexual. Criado em 1992, o S.O.Sex atende, gratuitamente, pessoas que buscam esclarecimentos sobre sexo. Mais de 100 mil ligações foram atendidas em 16 anos. Hoje, o serviço funciona pela internet, por e-mail e programa de bate-papo. Foi uma forma de cortar custos e dar ênfase ao meio virtual, no qual os usuários se sentem mais à vontade para conversar sobre sexo. As perguntas catalogadas serviram de fonte de informação para a elaboração projeto Vale Sonhar, iniciado em 2004, que estimula os adolescentes a planejar o futuro profissional e, por conseqüência, prevenir a gravidez precoce.
Na sede do Instituto Kaplan, um sobradinho acolhedor no bairro Brooklin, Zona Sul de São Paulo, a sexóloga conversou com ARede, aproveitando uma brecha na agenda, o horário do almoço.
ARede • Há, de fato, uma relação entre pobreza e gravidez na adolescência?
Maria Helena Vilela • A pesquisa Juventude e Sexualidade, da Unesco, constatou que 25% das adolescentes que engravidam abandonam a escola. Ao mesmo tempo, o IBGE nos revela que 80% dos lares brasileiros são mantidos apenas ou principalmente por mulheres. Dessa forma, podemos identificar uma relação clara entre a gravidez, a adolescência e o risco de aumento e perpetuação da pobreza no país.
ARede • Acontece mais com as adolescentes de famílias de baixa renda?
Maria Helena • Essas meninas têm menos perspectivas de vida. E, por isso, menos projetos. Para muitas delas, a gravidez ainda soa como o único meio de mudar de vida e, quem sabe, ascender socialmente. Na prática, sabemos que, em geral, não é o que acontece nessa situação. Por outro lado, vivemos num país onde o aborto é proibido. Não temos, por isso, registro sobre os abortos que acontecem no país. Mas sabemos que acontecem. Especialmente, nas classes sociais mais favorecidas, que podem pagar pelo melhor serviço. Esse também é uns dos fatores associados aos índices de filhos da mulher brasileira: na classe média, aproximadamente 1,8 filho ao longo da vida; nas famílias de baixa renda, quatro.
ARede • Por que é importante relacionar educação sexual com sonho profissional?
Maria Helena • Como na frase de senador Teotônio Vilela, que nos serviu de inspiração, o sonho é próprio de todos nós — e não há nenhuma realidade sem que antes se tenha sonhado com ela. Os índices de gravidez na adolescência nos mostram que a educação sexual de hoje não é adequada. Sabemos que informação não basta. A prevenção à gravidez precoce requer mais do que instruções sobre como usar o preservativo.
ARede • O que mais?
Maria Helena • Motivação. Uma pessoa responde a três tipos principais de motivação. A primeira, podemos chamar de motivação biológica, relacionada às nossas mais básicas necessidades de subsistência e sobrevivência. Outra é a motivação do prazer — fazemos muitas coisas em busca de sensações agradáveis. Um terceiro tipo é a motivação intelectual, mais difícil de se estimular. Há ainda muitos fatores sócio-culturais, desmotivadores, que se colocam no caminho. Em especial na adolescência, fase que tem como característica importante viver em risco. Na turma, em geral, os amigos endossam o comportamento de risco.
ARede • Que outros fatores estão relacionados à resistência ao preservativo?
Maria Helena • Optar pela camisinha implica, para a menina, agir não apenas motivada pelo prazer. Ao exigir do namorado que use preservativo, ela terá de admitir verbalmente que fará sexo com ele. O rapaz, ao mesmo tempo, pode ser ainda muito inexperiente e inseguro sexualmente. Parar as preliminares para pegar a camisinha e colocá-la no pênis pode representar, para ele, um grande risco de perda da ereção. Esses obstáculos ao uso da camisinha precisam de uma motivação intelectual muito consistente para serem superados.
ARede • Por que o foco no futuro profissional, especificamente?
Maria Helena • O sonho com a vida profissional é uma importante fonte de motivação para a prevenção à gravidez na adolescência. Não falo de sonhos em geral, porque o maior sonho de grande parte das meninas é mesmo ter filhos. O impacto da gravidez na adolescência fica mais evidente quando contraposto ao sonho profissional.
ARede • Como são as oficinas do projeto Vale Sonhar?
Maria Helena • O primeiro passo, na primeira oficina (“Identificação do sonho”), é ajudar os adolescentes a perceber quais são suas maiores aspirações profissionais. Médica, jogador de futebol, modelo… É sonho, vale qualquer área. A partir daí, eles são convidados a fazer uma viagem no tempo, de olhos fechados, conduzidos pelo orientador. Nesse exercício, eles são estimulados a visualizar todas as etapas na busca pela profissão sonhada. Todo obstáculo, toda dificuldade e tudo que precisam fazer para superá-los.
ARede • Como é abordada a questão gravidez precoce?
Maria Helena • Antes de começar o exercício, são distribuídos aleatoriamente cartões semelhantes aos dos exames de gravidez, aqueles vendidos em farmácia. Alguns cartões têm só a tarja azul, que representa o resultado negativo. Outros têm também a tarja vermelha, de quando o teste dá positivo. Quem recebe o cartão com as duas cores fará essa viagem imaginária ao futuro ‘grávido’, isto é, com uma bexiga de aniversário na barriga, sob a camiseta, mesmo que seja menino. Assim, durante a visualização, eles automaticamente levam em consideração o quanto uma gravidez precoce tornaria mais complicada a busca pelo sucesso profissional sonhado. No final, todos compartilham as experiências imaginadas.
ARede • E quando se fala da educação sexual propriamente dita?
Maria Helena • A segunda oficina (“Nem toda relação sexual engravida”) é formulada com base nas perguntas enviadas pelos próprios adolescentes ao S.O.Sex. Os adolescentes precisam entender que nem toda relação sexual engravida, porque muitos já transam e se sentem seguros pela própria experiência. Como até o momento não houve gravidez, consideram-se “sortudos”. Por isso, é tão importante que entendam a fisiologia envolvida — principalmente como a concepção acontece e sua relação com o período fértil da mulher.
ARede • Quais são as dúvidas mais comuns?
Maria Helena • Muitos ainda acham que sexo oral e sexo anal engravidam. Ou que o líquido de lubrificação que sai do pênis antes da ejaculação tem espermatozóides. Há também quem pense que, se a menina tomar uma ducha depois do sexo, o esperma vai embora e a gravidez não acontece. Na segunda oficina, eles esclarecem essas dúvidas, conhecem os aparelhos reprodutivos feminino e masculino, aprendem como realmente ocorre a concepção e entendem os riscos de gravidez de acordo com o ciclo menstrual.
ARede • Em geral, as aulas de educação sexual já começam com ênfase na proteção. O projeto deixa esse assunto para o final?
Maria Helena • Sim. Primeiro, eles são motivados a se interessar pela proteção, ao visualizar o impacto do descuido no futuro profissional. Depois, eles aprendem sobre como tudo funciona fisiologicamente. Assim, eles têm motivação e informação suficientes para usufruir da terceira oficina, “Engravidar é uma escolha”, que apresenta todos os métodos contraceptivos hoje disponíveis. DIU (dispositivo intra-uterino), tabelinha, pílula, preservativo, todos. Eles entendem que têm opções, mas que só camisinha previne também Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis. E que, para os meninos, o preservativo é o único meio de controle sobre o próprio risco de paternidade.
ARede • O conteúdo é para qual faixa etária?
Maria Helena • As oficinas são focadas no ensino médio, porque entendemos que é o momento em que o adolescente, com 14 anos ou mais, está preparado para visualizar o futuro. O exercício que é a base do projeto é baseado na capacidade de abstração sobre o futuro e num princípio de planejamento de vida — o que talvez fosse exigir demais dos mais novos. Talvez alunos da 8ª e da 9ª série do ensino fundamental possam vir a ser incluídos, no futuro.
ARede • Qual é a perspectiva do projeto a longo prazo?
Maria Helena • O objetivo maior é que o projeto se transforme em política pública. É o que vem acontecendo, graças a parcerias com os governos estaduais de Alagoas, Espírito Santo e São Paulo. Em São Paulo, as oficinas foram incluídas no currículo, associadas às aulas de biologia.
ARede • Como ocorreram os primeiros contatos com os governos parceiros?
Maria Helena • O governo do Espírito Santo nos procurou. Em São Paulo e em Alagoas, nós ligamos, marcamos um horário e apresentamos o projeto. Os governos oferecem a infra-estrutura das escolas e o acesso aos alunos. O material didático — os kits para as três oficinas — são pagos pelos nossos patrocinadores. Em São Paulo, a Pfizer, a Schering e a Fundação Itaú Social. Em Alagoas, o Sistema Indústria (Fiea, Sesi, Senai e IEL). Apenas no Espírito Santo é o governo quem também arca com os custos do projeto. Cada kit completo custa R$ 250,00 e pode atender até cinco turmas numa mesma escola.
ARede • Como os pais recebem a idéia?
Maria Helena • Antes de começarem as oficinas, há uma reunião com pais e professores. A grande maioria dos pais aprova o projeto, por reconhecer que eles mesmos não se sentem bem-preparados para a tarefa. E não tem essa de pedir para os pais assinarem autorização. Porque, às vezes, o pai esquece o papel em algum lugar ou deixa para depois e não assina. Os pais que não quiserem que seus filhos participem das oficinas é que devem tomar a iniciativa de procurar a escola e se manifestar. Mas mesmo os adolescentes que não participam acabam usufruindo de parte dos conteúdos abordados, por intermédio dos colegas.
ARede • Adolescentes que estão grávidas ou já tiveram filhos também participam?
Maria Helena • Participam. E, em geral, elas dão depoimentos muito ricos sobre as dificuldades que enfrentam. São de grande ajuda.
A gravidez na adolescência é um dos principais desafios para o combate à pobreza no Brasil e, ao contrário de outros indicadores sociais (como expectativa de vida e alfabetização), o quadro piorou na última década. Hoje, o número de adolescentes grávidas no país é 2% maior que o dos anos 90.
Dados do Datasus, do Ministério da Saúde, revelam que 22 % dos bebês nascidos vivos no estado de São Paulo em 2004 são filhos de meninas entre 10 e 19 anos. Em regiões mais pobres, como o Vale do Ribeira, no interior paulista, o número sobe para quase 26%.
A gestação precoce está relacionada a problemas sociais, educacionais e de saúde. As adolescentes pobres são as candidatas mais prováveis a pré-natais precários, com recém-nascidos de baixo peso e maior risco de mortalidade, tanto para a mãe quanto para o bebê. Além disso, a gravidez na adolescência aumenta a evasão escolar e diminui as chances de qualificação e ascensão profissional da jovem mãe na vida adulta.
Essa combinação de conseqüências desastrosas revela uma inegável associação da gravidez precoce com o agravamento da pobreza e da exclusão social da mãe adolescente e, por conseguinte, de seu filho.
A metodologia do projeto Vale Sonhar foi colocada em prática pela primeira vez em 2004, na região do Vale do Ribeira, interior de São Paulo, atingindo 24 escolas e 11 mil alunos. Após um ano da implantação, houve redução de 80% no número de adolescentes grávidas ao mês – foram 360 gestações em setembro de 2004 contra 72 no mesmo mês de 2005. Em dois pequeninos municípios, Pariquera-Açu e Eldorado, com 24 e 18 gestações respectivamente, a redução foi de 100%. Em 2006, nova queda – a redução do índice de gravidez em todas as escolas do projeto caiu de 72 para 30, ou seja, 58%. No mesmo período, foram capacitados 185 educadores. Além de São Paulo, os governos de Alagoas e do Espírito Santo também aderiram ao projeto e já realizam as oficinas.
MSN para acesso ao atendimento gratuito sobre dúvidas sexuais: sosex@kaplan.org.br
No mês de setembro, o Instituto Kaplan vai realizar um curso aberto ao público geral sobre o método do projeto Vale Sonhar. Informações pelo telefone 11 5092-5854.