João Eduardo: é difícil
levar os livros à periferia.
Publicar autores da periferia ou que a façam ressoar, tratar do sistema prisional, polemizar e revelar em livros os mundos que giram fora do repertório da classe média. É assim que a editora paulistana Labortexto completou cinco anos, em março, com um catálogo de obras sobre as muitas formas de exclusão (social, política e econômica). Seu lançamento mais recente dá um panorama do movimento hip hop no Brasil, pela voz de um de seus pioneiros. Trata-se do livro “Pergunte a quem conhece: Thaíde”.
“Capão Pecado”, escrito por Ferréz, inaugurou, em 2000, a vocação especial da editora. Até agora, já são 15 lançamentos, segundo João Eduardo Oliveira, editor e um dos sócios da Labortexto, ao lado de Ana Lima e Edson Francisco. “Cela Forte Mulher”, de 2003, deve virar filme. O livro relata a experiência do jornalista Antonio Carlos Prado como voluntário em presídios femininos, durante sete anos. Ele recolheu histórias e sentimentos dessa população carcerária em São Paulo, estimada em cerca de 7 mil mulheres. A Globo Filmes já comprou os direitos da obra para um longa-metragem, a ser produzido pelo cineasta Paulo Thiago. O título do livro, Cela Forte Mulher, remete à peça de teatro criada, em 1980, pela ex-presidiária Dulcinéia Aparecida Pozzo. É expressão usada, na fala das prisões, como chamamento de incentivo, para levantar a auto-estima.
O livro “Ingresso para a Febem” foi escrito diretamente pelos então internos Rogério Pontes, Darci Vitorino e Luís Pereira, este último assassinado uma semana após o lançamento. O projeto, em parceria com a editora Noovha America, atendeu à solicitação da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. “Foi fantástico publicar esse material, mas uma grande frustração comercial”, lamenta o editor da Labortexto. O secretário estadual, Gabriel Chalita, embora tenha convidado o editor a fazer o livro com os meninos da Febem em Pirituba (SP) e firmado carta de intenções com a empresa, nunca comprou um exemplar.
Livro para quem?
Os livros da Labortexto têm tiragem média de 3 mil exemplares. Infelizmente, segundo Oliveira, na sua maioria, não chegam aos moradores da periferia. Isto significa, por exemplo, que muitos dos protagonistas do movimento hip hop, inclusive aqueles que tomaram parte no seu surgimento em território nacional, podem não ter acesso ao livro do rapper Thaíde. A primeira barreira, diz o editor, está nos preços dos livros; a outra, na falta do que se poderia chamar de “cultura de livraria” nas comunidades e bairros de baixa renda. Basicamente, porque não existem livrarias nas periferias.
Para o editor da Labortexto, o esforço de disseminar o livro exige o aumento de renda da população. “É quase impossível pensar uma coisa sem a outra. Como dizer a alguém, sem nenhuma expectativa de futuro, que o livro é uma ferramenta que pode, e realmente pode, tirá-lo daquele ciclo?”, pergunta.
Barrado no baile
E há outras dificuldades insondáveis, como a recusa da Fnac de vender o livro de Thaíde. A rede de livrarias não aceitou o livro, nem deu ao editor, de quem distribui outras obras, nenhuma explicação. “Olho as pesquisas e vejo que 25% da população ativa não têm o que fazer, não há emprego. Se não existisse o hip hop, a violência seria maior. O movimento tem a missão de conscientizar os jovens, tirá-los do delito, da marginalidade. É um movimento cultural, social e artístico dos mais importantes do Brasil”, argumenta Oliveira.
Na Labortexto, não há metódo definido para selecionar os originais. “As coisas vão chegando. É preciso ter antena”, explica. As antenas, nesse caso, foram se formando desde cedo. Oliveira é paulistano do bairro de Nova Cachoeirinha, filho de pai metalúrgico e mãe dona-de-casa; trabalhou como office-boy, bancário, arquivista e operador de VT. Até ir estudar Letras na USP e ingressar no mercado editorial.
Labortexto: www.labortexto.com.br – (11) 3864.9899
Extratos de “Pergunte a quem conhece: Thaíde”
“As rádios comunitárias foram as grandes responsáveis pelo sucesso que o rap nacional tem hoje. Elas não têm preconceito nenhum e são livres, não têm o rabo preso com ninguém, só com a comunidade. Lá não rola jabá. Eles tocam o que está próximo da cultura da modernidade” (p. 122)
“A constatação do poder do movimento Hip Hop, fortalecido graças à Mostra Nacional de Hip Hop e a outros acontecimentos, nos deu novo fôlego para começarmos a pensar no disco Brava Gente.
(…) O título já diz tudo: é uma homenagem ao povo brasileiro. Foi muito bem pensado, a começar pela capa, que traz uma simbologia que as pessoas até hoje não entendem.
Mas eu explico. É uma estrada de ferro, eu e o DJ Hum ao longe, num ambiente de neblina, com um jarro de porcelana e um rádio gravador. A estrada de ferro simboliza nossa caminhada, o rádio gravador é uma homenagem ao movimento Hip Hop, e o jarro d’água simboliza a essência da vida. O que dizemos é que escolhemos o caminho do Hip Hop como essência da nossa existência” (ps.81 e 82).
Caboclinho incomum
“Pergunte a quem conhece: Thaíde” foi escrito em primeira pessoa, a partir de depoimento do rapper Thaíde ao jornalista César Alves. Traz a essência do hip hop, que se confunde, no livro, com a trajetória do narrador – desde o início da década de 80, quando o adolescente Altair Gonçalves (o Thaíde) “despertou de sua sonolência” e caiu com tudo no rap. Estão lá a gênese do movimento, a febre do break, com a presença vital de Nelson Triunfo (“responsável por tirar o break das casas fechadas e levá-lo a seu lugar de origem, a rua”) e de Marcelinho, formadores da Back Spin Crew, o encontro com o DJ Hum, a criação da Casa do Hip Hop de Diadema, as relações com as gravadoras e amigos.
Dividido em três partes, o livro cobre, na primeira (Senhor Tempo Bom), os primeiros contatos com o hip hop e sua chegada ao Brasil; na segunda (Vamos que Vamos), a carreira da dupla Thaíde e DJ Hum e a expansão do movimento entre o público jovem; e, na terceira (Pode Crer), considerações de Thaíde sobre temas e personagens importantes, como king Nino Brown, uma referência histórica para tudo que se diga sobre hip hop. Ele fala, também, sobre o assassinado Sabotage, sobre violência policial, rádios comunitárias e mídia independente, machismo, Gabriel Pensador e Racionais MC, entre outros assuntos. Acompanha o livro um CD com a música Caboclinho Comum, sua primeira gravação depois da dissolução da dupla com o DJ Hum.