Mais cultura para mais brasileiros

Tem que ir aonde o povo está

Programa do Ministério da Cultura estimula, nas pontas, o acesso aos bens culturais.

Patrícia Cornils

ARede nº52, outubro 2009 – Somente 13% dos brasileiros vão ao cinema uma vez por ano. A museus, 92% dos brasileiros nunca foram, assim como 93,4% nunca estiveram em uma exposição de arte e 78% jamais assistiram a um espetáculo de dança. Mais de 90% dos municípios do país não têm sala de cinema, teatro, museu ou outros espaços culturais. E, até este ano, em 661 cidades brasileiras não havia sequer uma biblioteca. Números como estes, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2006), traduzem as dificuldades enfrentadas pelos brasileiros para ter acesso a bens culturais. E fundamentaram a criação do Mais Cultura, programa do Ministério da Cultura (MinC) que tem a meta de promover a cultura onde o povo está – muitas vezes, protagonizando, anonimamente, uma produção cultural de enorme riqueza.

Lançado em outubro de 2007, o programa começou a ser executado em 2008, com um orçamento de R$ 189 milhões. Este ano, o orçamento é de 257 milhões. O Mais Cultura integra 14 ações de diversas áreas do MinC. Algumas não são novas, como os Pontos de Cultura, que fazem parte do programa Cultura Viva, da Secretaria de Cidadania Cultural do MinC. No ano passado, os pontos aumentaram de 800 para 2 mil, por conta dos editais conjuntos entre estados e União, articulados pelo Mais Cultura.

E essa é a grande novidade: a articulação de várias iniciativas dentro do ministério e a sua realização descentralizada, ou seja, em parceria com estados e municípios, com regras estabelecidas em conjunto. Em um Estado federativo, como é o Brasil, cada esfera (União, estados, municípios) tem sua soberania e suas atribuições próprias. O poder político é compartilhado. Quando essas esferas trabalham juntas, reforçam este pacto federativo. E realizam políticas que não se limitam ao mandato de um ou outro poder Executivo, mas se tornam políticas de Estado. Isso acontece na saúde, na educação, acontece com investimentos em infraestrutura – mas nunca havia ocorrido, com esta dimensão, nas políticas públicas para a cultura.

“Não se sabia como seria o exercício de praticar o pacto federativo na área da cultura”, conta Silvana Meireles, coordenadora do Mais Cultura. No MinC, ela é secretária de Articulação Institucional. Cabe à sua secretaria articular os convênios com os estados, municípios e demais áreas do governo. Para Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo e respeitado gestor cultural, esse é um dos pontos positivos do programa. “A questão cultural de interesse público está acima de toda e qualquer organização”, explica ele. “Na medida que as esferas de governo realizam uma gestão compartilhada, o resultado é o exercício da cidadania e um exemplo para os gestores culturais”.

As parcerias também são realizadas dentro do governo federal, como acontece com o programa de modernização de bibliotecas municipais, para investir R$ 55 mil na aquisição de acervos (sendo metade de literatura regional ou local), além de prover mobiliário (estantes, pufes), equipamentos do Cine Mais Cultura e um telecentro, em parceria com o Ministério das Comunicações. Este programa atende prioritariamente os Territórios de Paz (do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania/Pronasci) e os Territórios da Cidadania (Ministério do Desenvolvimento Agrário). Dentro do MinC, vale o mesmo raciocínio. Na Secretaria do Audiovisual, onde havia editais voltados para os produtores audiovisuais, agora há editais para o Cine Mais Cultura (Veja a página 15).

A Fundação Nacional da Arte (Funarte) promove os Microprojetos Mais Cultura, um fomento direto a produtores culturais que não têm o benefício da Lei Rouanet ou de leis estaduais e municipais.

Outra inovação do Mais Cultura é a vocação para ampliar o acesso, o que significa ampliar o público de cultura. O programa não é direcionado a produtores, artistas e intelectuais, que contam com políticas tradicionais no ministério. “É uma política que se faz a partir da necessidade da população”, diz Silvana. Este público, distinto do que o MinC estava habituado a atender, inclui as classes C, D e E, em vez de apenas as classes A e B. “É um público que demanda fazer parte da vida cultural do país”, constata Silvana.

Para levar cultura a mais brasileiros, é necessária uma escala que não seria possível somente com ações centralizadas no governo federal. Este ano, as iniciativas estão chegando aos municípios. Dia 28 de agosto, em Canoas (RS), 85 prefeitos participaram do lançamento do Mais Cultura no Rio Grande do Sul, onde vai ser atendido um consórcio de 106 municípios. O prefeito de Canoas, Jairo Jorge, declarou que “a cultura tem de estar na centralidade de nossas ações”. E essa é outra meta do programa Mais Cultura: colocar a cultura, geralmente tratada apenas por secretários do setor, em lugar privilegiado na agenda de prefeitos e governadores. Além de chamar atenção para o papel da produção cultural nas políticas de desenvolvimento sustentável. Iniciativas culturais contribuem para a educação, geram conhecimento, emprego e renda, sem consumir recursos naturais.

Pacto regional
Um aspecto importante do programa é a obrigação dos estados e municípios de definir um órgão responsável por executar o projeto – geralmente, as secretarias de cultura. Também devem criar um comitê de monitoramento das ações, com participação paritária da sociedade civil. “Nós queremos que a ação, de fato, chegue na ponta, e é preciso que a sociedade civil esteja atenta e sugira modificações no programa, quando necessário”, explica Silvana. Esse comitê é, na prática, o embrião dos conselhos de cultura, previstos no Sistema Nacional de Cultura e que ainda não existem em muitas cidades. Os conselhos são órgãos coletivos, com participação do poder público e da sociedade civil, que colaboram na elaboração, execução e fiscalização da política cultural do governo municipal.

Nos convênios, o governo federal entra, de maneira geral, com 67% dos recursos. Esse percentual, assim como as responsabilidades que cabem a cada parte do convênio, é negociado caso a caso. A formalização do convênio não implica o início imediato das ações porque os recursos precisam ficar disponíveis, e sempre disputam com outras prioridades orçamentárias, no caso dos estados – outra função importante da sociedade civil é pressionar para que as ações sejam realizadas. No caso do governo federal, o trâmite para que os recursos cheguem na ponta é longo e árduo.

Veja no site da revista ARede os recursos alocados pelo MinC para o programa Mais Cultura nos estados que já assinaram convênios. As ações previstas na tabela precisam ser colocadas em marca pelos governos de cada estado, com a publicação de editais para selecionar os agentes. Nessa lista, o único projeto com edital já publicado é o Cine Mais de Pernambuco.

Burocracia no repasse
Um programa tão novo e com esta envergadura não está livre de problemas. Um deles é relacionado à burocracia nos repasses de recursos do MinC para os estados – para cada ação pactuada é necessário realizar um convênio específico. A ação tem que estar prevista no Plano Plurianual do estado e os recursos não podem ser transferidos, de uma só vez, do Fundo Nacional de Cultura para fundos estaduais de cultura. Para isso, será preciso criar fundos estaduais e, além disso, modificar a lei do fundo nacional.

A burocracia também castiga as iniciativas nas pontas. “O setor público não está aparelhado para fazer convênios com associações que não têm capacitação para lidar com a enorme burocracia exigida pela lei”, constata Frederico Barbosa, pesquisador e coordenador da áreas de políticas culturais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ele explica que o trabalho exigido na prestação de contas é tão grande que às vezes os recursos recebidos acabam saindo caro demais para os seus destinatários. Com a descentralização dos recursos, explica ele, todos os instrumentos que dificultam essa prestação de contas vão reaparecer nos vários níveis (União, estado, município). O Ipea está concluindo uma avaliação sobre os Pontos de Cultura, realizado a pedido do MinC.

É preciso eliminar gargalos como esses, para que o programa realize, de fato, o que pretende. Sua relevância, no entanto, é reconhecida por Frederico Barbosa, por Danilo de Miranda e pelo professor Jorge Machado, de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo. Machado destaca a contribuição do projeto para o desenvolvimento das políticas públicas de cultura justamente por apoiar quem mais precisa, por chegar a pequenos municípios, a grupos e artistas independentes e movimentos culturais pouco conhecidos ou de vanguarda. “É um excelente modelo de distribuição de recursos públicos dentro de uma política cultural que pretende abranger todo território nacional”, avalia Machado.

O projeto precisa ser bem executado, mas não pode ser avaliado de acordo com parâmetros tradicionais, explica Danilo. “Não há como medir resultados de uma ação cultural responsável – e acentue-se o responsável – em termos quantitativos, que é o modelo dominante”. Para ele, o processo educativo e cultural exige um desprendimento por parte de seus responsáveis no que diz respeito aos resultados efetivos; querer ver e medir resultados – e, às vezes, resultados imediatos – é não compreender que se trata de um processo. “Há melhoria da qualidade de vida, mas não dá para medir em índices”, observa. São experiências incorporadas e externalizadas por meio de ações ao longo da vida, em forma de atitude cidadã. “Em uma palavra: não se mede encantamento!”. Talvez por isso a cultura tenha demorado tanto a atingir o patamar que merece nas políticas públicas brasileiras. Acompanhe os editais no site do programa Mais Cultura: http://mais.cultura.gov.br

PARA LER
Bibliotecas Mais Cultura O governo federal pretende zerar, este ano, o número de municípios sem bibliotecas – 661, em todo o país.
Implantação de bibliotecas públicas municipais: Fornecimento de kits, no valor estimado de R$ 5 mil, com 2 mil livros, mobiliário e equipamentos.
Modernização de bibliotecas públicas municipais: Investimento de R$ 55 mil na aquisição de obras de literatura local e regional, mobiliário, equipamentos do Cine Mais Cultura e telecentro do Ministério das Comunicações com 11 computadores conectados em banda larga.

PARA FAZER
Nós na Tela Edital para produção de filmes dirigidos a jovens, para serem veiculados nas televisões públicas brasileiras. Serão financiados 20 curtas-metragens em vídeo digital, sobre o tema Cultura e Transformação Social, com duração de 15 minutos, a R$ 30 mil cada. Podem participar exclusivamente jovens entre 17 e 29 anos, das classes C, D ou E, integrantes ou egressos de projetos sociais que desenvolvam formação em audiovisuais.

PARA VER
Microprojetos Editais dão prêmio de um a 30 salários mínimos (R$ 465,00 a
R$ 13.950,00) a jovens produtores culturais. O MinC vai investir R$ 13,5 milhões em onze estados na região do semiárido – Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe. Público: jovens entre 17 e 29 anos, de áreas de vulnerabilidade social, que desenvolvem projetos culturais. A exigência de documentação, para se inscrever, é menos complexa do que, por exemplo, no programa dos Pontos de Cultura. O projeto é executado em parceria por Fundação Nacional de Artes (Funarte), Banco do Nordeste (BNB) e secretarias de Cultura dos estados.

Cine Mais Cultura Criação de espaços para a exibição de filmes. O kit entregue às propostas vencedoras , escolhidas por meio de editais em cada estado, é composto por projetor, tela e pelos filmes da Programadora Brasil, que tem 330 títulos nacional e vai ter 600 até o final de 2010. Também fazem parte do pacote uma publicação que sugere agrupamentos de filmes e debates e uma oficina para capacitar dois agentes para potencializar o uso do espaço. A ação tem parceria com a Confederação Nacional de Cineclubes, intercâmbio ajuda a manter os locais vivos, atuando.

PARA FREQUENTAR
Vale Cultura O vale será um crédito de R$ 50,00 por mês para trabalhadores com carteira assinada que recebem até cinco salários mínimos. O Vale poderá ser usado em cinemas, shows, compra de livros, DVDs etc. O governo federal entrará com 30% do valor, o empregador com 50% e o trabalhador, com 20%. O projeto está no Congresso Nacional. O Ministério da Trabalho calcula que haverá um investimento de R$ 600 milhões/mês ou R$ 7,2 bilhões/ano na economia da cultura. Esse cálculo leva em consideração que há 12 milhões de trabalhadores nas empresas tributadas com base no lucro real.

Espaços Mais Cultura Muitas emendas de deputados ao orçamento da União, relativas à cultura, reivindicam a criação de centros culturais. E não são executadas porque os municípios não elaboram bons projetos. O MinC assessora as prefeituras na elaboração de projetos executivos para esses espaços. Também assessora na criação de um modelo de gestão participativa e de elaboração da programação. Eles também podem ser construídos em edificações já existentes (estações de trem, por exemplo). Assim, as emendas podem ser apresentadas com propostas que garantam que o projeto aconteça.