Rafael Evangelista*
Quando o Google comprou o YouTube, Mr Mason, que faz o site humorístico
Cocadaboa, escreveu: “Valor de privatização da Vale do Rio Doce: U$ 3,3
bilhões. É a época que vivemos… Reservas gigantescas de minério sendo
comparadas com uma reserva gigantesca de vídeos com adolescentes de
sunga amarela fazendo dancinhas bizarras.” O comentário reflete bem uma
das características do fenômeno chamado Web 2.0. O termo foi cunhado
para dar conta do que seria a segunda geração da internet, essa gama de
serviços que promove as comunidades virtuais e o conteúdo construído
pelo leitor. Mas a questão é que esses sites, feitos coletivamente,
geram lucros apropriados privadamente.
O que faz o YouTube tão valioso? Ele não detém os direitos autorais
sobre os vídeos que publica. O real patrimônio é um gigantesco acervo
de vídeo dos outros. A qualidade, variedade ou esquisitice desse acervo
foi o que levou o site a se tornar uma marca conhecida, associada à
idéia de hospedeiro de vídeos. E, tornando-se conhecido, mais vídeos
foram enviados ao YouTube. O mesmo princípio funciona com outros
empreendimentos da Web 2.0, como o Digg. Todo esse tempo e trabalho não
se desmancha no ar, materializa-se no valor de mercado das empresas
donas dos sites. No século XIX, Karl Marx falou em mais-valia, a
diferença entre o que um operário produz e o que ele realmente ganha.
Um marceneiro produz 15 cadeiras em um dia de trabalho, descontados os
custos de produção, venda e distribuição das cadeiras, etc. Porém, ao
final do dia, o operário recebe apenas o valor de oito cadeiras. Essa
diferença é a mais-valia; e vai para o bolso do patrão. É o lucro, que
faz com que o dono da empresa ganhe mais.
Ao acompanhar a valorização exponencial dos empreendimentos 2.0 não dá
para deixar de pensar que há uma mais-valia sendo extraída. O modo como
ela funciona é algo a ser melhor entendido, porque a natureza da
produção cultural é outra. Mas, ao ver grandes portais abrindo espaço
para que os leitores construam o noticiário, porém sem dividir os
lucros do empreendimento, é o que vem à cabeça. Esse processo não é
necessariamente negativo, não pela abertura proporcionada. Só que esses
sites colaborativos não necessariamente são bens-comuns. A maior parte,
tendo como matéria-prima o tempo e o talento dos usuários, é um
empreendimento privado visando lucro.
Marx dizia que o operário recebe não o valor que produz, mas apenas o
necessário para que continue vivo e disposto a vender seu trabalho. O
usuário não ganha o acesso livre a todos aqueles bens culturais que
pode consumir (uso a palavra livre no sentido das liberdades do
software livre), recebe apenas o suficiente, em acesso, para continuar
a produzir naqueles espaços delimitados e de maneira complementar,
acessória. É possível ter espaços colaborativos que não extraiam essa
nova mais-valia (2.0). Um dos exemplos é a Wikipedia. Tudo o que está
lá tem licença livre e quem quiser copia e coloca em um site novo
(mantendo a licença livre). E é possível complementar e melhorar. Quem
primeiro tratou a informação desse modo foi o movimento do software
livre. Por mais que um monte de empresas lucrem com o código livre, uma
vez distribuído ele se torna apropriável por todos (pois o uso é livre
e a modificação também).
Isso reequilibra a relação. Forma-se uma espécie de base de
conhecimento sobre a qual todos os programadores podem trabalhar para
criar mais conhecimento, também livre. Certamente, a colaboração em
espaços que usam licenças livres rivaliza com os espaços de produção
proprietários. E ajuda a tornar o conhecimento da humanidade mais
livre, acessível e, muito além de ser mero produto para um consumidor
passivo, ponto de partida para mais produção livre.
autor, de artigo editado na íntegra em
http://www.dicas-l.com.br/zonadecombate/zonadecombate_20070714.php.
(*) Jornalista e doutorando em Antropologia pela Unicamp. É um dos editores do blog www.observatorioverde.net.