Marco Civil da Internet: muitos avanços e uma ameaça.

A proposta do Ministério da Justiça está na contramão de leis repressivas como a Hadopi (França) e o Digital Economy Act (Inglaterra). Mas traz uma perigosa brecha para a censura.

26/04/2010 – Na contramão das recentes legislações aprovadas na França (Lei Hadopi) e na Inglaterra (Digital Economy Act), que têm como o objetivo única e exclusivamente  apertar o cerco sobre a comercialização e, principalmente, sobre a simples troca na internet de conteúdos protegidos por direito autoral, o Marco Civil da Internet no Brasil, submetido à segunda consulta pública, estabelece os direitos dos cidadãos brasileiros na internet.

Seus princípios são os mesmos estabelecidos nos Princípios para Governança e Uso da Internet o Brasil, definidos pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br) no ano passado. Garantem a liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento; a proteção à privacidade e aos dados pessoais, na forma da lei; a preservação da neutralidade da rede, de sua estabilidade e segurança e de sua natureza participativa.

Seus objetivos, também inspirados no decálogo do CGI.br, procuram estabelecer um equilíbrio entre os interesses econômicos e sociais, buscando garantir a todos os cidadãos o acesso à internet e o acesso à informações, ao conhecimento e à participação cultural. Por outro lado, o marco se propõe a fortalecer a livre iniciativa e a livre concorrência, a promover a inovação e a padronização, a acessibilidade e a interoperabilidade, a partir de padrões abertos.

Outro ponto muito importante e positivo do Marco Civil, que recebeu 822 contribuições em forma de comentários na primeira consulta pública, no final do ano passado, é a forma como propõe regular os direitos e deveres relativos aos vários dados gerados pelo usuário quando navega. “Essa é uma tarefa crucial, uma vez em que há interesses conflitantes e legítimos envolvidos. De um lado, o interesse de privacidade dos usuários, assegurado pela Constituição Federal. E de outro, o interesse de estabelecer condições para a investigação de delitos. Além disso, é importante lembrar que são informações que, inevitavelmente, são geradas pela navegação do usuário, e acabam armazenadas de uma forma ou de outra durante determinado tempo”, observa Pedro Augusto, do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas.

Os registros relativos à conexão (data e hora do início e término, duração e endereço IP vinculado ao terminal para recebimento dos pacotes) terão que ser armazenados por seis meses pelo provedor de acesso à internet, que estará proibido de fiscalizar os pacotes que trafegam na sua rede. Em relação ao registro de acesso aos serviços de internet (e-mails, blogs, perfil nas redes sociais etc.), o provedor não tem obrigação de armazenar os dados. Mas, se o fizer, terá que informar o usuário, discriminando o tempo de armazenamento. Quanto aos dados cadastrais (informações pessoais que o usuário fornece ao provedor do serviço quando se cadastra em um portal ou faz uma compra, por exemplo) são informações protegidas que, assim como os registros relativos à conexão, só podem ser reveladas mediante autorização judicial. Também os dados relativos à comunicação eletrônica – os conteúdos trafegados pelos usuários – são protegidos, pois a inviolabilidade e o sigilo das comunicações pessoais estão garantidos na Constituição.

Com essa política de tratamento dos dados, o Marco Civil reforça o princípio constitucional do anonimato. E, quando transformado em lei, impedirá situações como as que ocorrem hoje quando, por falta de uma legislação relativa à internet, o usuário é “revelado” por mera requisição administrativa, sem uma ordem judicial. Além disso, essa política, diz Guilherme Almeida, chefe de gabinete da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, impede que um provedor de acesso e um provedor de serviços cruzem os dados do usuário: “São duas pontas. O provedor, que atribui um endereço IP ao usuário, sabe qual é o endereço mas não sabe quem é esta pessoa. Quem tem as informações sobre o internauta e o que ele acessa são os provedores de serviços.”

Apesar dos muitos avanços contemplados pelo Marco Civil, ele tem um dispositivo que vem gerando muita polêmica. Esse mecanismo permite que qualquer pessoa que se sentir prejudicada em seus direitos (aqui entendidos no sentido mais amplo, da honra  pessoal ao direito autoral sobre uma obra) entre em contato com o provedor e peça  retirada do ar do conteúdo gerador do conflito. Se o provedor não atender à solicitação, será responsabilizado. Se atender e notificar o responsável pela sua postagem e este decidir republicá-lo, ficará livre da corresponsabilidade. Ela será exclusivamente do internauta.

Com esse mecanismo, o Ministério da Justiça pretende, segundo Almeida, inibir batalhas judiciais e democratizar a solução de conflitos, já que hoje só quem pode pagar um advogado, normalmente o poder econômico, recorre à Justiça quando tem seus direitos prejudicados na internet. Acontece que esse mecanismo abre precedentes perigosos. Pode cercear o acesso a informações legítimas, como apontam entidades empresariais e profissionais ligadas ao jornalismo, que temem censura dos noticiários online. E pode acima de tudo iniciar uma caça, pela indústria cultural – especialmente gravadoras e livrarias –, aos internautas que fazem download, mesmo que para consumo próprio e doméstico,  de conteúdos protegidos por direito autoral, e às redes P2P de troca de arquivos. Como bastará uma notificação ao provedor, mesmo que os argumentos tenham pouca consistência, o risco de arbitrariedades é muito grande. Por isso é importante que a suspensão de conteúdos publicados na internet só possa ser executada por ordem judicial e não por medida administrativa.

Os objetivos da proposta brasileira são bem diversos daqueles da lei francesa, mas mesmo as autoridades daquele país recuaram da decisão de determinar a retirada de conteúdo do ar apenas mediante medida administrativa. Só que o alvo da Lei Hadopi é única e exclusivamente a proteção do direito autoral, especialmente da indústria cultural.

Abrir essa brecha à censura na internet é um risco ainda maior num momento em que cresce o cerco à liberdade na rede. No dia 21 de abril, o grupo de 16 países (do qual o Brasil não faz parte) que compõe o Acta (sigla em inglês de Anti-Counterfeiting  Trade Agreement), um acordo que vem sendo negociado fora do âmbito da Organização Mundial de Propriedade Intelectual da ONU, divulgou sua proposta, após muita pressão de entidades mundiais de defesa da liberdade na internet. Embora trate do combate à pirataria em geral, ele inlcui os bens imateriais ao lado das mercadorias, e dedica um capítulo de suas 39 páginas à internet. Menos incisiva do que a minuta que vazou anteriormente, a proposta estimula que os provedores adotem políticas preventivas em relação a conteúdos protegidos por direitos autorais; propõe aos países membros desenvolverem políticas de aproximação entre provedores e portadores de direitos autorais para que aqueles possam lidar adequadamente com patentes, marcas e copyright; e sugere que adotem proteção legal às medidas tecnológicas (dispositivos de proteção) adotadas pelos detentores de direitos autorais para impedir o acesso não autorizado a seus trabalhos. Essas são apenas algumas das diretrizes pretendidas pelo Acta, que reúne, entre seus membros, Estados Unidos, Austrália, Canadá, Japão, entre outros.

Diante das legislações nacionais coercitivas, como as recentes leis aprovadas na França e Inglaterra, e das medidas de controle que propõem os membros do Acta, negociado em sigilo desde 2007, não convém o Marco Civil deixar uma porta aberta à suspensão de conteúdos publicados na internet apenas com base em medidas administrativas. Os possíveis prejuízos à liberdade na rede poderão ser bem maiores do que vantagens de minimizar as demandas judiciais. (Por Lia Ribeiro Dias, no Tele.Síntese)