Aprender colaborativo
A wikipédia é reconhecida como ferramenta pedagógica e ganha adeptos nas salas de aula, com usos que vão muito além da pesquisa enciclopédica.
Texto Aurea Lopes
ARede nº 99 – julho/agosto de 2014
PRECONCEITO. FALTA de conhecimento. Por essas razões, muitos educadores são contra usar a Wikipédia em trabalhos escolares. Acham que as informações contidas na enciclopédia online colaborativa não são confiáveis, produzidas por “qualquer um” que se aventure a escrever “qualquer coisa” sobre “qualquer assunto”. Infelizmente. Porque essa é uma percepção distorcida da realidade. Porém, felizmente, outros educadores já descobriram que a “wikieducação” tem uma força pedagógica capaz de melhorar a dinâmica de aprendizagem e cultivar, nos jovens, o espírito do trabalho colaborativo. Foi com essa intenção que João Alexandre Peschanski, professor de Ciência Política no curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, propôs às suas turmas de 3º ano “o desafio de fazer ciência, em especial ciência social, na era da Wikipédia” – como escreveu no blog pelo qual se comunica com os alunos.
Na prática, eles tiveram, como trabalho acadêmico, valendo nota, a tarefa de criar verbetes para a enciclopédia colaborativa. O tema: a ditadura miliar. A partir de dados da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, da Alesp, foram selecionados 166 nomes de mortos e desaparecidos. Cada aluno foi incumbido de pesquisar e escrever sobre uma vítima da repressão.
“Realizamos a experiência concreta de uma teoria que estava sendo discutida em sala de aula: as dificuldades de organizar comunidades baseadas na cooperação entre seus integrantes e o diagnóstico de que tais comunidades são improváveis e, quando ocorrem, instáveis”, conta Peschanski. Além de motivar a moçada a se apropriar de plataformas wiki, de conhecimento livre e compartilhado, o Projeto Wikipédia da Cásper Líbero gerou outros ganhos. Um deles, a inovação na forma de avaliar. “Os estudantes geralmente põem horas e horas de reflexão e trabalho para realizar provas ou relatórios lidos apenas pelo docente ou, quando muito, por outro colega. Nesse projeto, o resultado foi avaliado também de uma perspectiva de aplicação real, não apenas acadêmica, pelos editores da Wikipédia, que mediaram as contribuições”. Além disso, o projeto, elaborado com apoio do Programa Catalisador da Wikipédia no Brasil, teve o mérito de ampliar o material disponível na enciclopédia digital sobre a história do país.
Tudo foi planejado para que a experiência desses alunos, muitas vezes a primeira vez em contato com processos de produção compartilhada, fosse positiva. “Queríamos que suas contribuições fossem efetivamente levadas a sério”, relata o professor. Os jovens foram preparados para absorver os conceitos e dominar a tecnologia em uma sequência de atividades de complexidade crescente. Ou seja, sem traumas, superando as dificuldades técnicas gradativamente.
A primeira foi a criação de contas em um documento compartilhado onde a moçada inseria tudo que fazia no projeto. Depois, eles se registraram na Wikipédia e começaram a fazer contribuições com verbetes já existentes, mas relacionados ao tema escolhido. Em seguida, foram convidados a experimentar as demais ferramentas wiki, como Wikiquote (46% preferiram usar essa ferramenta), Wikivoyage (27%), Wikimedia Commons (17%), Wikinews (8%), Wikibooks (1%) e Wikcionário (1%). As contribuições variaram de pequenas correções em entradas no Wikiquote à postagem de notícias extensas. Segundo o professor, os estudantes tiveram mais dificuldades com essas ferramentas do que com a Wikipédia em si. Só então, começaram a trabalhar na elaboração ou na melhoria de verbetes sobre os desaparecidos e mortos.
O Programa Catalisador entrou como parceiro na formação. Foi feita uma palestra em cada uma das quatro turmas para contar o que é a Wikipédia e quais são os seus princípios. Também houve oficinas práticas de edição. “O uso da ferramenta tem que fazer sentido para o professor e para os alunos”, diz Célio Costa, um dos quatro coordenadores do Programa Catalisador no Brasil e profissional que trabalhou diretamente com a galera da Cásper. Célio explica que esse programa – lançado em 2013, como fruto do Programa Educação da Wikimedia Foundation – visa diminuir o preconceito e esclarecer o mundo acadêmico sobre a natureza da Wikipédia: “A enciclopédia tem figurado entre o 5º e o 6º sites mais acessados no mundo; é o 11º no Brasil. Mas ainda precisa ser compreendida em sua dimensão pedagógica”. Para isso, a Wikipédia do Brasil tem feito parcerias não apenas com universidade e escolas, em projetos como o da Cásper Líbero, mas também com museus, arquivos históricos e organizações da sociedade civil.
Vencer o preconceito é fácil. Basta conhecer os processos de edição, como fizeram os alunos da Cásper. “Eu não dava valor à Wikipédia, influenciada pelo que ouvia no colegial. Os professores diziam que aquelas informações não tinham valor científico. Agora eu sei o que é, de verdade, e quanto trabalho tivemos até os verbetes serem aprovados”, conta Sophia Winkel, uma das estudantes do curso de jornalismo, encarregada da história de Massafumi Yoshinaga.
Ela considerou esse o projeto mais interessante que já fez até então, no curso, e se diz disposta a fazer mais verbetes para a enciclopédia. Apesar, ressalta, do processo rigoroso: “Não pode existir nenhuma frase copiada de outro lugar. Eu mandei um texto com um aviso no final dizendo ‘por favor, não apague isso, ainda estou fazendo. E o texto foi reprovado. Não pode ser nada mais ou menos. Tudo é super checado”.