É aqui que a gente inventa
Estudantes de instituições públicas mostram que a produção
científica está ao alcance de todos
Rafael Bravo Bucco
ARede nº 83 – agosto de 2012
KEYLA MARIA SILVA, 17, é caloura na faculdade de direito, mas foi como veterana da escola técnica onde estudou até 2011 que pode mostrar sua capacidade inventiva para todo o país. Com os colegas Gabriel Pimenta Lima e Edson Junior Barbosa – sob orientação da professora Márcia Ferreira – criou um game para ajudar crianças da primeira e da segunda séries do ensino fundamental a desenvolver a capacidade de leitura.
“Todos nós do grupo achamos que ler favorece o desenvolvimento. Fomos pesquisar e descobrimos que existem muitos jogos para estimular outras habilidades, mas não achamos nenhum com foco em aperfeiçoar a leitura”, conta. Esse foi o passo inicial para a criação do Reino da Leitura, jogo para computador desenvolvido como trabalho de conclusão do curso técnico de informática na Etec Jorge Street, em São Caetano do Sul, instituição que integra o Centro Paula Souza. O projeto foi apresentado pelos três na Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), em março.
O software apresenta personagens baseados em contos de fadas e exige que as crianças leiam textos inteiros para obter acesso a mini games de perguntas e respostas. Somente com acertos é possível evoluir, enquanto personagens incentivam os pequenos leitores, ao longo do processo. “Todos os jogos foram supervisionados por pedagogos para garantir que fossem, de fato, educativos”, frisa Keyla. Conforme o jogador supera os obstáculos, ganha pontos e entra para um ranking que permite aos pais e professores mensurar o desenvolvimento das habilidades. “Tem também uma área administrativa, onde o adulto pode aumentar a quantidade de jogos ou alterar as perguntas, o que faz do Reino da Leitura uma ferramenta de ensino duradoura”, reforça a estudante, exibindo sua habilidade comunicativa.
Do Brasil para o mundo
Keyla e seu grupo fazem parte de uma geração que, por conta de mudanças na legislação em 2006, precisam entregar um trabalho de conclusão de curso (TCC) para se formar no ensino médio. O resultado se vê nas feiras de ciências e tecnologia para estudantes. Nos últimos anos, essas feiras se revelaram berços de novas e brilhantes ideias. Tornaram-se também eventos concorridíssimos, tanto pelo público visitante – a Mostratec, em Novo Hamburgo (RS) chega a receber 30 mil pessoas por ano – quanto pelos expositores, que buscam reconhecimento de seus trabalhos. Em caso de sucesso, os jovens cientistas mais bem colocados nos concursos promovidos dentro das feiras podem carimbar o passaporte e ir apresentar seus projetos em outro país.
Foi o que aconteceu com João Constantino e Marília Inês Belo, ambos com 17 anos, estudantes do Instituto Federal de Alagoas (Ifal). Eles, que também se apresentaram na última Febrace, foram convidados a mostrar seu Reciclabot no Fórum Internacional de Ciências da Juventude de Londres (LIYSF, na sigla em inglês), que acontecerá na Inglaterra, em agosto. O projeto, que teve orientação do professor Emerson Lima e coorientação de Emanuel Araújo, consiste em um robô construído com materiais reciclados e motor comandado por Arduino – tipo de hardware aberto com ecossistema de desenvolvimento livre.
“O protótipo está finalizado. No momento, trabalhamos na criação das palestras de educação ambiental das quais o robô fará parte, interagindo com o público”, escreve, por e-mail, a dupla de inventores. O Reciclabot foi criado no núcleo de robótica do Ifal com a proposta de ser um instrumento de educação da população sobre o descarte e reciclagem de lixo, especialmente o eletrônico. Foi também finalista do 4º Encontro de Iniciação Científica de Palmeira dos Índios, cidade onde fica o instituto.
Solução de problemas
Os vírus de computador são a maior ameaça digital para o usuário. Por causa de um vírus, podemos desde perder arquivos importantes a ter roubado dinheiro do banco. Mesmo quem tem um antivírus instalado corre o risco se espetar usar um pen drive infectado na máquina. Diante desse problema, Edson Ruivo, aluno do último ciclo do curso de informática para gestão de negócios da Fatec de Itapetininga (SP), buscou uma solução. Ele inventou um aparelhinho capaz de varrer pen drives e cartões de memória para tirar vírus, trojans, worms ou outros programas maliciosos.
“Tenho uma lan house e sempre tive essa ideia em mente. Falei do Pen Clear para o professor Marcelo Silvério e ele me orientou a desenvolver o protótipo dentro da faculdade”, lembra o estudante. O projeto ganhou repercussão internamente, fazendo com que Ruivo fosse convidado a mostrá-lo na Feira de Tecnologia do Paula Souza (Feteps), que reúne Fatecs e Etecs do estado de São Paulo. Depois ele foi à Campus Party, onde competiu no concurso Campuseiros Inventam. Ali, concorreu a um prêmio de R$ 100 mil, dinheiro que deveria custear o processo de patenteamento, produção e comercialização. Mas não levou. O dispositivo ficou em segundo lugar, dentre 300.
A ideia de Ruivo não surgiu em função de um TCC, nem devido a um projeto de iniciação científica (PIC), mas da capacidade de identificar com precisão um problema. Habilidade que, dizem os educadores, é uma das várias competências estimuladas pela participação em feiras de ciência e tecnologia e criação de grandes projetos de fim de curso.
Habilidades e competências
“Talvez, mais importante do que aplicar o que aprendeu, seja identificar qual é o verdadeiro problema. Na hora que o aluno faz isso, a solução passa a ser tão importante que o estudante não mede esforços para encontrá-la. O aluno se envolve. Em vez de fazer a atividade por causa da nota, faz porque procura uma resposta”, defende Roseli de Deus Lopes, professora da escola politécnica da Universidade de São Paulo e coordenadora geral da Febrace.
Entre outras competências que a pedagogia de projetos estimula estão a expressão oral, planejamento, liderança, trabalho em equipe, persistência. De acordo com Roseli, as ferramentas que permitem inovar dentro da sala de aula compõem “uma forma de o aluno aprofundar o conhecimento, de desenvolver a capacidade de observação, de ter rigor ao descrever e ao propor uma questão”.
O professor Almério Melquíades de Araújo, coordenador de ensino médio e técnico do Centro Paula Souza e coordenador da Feteps, concorda. Ressalta ainda o papel que o desenvolvimento de projetos tem na formação profissional: “Dar ao jovem a oportunidade de realizar projetos permite que ele desenvolva a confiança e a autoestima para que no mundo profissional se sinta capaz de inovar e de participar dos processos de melhoria dos produtos e serviços”.
Ouvir e ser ouvido são outras competências que acabam sendo estimuladas. Principalmente nos casos de projetos de produtos criados para outras pessoas usarem. É o caso do Tutor de Marcha, construído por uma equipe da turma noturna do curso técnico em mecânica-projetos da Etec Rosa Perrone Scavone, de Itatiba (SP). Ao todo, 40 alunos se dividiram em funções variadas, como se fossem uma empresa. O objetivo era criar um aparelho similar a pernas mecânicas, que ajudasse pessoas com paraplegia a se locomover.
“Nosso professor orientador, Leonardo Januário da Silva, mostrou um vídeo dos Estados Unidos e uma pessoa paraplégica andando com ajuda de um equipamento. Nossa iniciativa foi juntar a turma toda para desenvolver um dispositivo similar, de menor custo. O preço de um aparelho assim é bem alto. Chegamos a cotar produtos acima de R$ 30 mil”, explica Renato Zanella, 18, um dos que participaram do projeto. O primeiro protótipo não deu certo. “Saiu superdimensionado e pesado. A gente não sabia que tinha diferentes tipos de pessoas com deficiência. Mostramos a uma fisioterapeuta, ela disse que não dava para trabalhar com aquele aparelho. Então ela nos orientou e fizemos outro modelo”, lembra o estudante. O resultado final foi testado e aprovado pela especialista.
Feito com peças de reuso, o produto, que chega a custar dezenas de milhares de reais, saiu por cerca R$ 800. “Agora a ideia é tornar as plantas disponíveis para o público, para qualquer pessoa montar”, diz Zanella. O resultado do projeto foi nota máxima para todos os alunos, vitória no concurso Construindo a Nação (organizado pelo Instituto da Cidadania Brasil) na categoria destaque social, e vitória na categoria de melhor projeto para inclusão de pessoas com deficiência na Feteps de 2011.
Software livre
Também é fundamental perceber que os projetos científicos têm um papel social. Levam os estudantes a aprofundar os conhecimentos em matérias que, de outra forma, talvez permanecessem superficiais. E, ainda, disseminam a ética científica. Exemplo disso é o uso de software livre, incentivado nos cursos técnicos de informática e correlatos.
Foi com software livre que Luan Fakelmann, de 19 anos, concretizou uma ideia de seu orientador, Flavio Cezar Amate. Usando programação em Python, Luan criou um jogo de corrida com a proposta de incentivar crianças a aprender matemática. No Math Race Challenge, o jogador deve percorrer o trajeto passando por caixas com números e operações matemáticas. Ao passar sobre as caixas na sequencia correta, ganha impulso na velocidade. Se o jogador errar na conta e montar uma equação equivocada, tem a velocidade diminuída.
“O público alvo são crianças de 7 a 11 anos, do primeiro ciclo do ensino fundamental. A dificuldade é fazer a criança dessa idade se interessar por matemática, e o game faz isso de forma lúdica. Com esse projeto de iniciação científica consegui uma bolsa do CNPq”, comemora Luan, que cursa análise de sistemas no Instituto Federal de São Paulo, campus de Bragança Paulista. Ele usou ainda o Blender para fazer a modelagem 3D do game, o Gimp para criar as texturas e o Free Audio Editor para o som. Todos são softwares livres. Além disso, licenciou o game em Creative Commons, permitindo a reprodução e a alteração do programa por quem tiver interesse, desde que esse novo conhecimento seja devolvido de volta ao público. O jogo está disponível para download no site www.mathrace.blogspot.com.br. É possível baixar e jogar ou, como gostam os jovens cientistas, estudar a programação e ajudar Luan a aperfeiçoá-lo. O que vai ser?
COMO PARTICIPAR DAS FEIRAS
Você é estudante e também gosta de produzir ciência? Então se liga no calendário das principais feiras do país:
Febrace 11
Inscrições: até 29 de outubro
Quando é a mostra: 12, 13 e 14 de março
Onde: Escola Politécnica da USP, São Paulo (SP)
Requisitos: Ser estudante do 8º ou 9º ano do ensino fundamental, ensino médio ou ensino técnico, ter até 21 anos.
Informações: www.febrace.org.br
27ª Mostratec
Inscrições: até 17 de agosto
Quando é a mostra: 22 a 27 de outubro
Onde: Fenac, Novo Hamburgo (RS)
Requisitos: Ser estudante do ensino médio ou técnico, ter entre 14 e 21 anos.
Informações: www.mostratec.com.br
Feteps 2012
Inscrições: encerradas para este ano
Quando é a mostra: outubro
Onde: ainda não confirmado
Requisitos: Ser estudante do ensino tecnológico, médio ou técnico do Centro Paula Souza ou de instituições parceiras
Informações: www.feteps.com.br