Aprendizado com adrenalina

Jogos eletrônicos podem se educativos, mas ainda falta muito para os educadores repensarem a forma de ensinar

Jogos eletrônicos podem ser educativos, mas ainda falta muito para os educadores repensarem a forma de ensinar   Vera Franco


ARede nº 57 abril de 2010 –
Para o educador Paulo Freire, educar é “influenciar um aluno de tal forma que ele não se deixe influenciar”. Esse é o grande desafio dos jogos eletrônicos (games, em inglês) educativos, cuja principal finalidade é trabalhar capacidades cognitivas como memória, atenção, criatividade e imaginação. É isso que faz um jogo educativo de qualidade: ensina, sem que os alunos percebam que estão aprendendo. Além de não impor seu caráter educacional, para conquistar o interesse do jogador, um bom game educativo tem linguagem e design envolventes, que estimulam a busca de soluções para os problemas propostos. Afinal, o público-alvo desses games “é do ramo”: adolescentes na faixa de 12 a 19 anos, que praticamente nasceram interagindo com controle remoto, joystick, mouse, internet. É, acima de tudo, uma geração com estrutura de pensamento mais ágil e complexa.

Os jogos desenvolvidos para a chamada screenage (geração da tela, na tradução literal do inglês) precisam oferecer aprendizagem descontínua e atraente, com muita interatividade. Por meio de ações, reações e intervenções – igualzinho aos jogos comerciais – os games precisam levar o jogador-estudante a incorporar diferentes papéis, seja como bandido, policial ou bailarina, o que traz a primeira vivência educacional: colocar-se no lugar do outro. Como prega Piaget, para aprender, muitas vezes é necessário desestruturar o conhecimento vigente e refazer os esquemas. “O aluno tem que sair da sua realidade e se transportar para uma história diferente da que está acostumado. O mais difícil é vencer a resistência de alguns professores, que ainda não estão familiarizados com a prática dos games e não sabem tirar proveito de seus benefícios na educação”, explica Daniela Karine Rames, pesquisadora e pedagoga da Universidade de Santa Catarina. Daniela acredita que os jogoss trazem mudanças significativas na relação ensino-aprendizagem, permitindo que o professor aprenda com o aluno. Apesar disso, ela acha que falta muito para que os jogos se proliferem nas escolas brasileiras.

“O ensino, no Brasil, ainda é instrucionista, enquanto em países mais avançados todo professor é autor e tem condições de educar alunos autores”, explica Pedro Demo, especialista em educação e professor de sociologia da Universidade de Brasília (UnB), que considera o game uma ferramenta pedagógica poderosa no ambiente escolar. Na sua opinião, bons jogadores costumam se tornar melhores profissionais por ter aprendido a resolver problemas que estão na própria vida. Somado ao fato de que as fronteiras entre trabalho, diversão e aprendizagem estão cada vez mais propensas a desaparecer, os educadores serão cada vez mais pressionados a repensar a forma como ensinam.

O ROTEIRO É O CERNE
Na avaliação de especialistas, a maioria dos jogos eletrônicos educativos peca por não contextualizar as questões propostas. Embora os mais altos investimentos se direcionem à parte gráfica, o roteiro do jogo é o cerne do desenvolvimento. “A boa narrativa é o ponto-chave da imersão. Pena que há muito tempo perdemos o hábito de contar história”, lamenta Paula Carolei, consultora e desenvolvedora de jogos educativos e materiais didáticos do Senac.

Mais da metade dos jogos brasileiros se inserem na categoria serious games, com foco didático e de avaliação, e tem uma vida útil média de dez anos. Há jogos para todos os tipos de plataforma, desde 100 kb, para celular, até 10 Gb, para PC com três placas de vídeo. No entanto, em se tratando de desenvolvimento de software educativo, a primeira coisa a definir é o público. Só depois é que se pensa na tecnologia. “Uma sala de aula reúne diversos tipos de estudantes. Muitas vezes, um jogo mais arrojado, em 3D, não é a melhor solução para esse ambiente, pode provocar vertigem em quem não está acostumado a jogar”, observa Roger Tavares, desenvolvedor de games educativos e professor de Comunicação e Artes da faculdade Senac.

Como a produção de bons jogos envolve orçamentos elevados, o software livre tem se mostrado uma boa alternativa, por ser gratuito e fácil de usar. Mas nem sempre representa a melhor opção, na opinião de Tavares: “Rodar em software livre é uma coisa, mas para produzir, é necessário maleabilidade. O Linux costuma ser muito primário em termos de recursos técnicos e, dependendo do projeto, pode demandar muito mais investimento de tempo e dinheiro do que o programa proprietário. A decisão tem que ser muito mais técnica do que política”. Outra característica dos games é que o desenvolvimento exige vários programas específicos – um para programar, outro para desenvolver imagens, outro para animação etc. Não existe uma solução única. “A opção por software livre ou proprietário vai depender da complexidade do game e do expertise do desenvolvedor”, explica Marco Queza, gerente de tecnologia da Ubisoft. Das inúmeras experiências com que se deparou ao longo dos anos, 75% dizem respeito ao expertise do desenvolvedor e 25% à falta de alternativas técnicas.
Até mesmo os jogos violentos, em geral muito criticados pelos pais, podem servir de fonte de aprendizado e estímulo, entre o público jovem. “Esses jogos exigem habilidades sensoriais e motoras muito grandes, além de tomada de decisão e planejamento estratégico”, explica Lynn Alves, professora e coordenadora do grupo de pesquisa Comunidades Virtuais, da Universidade Estadual da Bahia. Desde o edital lançado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) em 2006, voltado para o desenvolvimento de jogos eletrônicos educativos, o grupo já produziu dois jogos para a rede pública e privada de ensino médio e fundamental. Porém, até agora não conseguiu implementá-los por questões de infraestrutura técnica nas escolas: falta placa de vídeo 3D nos computadores, essencial para que os jogos rodem na mesma velocidade dos jogos comerciais e mantenham os alunos interessados, explica.

Para testar a potencialidade do Tríade, jogo sobre a Revolução Francesa desenvolvido na plataforma Linux em Flash 2D simulando 3D, Alves selecionou 40 alunos das escolas pública e privada, na faixa de 14 a 16 anos. Eles participaram de uma experiência sistematizada, com acompanhamento, realizada no laboratório da universidade. A pesquisa concluiu que os adolescentes estavam totalmente imersos no ambiente virtual, compreenderam muito bem a lógica do roteiro e o fato histórico, porém apresentaram sérios problemas com relação à leitura do material. Evitaram ler os diálogos e os textos instrutivos, fundamentais para a compreensão do jogo, que levou 33 meses para ser desenvolvido e envolveu investimentos de R$ 300 mil.

Previsto para ser lançado no próximo mês, o game Revolta dos Alfaiates ou Revolta dos Búzios foi desenvolvido com recursos do edital lançado pela Finep em 2008, que contemplava projetos em pesquisa e desenvolvimento para educação. O jogo teve também recursos da própria universidade, da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) e do CNPq, totalizando R$ 202 mil. Os dois jogos, Revolta de Búzios e Revolução Francesa, foram desenvolvido na versão Linux ou Windows e podem ser baixados gratuitamente no endereço
www.comunidadesvirtuais.pro.br/triade ou /buzios.

Embora seja palco do 6º Seminário de Jogos Eletrônicos Educação e Comunicação, que será realizado em maio, Salvador não tem escolas que estejam adotando efetivamente a ferramenta na educação, afirma Alves.

Mais do que usar jogos eletrônicos educativos em sala de aula, escolas privadas, em São Paulo, promovem o desenvolvimento de jogos eletrônicos pelos próprios estudantes. São eles que escolhem a história, os personagens e os desafios do jogo. No Colégio Objetivo, os alunos do ensino médio criaram jogos para os colegas do fundamental. Para isso, pesquisaram sobre jogos educacionais, aprenderam técnicas de programação e ensinaram os alunos menores a usar o Scratch, software de linguagem de programação desenvolvido pelo Massachussets Institute of Technology (MIT), disponível gratuitamente na internet. O Colégio Dante Aleghieri, também em São Paulo, está prestes a implementar um programa para que os alunos aprendam a desenvolver jogos, dominando todas as etapas do processo – desde a definição da modelagem do ambiente à plataforma tecnológica.
Uma novidade é a plataforma Conflitos Globais, que oferece game, rede social e novas práticas de educação. Trata-se de um produto proprietário, em plataforma Unit, para navegação em 3D. Desenvolvido pela empresa dinamarquesa Serious Games e distribuído e adaptado com temas transversais do ensino médio brasileiro pela Iconomia, que surgiu do grupo de pesquisa Cidade do Conhecimento da Universidade de São Paulo (USP). O diferencial desse programa é que permite aos professores participar do desenvolvimento de novos títulos. A licença por aluno custa R$ 5,00.

REPORTAGENS INVESTIGATIVAS
Com o objetivo de criar experiências digitais como acesso a informação, educação e participação social, o Conflitos Globais não demanda infraestrutura de banda larga, assim como os efeitos visuais não requerem uma super placa de vídeo, nem computador especial. O principal recurso da plataforma é a série composta por cinco jogos que tratam de situações em conflito na América Latina, na Palestina, em Uganda e no Afeganistão.

O desafio é escrever reportagens investigativas. O conteúdo é formatado a partir da vivência experimentada pelo aluno e pode ser produzido em formato de texto, vídeo ou filme. Em uma das séries, chamada Cruzando a Fronteira do México com os Estados Unidos, uma garota aparece morta a tiros. O jogador precisa saber como ela foi morta e que futuro terá o filho dela. Mas, para produzir um texto diferenciado, o jogador precisa pesquisar questões como imigração, política de fronteiras nacionais e interesses políticos. As reportagens são publicadas na rede social criada pela Iconomia.

Idealizada pelo professor da USP, Gilson Schwartz, a plataforma Conflitos Globais foi uma das 89 iniciativas aprovadas em 2009 para participar do Programa Primeira Empresa Inovadora (Prime) da Finep. Cada projeto receberá R$ 240 mil, no período de dois anos, sendo R$ 120 mil não-reembolsáveis e o restante a juro zero. Na segunda fase do projeto, a Iconomia desenvolverá integralmente um novo título com a Serious Games e os professores, sobre os conflitos gerados com a ocupação da Amazônia.