Enquanto o governo (re)discute as regras de direito autoral, iniciativas privadas criminalizam o acesso à cultura.
Áurea Lopes
Edição nº 70 junho de 2011 – Está escrito na lei: o sistema educacional brasileiro tem como princípios “a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”. E não se trata de uma lei qualquer. Mas da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Nacional, que rege a vida acadêmica de todos os estudantes do país, do nível infantil ao nível superior. Porém, também está escrito, em outra lei, que é crime copiar obras, livros, textos – mesmo referentes a conteúdos didáticos, ou seja, mesmo para fins de ensino e aprendizagem. E essa é a Lei 9.610/98, conhecida como Lei do Direito Autoral (LDA), que em 2010 passou por um processo de revisão e estava prestes a ser modernizada, mas voltou à estaca zero, este ano – o Ministério da Cultura decidiu reabrir a discussão, após a sociedade ter chegado a consensos que iriam, entre outros avanços, acabar com a contradição legal que permite, de um lado, a defesa do direito a aprender e, de outro, o cerceamento ao direito de aprender.
Até por conta desse conturbado processo de revisão da LDA, o debate sobre direitos autorais no campo da arte, em especial da música e do cinema, tem recebido grande atenção da mídia. No âmbito da Educação, no entanto, pouco se fala sobre as consequências de uma legislação ultrapassada – de um tempo em que as pessoas não tinham internet em casa nem na escola! Para se ter uma ideia de como é urgente reformar as regras vigentes, um bom exemplo é o levantamento feito ano passado pelo Grupo de Pesquisas em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (GPopai) na Universidade de São Paulo (USP) – uma instituição de elite, frequentada predominantemente por filhos das famílias que puderam pagar os melhores colégios particulares da capital paulista. O estudo do GPopai mostra que, se os alunos tivessem de comprar toda a bibliografia básica utilizada em um ano letivo de determinado curso, 85% gastariam a renda familiar integral, a cada mês. Como será que esses estudantes fazem, se não é permitido tirar cópias?!
É ainda mais difícil responder essa pergunta nas faculdades privadas, onde estão os estudantes que têm menos condições financeiras, muitos dos quais só matriculados graças a programas públicos. “Nossos alunos têm baixo poder aquisitivo, os livros são caros e a biblioteca não pode atender a demanda de toda a universidade. Não há 80 exemplares disponíveis de cada publicação, que é o número de alunos de uma turma, por exemplo”, diz Edson Roberto de Jesus, professor de Sociologia da Comunicação da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid). E, como a lei faz restrições (ver página 39), o jeito é apelar para criativos subterfúgios: tirar cópias em diferentes locais, em diferentes dias, em empresas de reprodução mais distantes da universidade e, por isso, mais tolerantes com os limites legais.
“O Brasil está muito mal no que diz respeito a impedir o acesso ao conhecimento. Em 2010, ficou em 4º lugar na lista das piores legislações de direitos autorais, em um estudo da organização Consumers Internacional”, relata Pedro Nicoletti Mizukami, professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), do Rio de Janeiro. Hoje, informa ele, um professor pode virar réu por reproduzir e distribuir textos dentro da sala de aula. A lei só permite cópias de “pequenos trechos”, embora não esteja explicitado em nenhum lugar o que é “pequeno” – quantas linhas? páginas? capítulos? cadernos? volumes de uma coleção? Outra situação absurda é a dos livros esgotados. Também em pesquisa feita pela USP, que abrangeu 2 mil títulos adotados no sistema de ensino brasileiro, 30% constaram como esgotados. “Não pode copiar, o livro está esgotado, mas o aluno tem que ler”, denuncia Pablo Ortellado, integrante do GPopai.
Criminalização
Enquanto o MinC rediscute as regras do jogo, a criminalização do uso de literatura acadêmica ganha fôlego. Uma iniciativa da Câmara Americana de Comércio vem promovendo, desde 2007, o “Projeto Escola Legal: combater a pirataria se aprende na escola” (PEL). O PEL consiste em uma formação voltada a professores, conjugada com um repertório de sugestões de atividades pedagógicas, e apoiada por um portal interativo. O objetivo: “conscientizar a comunidade escolar sobre a importância do conceito de propriedade intelectual e alertar para os problemas causados pela pirataria no Brasil e no mundo”, conforme registrado no manual distribuído aos docentes e publicado no portal do projeto até o fechamento desta edição, no final de maio. Pirataria, de acordo com esse manual, “(…) refere-se à cópia, falsificação, venda, ou distribuição de material sem o pagamento de seus direitos autorais e de propriedade intelectual”. Pirataria “é roubo: roubo de ideias, de trabalho e de futuro”, avisa o manual.
No PEL, professores aprendem (para ensinar a seus alunos) coisas como “os impactos que a pirataria e o desrespeito à propriedade intelectual causam sobre a economia e o desenvolvimento da sociedade”. Ou “a forte relação existente entre pirataria, propriedade intelectual, inovação e desenvolvimento”, pois “cada vez que alguém compra um produto pirata, o inventor da mercadoria original deixa de receber por seu trabalho e, por isso, deixa de ter incentivos para continuar investindo tempo e dinheiro na criação de inovações. Sem inventores, ficaríamos sem invenções. E sem invenções, a humanidade certamente não teria alcançado os graus de avanço e desenvolvimento que hoje nos permitem tantas facilidades”. Ou, ainda, que “a cada produto pirata fabricado, a propriedade intelectual é violada, diversas leis são desrespeitadas, a inovação é desestimulada e o desenvolvimento é prejudicado”.
Segundo o manual do PEL, a conta da pirataria contabiliza “um movimento de US$ 600 bilhões por ano”, com “prejuízo de US$ 30 bilhões em impostos, por ano, no Brasil”. O texto relata que, “em função do mercado informal, o Brasil deixa de criar aproximadamente 2 milhões de empregos formais por ano”. E faz a sugestão, entre outras, de utilizar os números dessas “pesquisas” – cujas fontes não são identificadas – em exercícios da disciplina de Matemática.
Erro grosseiro
É fácil entender o que leva um projeto desse tipo a juntar no mesmo saco conceitos diferentes como “pirataria” – que corresponde a “falsificação de produtos”, “quebra de patente” – e “violação da propriedade intelectual” – prática que está sendo objeto de uma complexa discussão no processo de reforma da LDA, com o intuito, entre outros, exatamente de flexibilizar as regras de uso de conteúdos literários no ambiente educacional. Mizukami, da FGV, considera “um erro grosseiro” misturar direito autoral com patente. Para ele, o material do PEL “se apresenta como educativo mas se confunde com uma ação de marketing, na medida em que defende o direito de patente, o direito de marca”. Não é por acaso que a lista de parceiros do PEL reúne grandes empresas do setor farmacêutico (Interfarma, MSD), de telecomunicações (Nokia), de informática (Microsoft), entre outras instituições.
Fábio Desideri Junqueira, responsável pelo programa na AmCham, reconheceu que havia uma inadequação no material e informou que o manual foi corrigido. Mas a única versão pública, e disponível no site do projeto, é a que apresenta os trechos citados acima. A nova versão, de acordo com a assessoria de imprensa da AmCham, é “de acesso exclusivo aos professores participantes do programa”. Que não são poucos. Já passaram pela formação do PEL cerca de 2 mil educadores, de mais de 160 escolas públicas e particulares. Eles foram treinados para aplicar as atividades propostas pelo projeto em sala de aula – o que representa atingir um público de aproximadamente 35 mil crianças e jovens, prioritariamente entre sete e 14 anos, mas também de seis anos e até de classes de Educação de Jovens e Adultos (EJA). A implantação do PEL é feita em parceria com Secretarias de Educação municipais e estaduais, além de escolas particulares, diz Junqueira.
O que o pesquisador Mizukami considera preocupante é que o Projeto Escola Legal tem apoio institucional do Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP), órgão do Ministério da Justiça, responsável pelo Plano Nacional de Combate à Pirataria (PNCB). Desde a criação do Conselho, diz o especialista da FGV, o discurso oficial do governo foi de que não se combate a pirataria apenas com repressão, mas também com medidas econômicas e educativas. “Só que os representantes do setor privado que integram o CNCP insistem em solucionar o problema quase estritamente pela via repressiva”, aponta. E acrescenta: “Quando se fala na vertente econômica, eles pedem redução da carga tributária e, na melhor das hipóteses prometem investir mais em produtos com preços populares”.
A secretária executiva Ana Lúcia de Moraes
Gomes, confirma, por meio de sua assessoria,
o apoio do CNCP ao Escola Legal, desde o início do projeto, em 2007. Mas diz que o Conselho não aprovou o primeiro manual fornecido aos professores, pois o material foi substituído
por uma nova versão – que no momento está
em avaliação pelos conselheiros. A manutenção do apoio, de acordo com a secretária, vai depender do parecer dos conselheiros sobre a segunda versão do material, que será dado na próxima reunião do CNCP, prevista para a primeira quinzena de junho.
Mudanças para melhorar
Elaborada em um contexto onde não existiam as ferramentas tecnológicas atuais, a Lei de Direito Autoral (LDA) em vigor no Brasil data de 1998. Durante o governo Lula, um projeto de lei para reforma da LDA foi apresentado pelo Ministério da Cultura para consulta pública e muitas sugestões foram enviadas por cidadãos e instituições da sociedade organizada. Embora o novo Ministério da Cultura tenha retomado o debate, permanecem as contribuições feitas, na primeira fase, entre as quais um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV). No que se refere ao universo educacional, a FGV aponta os avanços do projeto de lei do MinC e faz novas propostas.
Pontos positivos que devem ser mantidos
PEQUENOS TRECHOS – Acaba com a limitação que permitia cópias apenas de “pequenos trechos”
AUTORIZAÇÃO – Dispensa a autorização prévia do autor em determinados casos, como o uso para fins educativos.
REMUNERAÇÃO – Não exige remuneração em determinados casos, como o uso para fins educativos.
PORTABILIDADE – Reconhece a portabilidade ou interoperabilidade, protegendo o consumidor privado de abusos por parte de detentores de direitos autorais. Um DVD comprado para exibição em TV pode ser copiado em notebooks de alunos como parte de atividade de uma prova, por exemplo.
USO PRIVADO – Permite que obras intelectuais (livros, filmes, músicas) sejam usadas em âmbito privado (recesso familiar) e instituições de ensino.
USO ESPECIAL – Possibilita a adaptação de obras para uso de pessoas portadoras de necessidades especiais, sem necessidade de autorização ou remuneração aos detentores dos direitos autorais.
Alterações que precisam ser feitas
AQUISIÇÃO LEGÍTIMA – Retirar a exigência, que não havia na LDA e foi incluída no projeto de lei, de que a obra a ser copiada seja “legitimamente adquirida”. Os pesquisadores argumentam que essa exigência dá margem a dúvidas: legitimamente adquirida por quem? Pelo reprodutor da cópia – o dono de uma empresa de reprodução ou o professor? Pelo usuário da cópia – o professor ou o estudante?
MAIS DE UMA CÓPIA – Permitir a reprodução de mais de uma cópia, e não restringir a apenas uma cópia, como está no projeto de lei. Na visão dos pesquisadores, tanto o professor pode precisar de várias cópias para diferentes tipos de utilização, como um mesmo estudante pode precisar de duas ou mais cópias, para fazer tipos de trabalhos diferentes com o mesmo texto.
PRÓPRIO USUÁRIO – Eliminar a obrigatoriedade de a reprodução ser feita pelo próprio usuário. O professor deve ter liberdade para pedir a um técnico para imprimir várias cópias que serão usadas por seus alunos.
CITAÇÕES – Retirar a restrição ao uso de citações de obras dentro de outras obras, hoje limitado a “pequenos trechos”. (A.L.)a