No deserto com Clarice Lispector

Exposição sobre a autora marca 30 anos do lançamento de “A Hora da Estrela”, e é boa oportunidade para conhecer ou rever seu trabalho.



Exposição sobre a autora marca 30 anos do lançamento de “A Hora da
Estrela”, e é boa oportunidade para conhecer ou rever seu trabalho.

Rosane de Souza


A obra, a vida e os “segredos” de Clarice Lispector estão em exposição
no Museu de Língua Portuguesa, em São Paulo, desde o dia 23 de maio. A
exposição Clarice Lispector — A Hora da Estrela, que tem curadoria de
Júlia Peregrino e Ferreira Gullar, com cenografia de Daniela Thomas e
Felipe Tassara, reúne fotos e material inédito, como originais,
correspondência e documentos de uma das mais importantes escritoras em
língua portuguesa, além de primeiras edições e versões em outras
línguas de seus livros. Utiliza artifícios audiovisuais para compor o
personagem Clarice (cujo sobrenome, Lispector,  considerava “duro
como diamante”), sempre associado a adjetivos como “enigmático”,
“complexo”, “misterioso” e  “intimista”.

Além de escritora extraordinária, Clarice realizou outros trabalhos —
artigos diários para o “Jornal do Brasil”, reportagens, entrevistas e
textos para revistas femininas —, segundo a maior parte dos estudiosos
da autora, como fruto da necessidade de complementar o orçamento
doméstico e, portanto, não prazeiroso. Quando a escritora lançou, em
1974, o livro de contos de teor erótico “A via Crucis do Corpo”, a
crítica o bombardeou como “desvio” e “lixo”, por se tratar de um texto
escrito por encomenda, para salvar Clarice Lispector de “dificuldades
financeiras”. Mas, no ano passado, Nilze Regueira, mestre em Teoria da
Literatura pelo Instituto de Biociências, Letras, e Ciências Exatas da
Unesp, campus de São José do Rio Preto (SP), desmontou a tese de que
ela teria sucumbido às exigências do mercado para compor o seu polêmico
livro. “Por meio de processos de simulação e de dissimulação na
linguagem, a escritora se coloca criticamente perante os editores que
encomendaram os textos.” (“Clarice Lispector e a Encenação da
Escritura”, Editora Unesp — Universidade Estadual Paulista). Receio que
Clarice se divertiu muito com isso. Em entrevista à TV Cultura
(“Ensaio”), pouco antes de morrer, a própria autora declara ser uma
“amadora” — ou seja, só escrevia por amor. O que diz também o
personagem Rodrigo S. M., narrador de “A Hora da Estrela”: ”acontece
que só escrevo o que quero, não sou profissional”.

Enigmática e intimista?


Também é Rodrigo que vai zombar do personagem “Clarice intimista”,
criado em torno da autora.  Segundo o jornalista José Castello,
com o lançamento do seu livro “A Hora da Estrela”, a escritora “debocha
daquilo que dela sempre se disse — que seria uma escritora enigmática e
intimista, fechada em si mesma e incapaz de voltar-se para o real: para
fazer isso, cria um segundo escritor, Rodrigo S. M., que funciona como
seu representante, ou intermediário. O esforço ‘realista’ de Rodrigo
para enquadrar e ‘possuir’ a frágil Macabea sustenta (e também faz
fracassar) a narrativa de ‘A Hora da Estrela’. Rodrigo, mais que
Macabea, é a estrela oculta do romance”, afirma Castello.

É com a sua Macabea que a autora, nascida na Ucrânia, mas criada nas
cidades de Maceió e Recife, no Nordeste, mais se aproxima da criança
que um dia foi, e que descreveu no texto “Restos de Carnaval” para a
sua coluna diária no JB: “…E quando a festa ia se aproximando, como
explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se
abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e
praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se
as vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta
em mim. Carnaval era meu, meu.”(“Aprendendo a Viver”, editora Rocco).

O veterano jornalista Alberto Dines, contemporâneo de Clarice, conta
que convidou a escritora, sem nenhuma ilusão de que aceitasse, a viver
a ghost-writer da estrela de cinema e TV, Ilka Soares, numa página
feminina da versão tablóide do Diário da Noite (Rio de Janeiro,
1960-1961). “Para minha surpresa, aceitou com entusiasmo:
recém-divorciada, com dois filhos pequenos, precisava ganhar a vida”.
Segundo relata Dines no prefácio do livro “Correio Feminino” (editora
Rocco), Clarice foi profissional no que fazia. “As páginas já vinham
montadas e arrumadas, ao diagramador restava a tarefa de fazer pequenos
acertos”.  O relato demonstra que ela encontrava algum prazer
nesse trabalho.

José Castello arrisca dizer que “Clarice Lispector, quem sabe, é só um
personagem criado por Clarice Lispector”, autora que, na opinião do
jornalista, nos leva para o deserto. Mas em boa companhia, porque era
nesse lugar que a autora de “Perto do Coração Selvagem” (lançado quando
ela tinha apenas 23 anos) revelava a sua busca e necessidade de
compartilhar. Ao fim de uma de suas crônicas no JB, escritas durante o
deserto da ditadura militar, ela escreveu: “P.S. — Estou solidária, de
corpo e alma, com a tragédia dos estudantes do Brasil”.

Clarice Lispector

por Clarice Lispector


Romances:
Perto do Coração Selvagem (1943) • O Lustre (1946) • A Cidade
Sitiada (1949) • A Maçã no Escuro (1961) • A Paixão segundo G.H. (1964)
• Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres (1969) • Água Viva (1973) • Um
Sopro de Vida – Pulsações (1978)

Novela:
A Hora da Estrela (1977)

Contos:
Alguns Contos (1952) • Laços de Família (1960) • A Legião
Estrangeira (1964) • Felicidade Clandestina (1971) • A Imitação da Rosa
(1973) • A Via Crucis do Corpo (1974) • Onde Estivestes de Noite?
(1974) • A Bela e a Fera (1979)

Correspondência:
Cartas perto do coração (2001) – Organização de
Fernando Sabino • Correspondência – Clarice Lispector (2002) –
Organização de Teresa Cristina M. Ferreira

Crônicas:
Visão do Esplendor – Impressões leves (1975) • Para não
Esquecer (1978) – contos inicialmente publicados em Laços de família.
A Descoberta do Mundo (1984)

Entrevistas:
De Corpo Inteiro (1975)

Literatura infantil:
O Mistério do Coelho Pensante (1967) –
Escrito em inglês e traduzido por Clarice Lispector • A Mulher que
Matou os Peixes (1968) • A Vida Íntima de Laura (1974) • Quase de
Verdade (1978) • Como Nasceram as Estrelas (1987)

Antologias:
Seleta de Clarice Lispector (1975) – Organização de Renato
Cordeiro Gomes
• Clarice Lispector (1981) – Organização de Benjamin
Abdala Jr. e Samira Y. Campedelli • O Primeiro Beijo & Outros
contos, de Clarice Lispector (1991) • Os Melhores Contos de Clarice
Lispector (2001) – Organização de Walnice N. Galvão • Aprendendo a
Viver (2004)

A autora em exposição


A mostra dedicada à Clarice Lispector, no Museu da Língua Portuguesa,
registra os 30 anos de lançamento de “A Hora da Estrela”, ano em que a
escritora morreu (dezembro de 1977). Na entrada, uma foto da autora,
impressa em filó preto e recheada com frases ditas por ela. Numa sala,
2 mil gavetas e apenas 65 chaves abrem o material inédito. Alguns
ambientes utilizam recursos audiovisuais. Por exemplo, em uma pequena
sala, projeta-se um inseto e evocam-se cenas de “A Paixão Segundo G.H.”
e a discussão sobre natureza e religiosidade. No último corredor, um
vídeo mostra freqüentadores do Parque da Luz, ao lado do Museu, lendo
trechos de “A Hora da Estrela”, como um jogo de espelhos em que a vida
continua refazendo a arte.


Clarice Lispector – A Hora da Estrela.

Museu da Língua Portuguesa
Praça da Luz, s/n.º, centro, tel. 3326-0775.
3.ª a dom., 10 h às 17 h. R$ 4 (sáb., grátis)

www.estacaodaluz.org.br

www.claricelispector.com.br – Site oficial

www.releituras.com/clispector_bio.asp
– Projeto Releituras, com vasta bibliografia, inclusive um dos mais belos contos de Clarice: “Amor”.