conexão social

O Bixiga solta sua voz

Há 14 anos, projeto de comunicação no tradicional bairro paulistano forma crianças e adolescentes de baixa renda na produção de conteúdo jornalístico em audiovisual.
Igor Ojeda

ARede nº 78 – março de 2012

Quando crescer, Gabriel Fernandes, de 11 anos, quer ser jogador de futebol do Corinthians. Se por acaso não conseguir realizar seu maior sonho, já tem meio caminho andado para se profissionalizar como repórter cinematográfico. O pequeno morador do Bixiga, nome popular do bairro paulistano da Bela Vista, é um dos muitos participantes do projeto Novolhar na TV, oficina de produção audiovisual realizada há 14 anos pela Associação Novolhar, instituição da região que tem o objetivo de incluir socialmente crianças e adolescentes de baixa renda por meio da Tecnologia de Comunicação.

Todos os anos, meninos e meninas, em sua maioria moradores dos cortiços do bairro, aprendem os ofícios de apresentador, cinegrafista, produtor, repórter e assistente. Produzem programas jornalísticos transmitidos pelas TVs PUC de São Paulo e Campinas e pelo Canal Universitário de Taubaté. Gabriel pediu para participar e logo manejava uma câmera. Descobriu não ser tão difícil: foi melhorando a cada dia, aprendendo as técnicas de gravação. Não demorou a se destacar na função. “Venho todo dia de manhã. De tarde, vou para a escola. Fico feliz quando meus professores e colegas veem as reportagens no Canal Universitário. É legal ser câmera”, conta.
O Projeto Novolhar na TV nasceu antes mesmo da associação. E quase por acaso. A semente foi uma oficina de vídeo organizada pelo jornalista, fotógrafo e produtor Paulo Santiago em um abrigo no bairro, em 1998. Durante quatro dias, com a colaboração da psicóloga Gisele Porto, Santiago ensinava garotos em situação de rua a produzir conteúdos de audiovisual. “Nunca havia trabalhado com esse público. Tenho uma relação antiga com o bairro porque sou um dos fundadores do Museu do Bixiga e moro aqui. A ideia era fazer apenas uma oficina. Mas os adolescentes do abrigo gostaram tanto da experiência que perguntei a um amigo se podiam fazer um estágio em uma produtora de vídeo e som. Eles gostaram”, lembra. Na época, os garotos eram atendidos pelo Projeto Quixote, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que trabalha com meninos de rua usuários de drogas.

Quando os estagiários da produtora começaram a faltar nas atividades do programa, os responsáveis, após descobrir o motivo, perguntaram a Santiago se não poderia montar um projeto de vídeo para esse público. “Sugeri fazer um programa de tevê. Falei com o Gabriel Priolli, então diretor da TV PUC-SP, e, em abril de 1999, com a participação de 15 adolescentes, o Novolhar na TV estava no ar”, conta. E ainda está, 13 anos depois. Já são mais de cem programas gravados mensalmente, que em breve estarão disponíveis também na internet.

Logo no começo, a pauta passou a ser sugerida pelos próprios adolescentes que sentiam a necessidade de tratar de temas do cotidiano, como drogas, tabagismo, gravidez na adolescência. E, claro, de eventos, shows e peças de teatro. No início, os participantes eram jovens com mais de 16 anos. Depois de um tempo, a faixa etária diminuiu porque o índice de criminalidade entre garotos de dez a 12 anos do Bixiga havia aumentado. Atualmente, o
Novolhar na TV atende crianças como Gabriel, o câmera que quer ser jogador do Corinthians, e outras como Camila Trigo, Iago Romel e Ana Beatriz de Carvalho.
A extrovertida Camila tem só dez anos. Mas já “trabalha” na profissão que quer seguir quando for adulta: repórter de televisão. Começou exercendo outras funções. Logo percebeu que tinha jeito para ficar na frente das câmeras. “Não sinto vergonha. Gosto de ser repórter porque falo sobre o que as pessoas estão fazendo, sobre cultura, coisas criativas.” Mais tímida, Ana Beatriz, também com dez anos, trabalha na produção. É uma das responsáveis por obter as autorizações de imagem e agendar as entrevistas. Já Iago, um ano mais velho, faz os making offs dos programas. “Gravo o trabalho dos repórteres e dos produtores”, explica. Ao público mais “velho”, de 15 a 21 anos, é reservado o período noturno, no qual são oferecidas oficinas de rádio, vídeo e novas mídias.

A prioridade à comunicação no trabalho da Associação Novolhar é pensada no contexto de uma estratégia de longo prazo. Para Santiago, não é possível levar a cabo projetos sociais sem garantir a inclusão digital. “Seria como regredir no tempo. Qualquer menino de classe média tem acesso a essas tecnologias. Se não trabalharmos isso com garotos de baixa renda, o nível de desigualdade será mantido. Quando forem para o mercado de trabalho, serão massacrados como seus pais. Se não dominarem a tecnologia, se não tiverem acesso a ela agora, provavelmente farão parte de mais uma geração sem acesso ao desenvolvimento. Essa visão tem que ser em nível nacional e não local”, defende.

As ações da Associação Novolhar, que hoje funciona como uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), não se resumem aos projetos de comunicação comunitária e ao atendimento de crianças e adolescentes. Os mais novos têm atividades de artes plásticas, capoeira, hip hop e até do cultivo de uma horta orgânica. Além disso, a associação procura trabalhar com as famílias vulneráveis socialmente do bairro, com oficinas de geração de renda e inserção produtiva, cursos de informática – o telecentro administrado pela Novolhar, o único do Bixiga, recebe mais de mil pessoas por mês –,

atendimento psicossocial e encaminhamento para a rede de serviços sociais da região. As atividades fazem parte do projeto Escritório de Inclusão Social Bela Vista. Ao todo, 1.050 núcleos familiares foram cadastrados.

O cultivo de hortas orgânicas faz parte da ação Um Novolhar Sobre o Bixiga, que tem por objetivo promover atividades para valorizar a qualidade de vida, o consumo de alimentos saudáveis e a prática de exercícios físicos. Em julho de 2009, foi inaugurado o Espaço Cultural Novolhar 13 de Maio, para promover a inclusão social por meio da arte e da cultura. Desde então, o espaço recebe exposições de pintura e fotografia, concertos de violão e peças de teatro, entre outras manifestações.

O projeto Novolhar na TV ultrapassa as fronteiras da Bela Vista. Ao longo de seus 14 anos, muitos cursos e oficinas de comunicação foram e são ministrados em outras regiões da capital paulista e até em diferentes cidades da região metropolitana de São Paulo. Em 2000, dois anos após o início de suas atividades, a Associação Novolhar, em parceria com a então Febem, hoje Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação Casa), passou a oferecer oficinas de audiovisual aos internos da instituição. Eram atendidos 360 jovens por ano, em quatro unidades da Fundação na cidade de São Paulo. Os adolescentes produziam programas de televisão e videoclipes. O convênio foi encerrado em 2011, mas, segundo Santiago, pode ser retomado ainda neste ano.

Mas o foco principal, sem dúvida, é o Bixiga. Depois de anos de ativa atuação, pode-se afirmar, sem medo de errar, que o projeto está enraizado no bairro. “Não acredito num processo de desenvolvimento se não estiver inserido na comunidade porque a mudança tem que ser feita a partir dela. É como jogar uma pedra numa lagoa: as ondas vão se ampliando”, resume Santiago.

A tarefa não é fácil: “Às vezes é preciso parar alguma coisa para atender uma mãe com problemas, ou um garoto que cometeu algum delito e foi mandado para a Fundação Casa. Trabalhamos com um público de alto risco, gente morando em cortiços, que não tem água, não toma banho. Aqui, há alta incidência de drogas. O Bixiga tem cerca de 60 mil habitantes e a faixa de vulnerabilidade é de 11%. É um número expressivo”, explica o idealizador do projeto. O perfil comunitário do bairro, no entanto, contribui na implementação de ações sociais. “A festa de Nossa Senhora Achiropita envolve uma média de 800 famílias. Quando termina, os moradores começam a preparar o desfile da Vai-Vai, tradicional escola de samba paulistana, com sede na Bela Vista. O bairro tem uma história, possui uma vida coletiva muito forte.”

Com essa fórmula, os resultados são bastante satisfatórios. Santiago estima que cerca de 90% dos jovens atendidos pelo projeto têm emprego. “A gente mostra caminhos”, alerta. Lembra casos como o de um ex-interno da Fundação Casa que hoje trabalha com audiovisual, é professor de vídeo e dá cursos em instituições como o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac).

Entre os obstáculos ao sucesso das ações da Associação Novolhar, Santiago destaca a falta de verbas para custear a gestão da entidade e complementar os recursos oriundos dos convênios com o poder público. “Já tivemos um convênio com a União Europeia, mantemos um com a Prefeitura de São Paulo, mas a verba é aquela merreca. Por isso, enfrentamos dificuldades para contratar profissionais de qualidade”, lamenta. Parte dos recursos da associação vem do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fumcad) da prefeitura de São Paulo, que concede isenções fiscais para empresas participantes de projetos que beneficiam jovens carentes. A partir de abril, também por meio do Fumcad, a Associação Novolhar integrará o programa Jovens de Responsa, da Ambev, com o objetivo de prevenir o uso abusivo de álcool entre os menores de 18 anos.

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