O Capítulo de Internet do ACTA: juntando as peças.

Tratado internacional sobre propriedade intelectual em negociação, esta semana, na Coreia, pode atingir a soberania dos países que o assinarem sobre suas próprias leis de propriedade intelectual.

03/11/09 – As últimas rodadas de negociação em torno do Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA, na sigla em inglês, ou Acordo Comercial Anticontrafação) estão em andamento na Coréia do Sul. Os termos deste tratado internacional, em negociação entre os Estados Unidos e a União Europeia, foram mantidos em sigilo e houve um grande movimento, por meio da internet, para que fossem tornados públicos. Agora, informações que chegam de várias fontes mostram que o foco do tratado é a vigilância da internet.

Contrafação é, de acordo com o dicionário Houaiss, o termo jurídico para usurpação ou violação dos direitos autorais ou da propriedade intelectual sobre obra literária, científica ou artística; violação do direito de marca de indústria; ou o uso indevido de patente. As negociações sobre o acordo, no entanto, vão se concentrar, esta semana, sobre a internet.

O pesquisador canadense Michael Geist, professor de Direto na Universidade de Ottawa e editor autor ou editor de vários trabalhos sobre internet e propriedade intelectual publicou, em seu blog, um texto sobre o assunto. Vai abaixo a tradução. Se você se interessa pelo tema, vá em frente. Se ainda não se interessa, leve em consideração duas coisas: o Trips (Tratado Internacional de Propriedade Intelectual, que contém várias medidas a serem “complementadas” pelo ACTA) foi criado no contexto da Organização Mundial do Comércio, sob a batuta de indústrias dependentes de patentes e direitos autorais, e vários países com grandes exportações agrícolas foram obrigados a assiná-lo para não perder suas vendas ao exterior. Com isso, ficaram ainda mais dependentes do uso e pagamentos de royalties. A segunda questão diretamente relacionada ao Brasil é que as medidas previstas no ACTA condicionam o tratamento que cada país decide dar a direitos autorais. Exatamente em um momento em que o país se prepara para debater uma nova lei de direitos autorais, que amplie o acesso da população a bens culturais.

Geist, em seu artigo, explica que obrigações previstas para o ACTA infringem a soberania do Canadá sobre sua política nacional de direitos autorais. Como o tratado tem, como objetivo, obter a assinatura daqueles países em desenvolvimento “onde o cumprimento dos direitos autorais pode ser melhorado, tais como a China, a Rússia e o Brasil”, ele terá influência determinante sobre a política brasileira de direitos autorais.

Segue a tradução:

“Os governos publicaram a agenda do debate em Seul. Não é surpreendente que o foco sejam medidas de coação na internet. Os Estados Unidos apresentaram sua proposta sob enorme sigilo, somente um grupo selecionado de pessoas teve acesso a ela, mediante a assinatura de acordos de não revelação de seu conteúdo. Outros países, incluindo o Canadá, receberam cópias com marcas d’água, para evitar vazamentos das informações.

Informação sobre o capítulo relacionado à internet, no entanto, começou a vazar, a despeito dos esforços para mantê-la em segredo (o mesmo foi feito com outros capítulos do tratado). Fontes informam que o texto elaborado para discussão tem como modelo o tratado de livre comércio entre os EUA e a Coreia e seu foco se concentra em cinco temas:

1. Obrigações fundamentais inspiradas no Capítulo 41 do TRIPs, que trata da regulação da propriedade intelectual.

2. A obrigação de estabelecer responsabilidades de terceiros (como provedores de acesso) pela violação de direitos autorais.

3. Restrições aos limites à responsablidade de terceiros (por exemplo, regras de hospedagem segura para provedores de internet). Para que um provedor se qualifique como hospedagem segura, deverá estabelecer regras para deter a armazenagem ou transmissão de conteúdo que violem propriedade intelectual. A maneira de implementar essas regras será a do tratado entre os EUA e a Coreia, em seu artigo 18.10.30. Elas incluem políticas para desconectar assinantes em determinadas circunstâncias. Notificar-e-desconectar, que hoje não é lei no Canadá nem uma obrigação sob a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi), será uma das obrigações impostas pelo ACTA.

4. Leis antifraude que adotam o modelo da Ompi e o reforçam, ao adotar os tratados sobre internet da Ompi e também a linguagem usada nos tratados de livre comércio dos EUA, que vão além das obrigações estabelecidas nos tratados da Ompi. Por exemplo, o tratado de livre comércio entre os EUA e a Coreia especifica as exceções permitidas às regras antifraude (engenharia reversa, teste de computadores, privacidade etc.) e não inclui, entre essas exceções, o uso justo (fair use). Mais ainda, as cláusulas deste tratado incluem a obrigação de banir a distribuição de dispositivos usados nessas “fraudes”. A atual versão do tratado não inclui nenhuma obrigagação de assegurar a interoperabilidade de dispositivos de gestão de direitos digitais (DRM, ou mecanismos anticópia).

5. Meios de gerenciamento de direitos autorais também elaborados de acordo com a linguagem dos tratados de livre comércio dos EUA.

Essas informações são coerentes com a abordagem que dos EUA, nos últimos anos, às negociações bilaterais de tratados de comércio. Se elas estiverem corretas, o efeito combinado dessas medidas vai mudar dramaticamente a lei de direitos autorais do Canadá e eliminar a escolha soberana do país sobre sua política de direito autoral. O Canadá acaba de concluir uma consulta pública nacional sobre direitos autorais e essas questões foram o centro de milhares de contribuições. Se o país aderir aos termos do Acta, a flexibilidade prevista nas medidas da Ompi estará eliminada e o Canadá vai ser obrigado a implementar uma série de novas reformas (isso é, precisamente, o que lobistas americanos disseram que gostariam de ver acontecer). Em outras palavras, a noção básica de uma abordagem canadense com relação aos direitos autorais estará perdida.

O capítulo sobre a internet levanta duas questões adicionais. No front internacional, confirma que o ACTA não é um tratado anticontrafação e sim um tratado de direitos autorais. Essas medidas envolvem políticas de copyright de uma maneira que nenhuma definição razoável de contrafação faria. No front doméstico, levanta sérias questões sobre o mandato aos negociadores canadenses. As negociações de assuntos estrangeiros são tipicamente limitadas pela legislação nacional, por uma proposta apresentada ao parlamento ou por uma carta de mandato para a negociação. Como as medidas propostas ao ACTA ultrapassam dramaticamente a lei canadense e não estão em nenhum documento apresentado a parlamento, os canadenses deveriam se perguntar se a carta de mandato para a negociação previu essas mudanças em nossa lei de direitos autorais. Quando combinadas com outros capítulos que incluem danos à legislação, poderes de busca e apreensão, regras antifilmagem e dispositivos de revelação obrigatória de informações pessoais, fica claro que não há, hoje, nenhum assunto relativo à internet que seja tão fundamental quanto o ACTA, negociado atrás de portas fechadas, esta semana, na Coreia.”

O artigo original, em inglês, está aqui. Ele tem vários links que não estão nesta tradução. E mais informações sobre o ACTA podem ser encontradas com uma busca no blog Trezentos.